Cael está na frente da escola de Nina, esperando a hora da saída. O sol do meio-dia, forte e vibrante, já pinta o céu com um azul intenso, e a brisa da manhã carrega o burburinho de vozes infantis e o cheiro de giz e terra molhada.

"Cheguei muito cedo." — Cael resmunga, mentalmente, o desconforto habitual com a inatividade martelando em sua mente, mesmo que o relógio natural em sua cabeça indicasse a hora certa.

Ele está sozinho, do outro lado da rua, encostado em um muro desgastado, uma figura imponente e destoante na paisagem colorida da saída escolar. Observa a chegada dos pais e responsáveis, cada um com um sorriso apressado, a expectativa nos olhos. Depois de alguns minutos, o sinal finalmente toca, um som agudo que libera um mar de crianças. Elas irrompem dos portões, correndo para encontrar seus pais, gritos de alegria e abraços se espalhando pela calçada.

Cael vê Nina, uma pequena explosão de energia no meio da multidão, que também o percebe. Seu rosto se ilumina, e ela corre até ele, pequena e veloz.

— Irmão! — Nina diz, com uma felicidade tão pura que quase amolece a expressão de Cael.

Outras crianças, ao notar Cael, a figura alta e misteriosa de mais cedo, param, curiosas. Algumas cochicham com seus pais, e algumas, mais audaciosas, até vão na direção de Cael.

— Ei, tio! — Uma criança diz, era um garoto, os olhos arregalados de admiração. — Você é demais! — A voz infantil carregada de um heroísmo recém-descoberto.

Um dos adultos, o pai do garoto, se aproxima de Cael, um sorriso respeitoso no rosto. Era um homem de cerca de 40 anos, com estatura média, rosto de traços rústicos e marcados pelo tempo, com algumas rugas de expressão ao redor dos olhos e da boca que denunciavam uma vida de trabalho duro. Seus cabelos eram curtos e grisalhos nas têmporas, e seus olhos castanhos transmitiam uma gentileza simples.

— Foi muito corajoso o que você fez. Ninguém tem coragem de se meter com as pessoas da elite, ainda mais com um Goldstain.

— É verdade. — Uma mãe, que estava com sua filha no colo, concorda, balançando a cabeça. Ela era uma mulher de uns 30 e poucos anos, com um rosto arredondado e acolhedor, com um leve cansaço nos olhos, mas um sorriso materno e sincero. Seus cabelos castanhos claros estavam presos em um rabo de cavalo simples. — Mas, você não tem medo? Sabe, eu sei que você fez isso para proteger a sua irmã. Se eu tivesse a sua idade, teria feito o mesmo. Mas, eu era inconsequente. Hoje em dia, eu não faria isso. Pensaria em uma forma melhor, ou só abaixaria a minha cabeça.

Cael, com sua postura inflexível, encontra o olhar da mulher.

— Eu não abaixo a minha cabeça, ainda mais para alguém como ele. Não foi isso que minha mãe me ensinou. — Ele diz, sua voz grave carregando um peso de convicção.

— Isso é a cara da Isobel. Ela mesma já enfrentou o "pequeno Goldstain" para proteger Nina. Embora, não tenha sido com violência. — A mulher comenta, um toque de nostalgia em sua voz.

— Você conheceu ela? — Cael pergunta, uma rara pontada de interesse em seu tom.

— "Conheceu" é uma palavra muito forte. Ela nunca foi de conversar, ou interagir, sempre ficava quieta e no fundo da reunião de pais. Nunca consegui conversar com ela, mas ela sempre foi educada. — Responde a mulher, descrevendo uma Isobel muito diferente daquela que Cael havia conhecido nos últimos dias.

— Minha esposa sempre descreveu ela como "A mulher com olhar de leoa.", por causa da cara que ela sempre fazia. Bem parecida com a sua. — O homem comenta, um sorriso no rosto, deixando Cael surpreso com a observação.

— "Ela nunca foi de conversar" "quieta", é bem diferente de como eu me lembro. — Cael comenta, uma ponta de confusão em sua voz.

— A mamãe sempre fica mais à vontade comigo e com o irmão. Ela nunca foi de falar muito com outras pessoas. — Nina comenta, segurando a mão de Cael, com a inocência de quem não percebe a profundidade da conversa.

— Se isso servir como justificativa, ela é uma Empata. Empatas não gostam de locais com muitas pessoas, por causa da quantidade massiva de sentimentos. — Cael diz, uma informação que lança uma nova luz sobre o comportamento de Isobel.

— Ah... Isso explica muita coisa. Bom, de qualquer jeito, eu tenho que ir. Foi bom conversar com você, filho da leoa. — O homem diz, pegando seu filho no colo e indo.

— Tchau, Nina! Tchau, tio! — O garoto, no colo do pai, diz, acenando em despedida.

— Bem, acho que também vou. Ainda tenho que fazer o almoço. — A mulher se despede e vai, deixando Cael novamente sozinho com Nina.

"Acho que Hana e Maya estavam certas sobre interações sociais. Estou começando a me sentir estranho." — Cael pensa, um desconforto crescente em seu peito. A aura de gratidão e os olhares curiosos das pessoas pesavam sobre ele, algo a que não estava acostumado.

De repente, a rua começa a girar. Cael está suando frio, sua visão embaçando, o coração disparando descontroladamente. Uma sensação de sufocamento aperta sua garganta, e a respiração se torna um esforço doloroso. Ele sente, como se estivesse perdendo a força em suas pernas, o corpo vacilando. O cheiro de suor e medo se mistura ao ar. Ele olha para frente, sua visão ainda turva, e vê uma figura à distância. Era a diretora Morgan. Seus olhos, de uma cor indefinível, pareciam absorver a luz, e sua presença, antes quase imperceptível, agora pulsava com uma energia sutil, mas inegável. Ela não se moveu, apenas um gesto quase imperceptível de sua mão, um tremor no ar que só ele pareceu notar, e todo o cenário mudou.

De repente, Cael se vê em um espaço familiar, o chão duro da sala de estar de sua casa sob seus pés, mas ele não tem tempo para processar. Ele cai no chão, ofegante, tudo que escuta são zumbidos agudos. O frio o envolve, apesar do suor em sua pele, e a visão embaçada transforma o ambiente em borrões.

A crise o engole. É como se o ar tivesse sido sugado dos seus pulmões, e cada inspiração se tornasse uma batalha desesperada contra um peso invisível que o esmaga. O coração, um tambor descompassado, martela contra as costelas, tão forte que ele sente as batidas reverberando nos ouvidos, um zumbido agudo que abafa todos os outros sons. O corpo treme incontrolavelmente, os músculos se contraindo em espasmos dolorosos, como se estivesse sendo eletrocutado por dentro. O suor frio escorre pela testa, pelas costas, grudando a roupa na pele, enquanto uma onda de calor insuportável o consome por dentro. A garganta se fecha, um nó apertado que impede qualquer som de escapar, qualquer grito, qualquer súplica. A mente se torna um turbilhão de pensamentos caóticos, fragmentados, imagens distorcidas de medo e impotência. Ele está cego, surdo, paralisado, preso dentro de si mesmo, em uma prisão de pânico que não tem paredes, apenas a escuridão crescente e o terror de estar se afogando sem água, sem ar. Cada fibra do seu ser grita por alívio, por um fim, por qualquer coisa que o tire daquele inferno particular.

Nina, sem entender o que está acontecendo, grita em desespero. Ela se joga sobre ele, as pequenas mãos agarrando seu braço, a expressão de terror em seu rosto.

— Irmão! — Ela grita, a voz esganiçada. Mas Cael não a escuta, preso em sua própria tormenta.

Ela ouve passos apressados vindo em direção a eles. É Hana, que vinha ver o que estava acontecendo, alertada pelo grito de Nina. Ela vê a cena: Nina em prantos e Cael, ofegante, no chão.

— O irmão. Ele... ele... — Nina, em prantos, tenta falar, as palavras presas na garganta.

— Calma, Nina. Ele vai ficar bem. É só uma crise de ansiedade. — Hana diz, sua voz calma e prática, mas com uma ternura latente, enquanto se ajoelha ao lado de Cael. — Cael, vou colocar você sentado, tá? Não faça como sempre. — Ela diz, pegando Cael, com dificuldade, já que ele é mais pesado do que ela, e o senta, apoiando-o contra si. Com uma mão firme, ela esfrega as costas dele, um gesto de conforto. — Está tudo bem. Você está em casa.

Aos poucos, a respiração de Cael se acalma. O zumbido diminui. Um sono incontrolável o atinge, e ele finalmente adormece, a exaustão da crise tomando conta de seu corpo.

— O que você fez? — Nina pergunta, ainda enxugando as lágrimas, os olhos vermelhos e inchados.

— Nada. Só acalmei ele. O sono é por causa da crise. — Hana responde, com um tom tranquilizador.

— Ele vai ficar bem? — Nina pergunta, em um tom melancólico, a pequena voz carregada de preocupação.

— Vai sim, pequena. Não se preocupe. — Hana responde, fazendo um cafuné na cabeça de Nina, um gesto materno.

Só agora, Nina percebe que está em casa, não na rua em frente à escola. Ela olha em volta, confusa.

— Ué? Quando chegamos em casa? A gente estava na escola. — Nina diz, sua testa franzida.

— Eu ia te perguntar isso. Mas acho que vou ter que esperar o Cael acordar. — Hana comenta, um leve sorriso de enigma.

Ela escuta passos vindo da escada. É Maya, que acaba de descer, com uma expressão sonolenta, mas que rapidamente se transforma em choque.

— O que aconteceu, aqui? — Ela pergunta, mas logo nota Cael, dormindo nos braços de Hana. — O que aconteceu? Ele está bem? — Seu tom é de preocupação genuína, a voz carregada de um misto de alívio por vê-lo, e medo pelo que possa estar acontecendo.

Hana põe o dedo na boca, fazendo o sinal de silêncio.

— Ele está dormindo. — Hana sussurra, e complementa, seu olhar firme em Maya. — Eu te explico depois. Agora, eu quero que você coloque ele na cama dele.

Um tempo depois. Maya tinha acabado de colocar Cael em sua cama. O quarto, que antes era uma fortaleza impenetrável para ela, agora parecia... estranhamente familiar, mas ainda carregava o peso de anos de afastamento.

— É a primeira vez, em muito tempo, que eu entro no quarto dele... — Maya sussurra, seu tom era baixo, quase um sopro, para não acordar Cael, que dormia profundamente, exausto pela crise.

Nina, em silêncio, se aproxima do canto da cama. Seus pequenos olhos fixos no irmão mais velho. Com cuidado, ela sobe na cama, senta-se ao lado de Cael e, em seguida, deita-se, aconchegando-se perto dele, como se quisesse protegê-lo em seu sono. Maya ia falar algo, talvez para tirar Nina dali ou para comentar o gesto, mas Hana a impede. Ela coloca a mão suavemente no ombro de Maya, fazendo um sinal sutil com a cabeça para que as duas saiam e deixem Cael e Nina a sós. Elas saem do quarto, a porta se fechando com um clique suave, selando aquele momento de vulnerabilidade.

As duas descem as escadas. O silêncio da casa as acompanha até a sala, onde Maya finalmente quebra a quietude.

— Agora você vai me explicar o que aconteceu? — Maya questiona Hana, a voz embargada pela preocupação, que contrastava com sua postura geralmente mais controlada.

— Não se preocupe. Cael só teve uma crise de ansiedade. Talvez, pelo excesso de interações sociais. — Hana explica, o tom de médica voltando, prático, mas ainda carregado de um cansaço que ia além das horas de plantão.

— Haah. — Maya solta um suspiro pesado de frustração, quase um resmungo contido. — Nós falamos para ele. Por que ele tem que ser tão teimoso?

— É normal. Muitos homens preferem enfrentar seus problemas sozinhos, suas próprias batalhas. É algo instintivo, natural para um homem. O problema é... — Hana diz, sua voz começando a perder a calma habitual, um fio de emoção surgindo.

— "É..."? — Maya a incentiva, percebendo a mudança de tom da Hana, algo raro de se ver.

— Nem sempre eles vencem... Não sozinhos. Por isso eu sugeri que ele procurasse ajuda. Vocês... Nunca me contam tudo. Eu estou no escuro quando se trata do que sentem. Eu não sei, exatamente, o que fez o Cael se isolar. E também, não sei o porquê de vocês terem ficado tanto tempo sem se falar. Mas, eu faço o meu melhor para apoiar vocês. E você... Eu sei que você está escondendo algo, Maya. Sua obsessão pelo Cael não é normal, tem que ter algum motivo. — Hana desabafa, a voz subindo um tom, cada palavra carregada de uma frustração acumulada há anos. Seus olhos, antes cansados, agora brilhavam com uma mistura de desespero e preocupação.

Maya fica chocada. Nunca vira Hana se expor daquele jeito. Ela vê os olhos marejados da Hana, o cansaço profundo que marcava seu rosto.

— Me desculpe... Eu, cheguei no meu limite. — Diz Hana, respirando fundo, a tensão escoando de seus ombros, o corpo relaxando um pouco na poltrona.

Maya, por um instante, hesita. O peso das palavras de Hana, a sinceridade crua, a atinge como um golpe silencioso. Ela olha para as próprias mãos, que começam a tremer levemente. A voz da Hana ecoa em sua mente: "Sua obsessão pelo Cael não é normal..."

— Não é... não é obsessão. — Maya sussurra, a voz quase inaudível, mas com uma intensidade feroz, como se estivesse se defendendo de uma acusação muito maior do que a da Hana. Ela levanta os olhos para a Hana, e neles há uma mistura complexa de medo, gratidão pela preocupação, e uma dor profunda. — Ele é... o único. O único que... que sempre foi. Eu... eu não posso perder ele de novo. Você... você não estava lá. Ninguém estava.

Ela desvia o olhar novamente, os olhos fixando-se em um ponto distante na sala, como se revivesse um pesadelo. Sua mão se aperta contra a coxa, quase formando um punho, um gesto de autocontenção desesperada.

— Ele é o único que me entende. O único que sabe o que é... o único que eu consigo confiar de verdade. Não é obsessão. É... segurança. Ele é a minha segurança. E eu... eu não vou falhar com ele de novo.

Hana olha para Maya, percebendo a barreira invisível que a garota ainda mantinha. Ela compreende que Maya não estava pronta para lhe dizer, exatamente, o que a afligia, não naquele momento.

— Tudo bem. — Hana diz, sua voz sai quase como um suspiro resignado, mas cheio de afeto. — Não precisa me dizer, se não estiver pronta. Mas... Eu estou aqui, se precisar. — O tom de Hana é sereno, oferecendo um porto seguro incondicional.

Maya percebe o que Hana quis dizer, a aceitação e o carinho em suas palavras. Ela agradece com um olhar compreensivo e um pequeno sorriso melancólico.

— Mudando de assunto. — Maya diz, mudando o tom para um mais alegre, quase forçado, como quem quer fugir da tensão. — Eu não disse isso antes, mas, com a Nina morando com a gente, as contas podem ficar mais caras. Você tá de boa com isso? — Maya questiona, tentando retomar a normalidade.

Hana se surpreende e solta uma risada leve, quebrando a tensão anterior.

— Não se preocupe com isso. Faz uns três ou quatro anos que eu não pago as contas de casa. É o Cael quem paga. — Hana diz, deixando a Maya completamente surpresa.

— O Cael? — Os olhos de Maya se arregalam. — Por isso que, quando ele foi comprar pão, ele não tinha te pedido dinheiro. Quando foi que isso aconteceu? Porque ele não iria chegar para você e falar "Agora sou eu quem paga as contas." — Maya questiona, até tentando imitar a voz monótona do Cael e arrancando uma risada genuína da Hana.

— Foi do nada. Eu fui pagar as contas, mas aparecia uma mensagem de que ela já estava paga. Quando voltei para casa, Cael estava voltando da cozinha e eu acabei comentando com ele, então ele me disse "Eu já paguei." e foi para o quarto como se aquilo fosse senso comum. Desde então, é ele quem tem pago todas as contas, por isso que eu tenho dinheiro sobrando. — Hana explica, um toque de humor e admiração na voz.

— Espera. Se é o Cael quem tem pago as contas da casa, por que você tem ido tanto a plantões? — Maya questiona, a confusão se misturando à surpresa.

Hana para, sua expressão se tornando séria novamente. Ela se senta no sofá, a leveza anterior se dissipando.

— Porque eu me tornei médica para usar os meus poderes para salvar vidas. Não para ganhar dinheiro. O dinheiro é só uma consequência. — Hana diz, a voz firme, carregada de convicção.

— Mas, eu me lembro de você ter se negado a ser médica militar e ir para a guerra contra os mutantes. Você não poderia ter salvado mais vidas lá? — Maya a questiona, a curiosidade sobre as motivações da Hana superando qualquer desconforto.

Hana olha para a garota, seus olhos fixos.

— Não. Eu não vou, porque eu não concordo com a guerra. Ir para ela, não vai salvar vidas. Se a Carolina Seraphyne ainda estivesse no senado, essa guerra não estaria acontecendo. Ela foi a meu "ídolo" na adolescência. Me inspirou a trilhar um caminho de salvar vidas. Entrar em uma guerra, independente da minha função nela, não combina com os valores que ela transmitia, e que eu quero seguir. — Hana diz, sua voz se enchendo de respeito e idealismo.

— Essa Seraphyne... Eu estudei sobre os Seraphyne. São várias famílias que carregam o mesmo sobrenome. São muito poderosos, mas são reclusos. A Carolina Seraphyne foi o primeiro membro dessa família que se expôs ao mundo. Mas, desapareceu misteriosamente. Ninguém sabe se ela está viva ou morta. Não sabia que você era fã dela. — Maya comenta, sua curiosidade aguçada pela revelação sobre a misteriosa figura.

Hana puxa, de um compartimento secreto no sofá, uma revista antiga com a foto de Carolina Seraphyne. Na capa, uma mulher de beleza estonteante estampava a página. Seus cabelos pretos e longos caíam em ondas suaves, emoldurando um rosto de traços finos e delicados, com olhos castanho-escuros penetrantes que pareciam transmitir uma inteligência afiada e uma bondade inerente. Sua pele clara contrastava com a escuridão dos cabelos, e um vestido longo e elegante, possivelmente de seda ou algum outro tecido nobre, realçava sua postura altiva e elegante. O vestido, em um tom de azul profundo, valorizava suas curvas de forma sutil, e ela exalava uma aura de poder e calma, mesmo em uma fotografia estática.

— Ela era um modelo para todas as meninas na minha época. Um modelo de beleza, bondade e carisma. — Hana diz, com um tom de admiração e saudade em sua voz, os olhos fixos na imagem da mulher.

Hana passa um tempo conversando com Maya, contando histórias sobre a lendária Carolina Seraphyne e de como ela inspirou uma geração inteira de mulheres com seus ideais e ações.

Mais um tempo se passa. Cael acorda e se depara com Nina, que estava dormindo ao seu lado. Ele sabe o que aconteceu, a crise de ansiedade, a exaustão que o levou ao sono. Lentamente, ele passa a mão na cabeça, jogando o cabelo para trás, e se levanta da cama, cuidadosamente, para não acordar Nina. Ele a observa por um momento; mesmo dormindo, a expressão dela ainda tinha um resquício de rigidez. Cael, então, esboça uma tentativa de fazer um cafuné, mas trava, como se estivesse com vergonha. Superando a hesitação, ele, carinhosamente, acaricia os cabelos de Nina. A expressão dela relaxa sob seu toque, e um ligeiro sorriso desponta em seus lábios. Cael sente o coração um pouco mais leve e quente. Não há laços sanguíneos entre os dois, e eles se conhecem há pouco tempo, mas ele sente que ela é sua irmã mais nova, sente que deve protegê-la, amá-la e cuidar dela.

Cael resolve deixar o quarto, permitindo que Nina continue dormindo em paz. Ele sai, fechando a porta cuidadosamente, e desce para a sala. Já é noite, por volta das dez. Quando Cael chega na sala, Hana ainda está lá, sentada no sofá, com as costas apoiadas no braço e as pernas esticadas enquanto assiste televisão. Ela nota a presença de Cael, mas não fala nada, respeitando o espaço dele. Cael se aproxima.

— O que está assistindo? — Cael pergunta, sua voz saindo tímida, um tom incomum para ele.

Hana se surpreende com a pergunta. Responde, desviando o olhar da tela:

— Na verdade, eu não sei. Estou esperando o programa que diz ter novidades sobre o caso de desaparecimento da Carolina Seraphyne.

— Agora? Depois de quê? Uns vinte ou vinte e cinco anos? — Cael questiona, surpreso.

— Vinte... Eu acho... Pode ser mais uma jogada de marketing. Mas o público não recebe bem notícias falsas sobre ela, e eles sabem disso. Então, se eles falam que tem novidades sobre o caso, então deve ter sim. — Hana diz, com uma ponta de esperança na voz.

Cael se aproxima do sofá. O móvel não é muito grande, e Hana ocupa a maior parte dele. Hana nota que Cael quer se sentar, então ela recolhe a perna, e Cael se ajeita, cuidadosamente, no espaço livre. Os dois ficam em silêncio, um silêncio que se estende, meio desconfortável para ambos, mas Hana o mantém. Ela não quer forçar nada, mesmo sem saber o que Cael pretende dizer.

— ...Obrigado... — Cael diz, mas sua voz sai baixa, quase um sussurro. Ele não está acostumado a demonstrar esse tipo de sentimento e vulnerabilidade.

— Não se preocupe... Por mais que você não me veja assim, eu enxergo você como o meu filho. Eu faria de tudo por você, mesmo ausente. — Hana diz, e respira fundo. — Talvez eu tenha sido ausente até demais...

Cael não diz nada, mas ao olhar para Hana, ele vê a expressão triste dela, carregada de arrependimento.

— Minha ausência fez você se isolar, a Maya se tornar obcecada por você e, visivelmente, ter uma forma de fobia social. E... aquele incidente entre os dois... — Hana diz, e quando ela cita o "incidente" entre Maya e Cael, os olhos de Cael se arregalam em surpresa.

— Você sabe? — Cael pergunta, a voz carregada de choque.

— Eu sei que teve um incidente maior e mais recente, mas não sei o que foi. Também sei que você não vai me contar. E eu não vou forçar, por mais que me doa... — Hana diz, sua voz suave, mas firme.

Cael fica em silêncio por um tempo. O peso daquelas memórias o oprime, mas a sinceridade de Hana, sua disposição em não forçá-lo, paradoxalmente, o encoraja. Ele respira fundo e, com a voz embargada pela dor da lembrança, decide:

— Aquele dia... — Cael começa, as palavras saindo arrastadas, como se cada uma carregasse um peso imenso. — Maya estava mais desesperada do que o normal. Todos os dias, nos últimos quatro ou cinco anos, ela vivia pedindo perdão. Dizia que nunca mais iria me abandonar ou... dizer aquelas palavras novamente. Eu... — Ele pausa, um nó na garganta. — Eu não disse isso para ela. Mas, eu estava disposto a perdoá-la. A me... reaproximar dela. Mas nesse dia... Talvez, se eu tivesse contado isso para ela antes...

Ele para, respira fundo, os ombros tensos com a memória dolorosa.

— Está tudo bem. Não precisa se forçar a dizer. — Hana diz, preocupada que Cael esteja se pressionando demais.

— Não. Eu, preciso colocar isso para fora. — Cael insiste, a determinação em seus olhos marejados.

Cael fecha os olhos por um momento. As palavras parecem presas em sua garganta, a cena se desenrolando novamente em sua mente.

[INÍCIO DO FLASHBACK - PERSPECTIVA DE CAEL]

Era uma noite fria. Eu estava no meu quarto, como de costume, tentando afastar os pensamentos que me perseguiam, quando a porta se abriu com um estrondo. Era a Maya. Ela estava... diferente. Seus olhos, normalmente tão cheios de uma tristeza contida, agora transbordavam de um desespero que nunca tinha visto. Antes que eu pudesse perguntar o que estava acontecendo, ela... ela começou a tirar a roupa.

Eu não entendi. Meu cérebro simplesmente não processou o que estava acontecendo. Ela não estava me olhando com luxúria, mas com uma súplica silenciosa, os lábios tremendo, o corpo nu exposto ao frio do quarto, mas tremendo mais por algo interno. Ela estava chorando. Lágrimas silenciosas rolavam pelo seu rosto enquanto ela me olhava, quase implorando.

"Eu não posso te perder, Cael", ela sussurrava, a voz quebrada, quase inaudível. "Eu não tenho mais ninguém. Por favor... eu faço qualquer coisa. Qualquer coisa para que você não me deixe de novo. Eu... eu não aguento mais."

Meu coração gelou. Eu não via desejo. Eu via... o pavor. O desespero mais puro. Ela não estava tentando me seduzir. Ela estava tentando se oferecer como um sacrifício, como se seu corpo fosse a última moeda de troca para me manter. Era... nojento. Não ela, mas a situação. O que a levou a isso? O que fez a Maya, quem eu considerava minha irmã, chegar a esse ponto? Eu não podia fazer nada. Eu não sabia o que fazer. Ela estava tão quebrada. E eu? Eu não podia ser a solução para a dor dela daquele jeito.

Eu recuei, não sabendo o que fazer. Não conseguia mais olhar para ela assim. Então, sem pensar, minhas mãos se estenderam, não para tocá-la, mas para usar o que eu tinha. Com um tremor, forcei minha telecinese. Um lençol que estava em minha cama se ergueu no ar e, delicadamente, mas com firmeza, cobriu o corpo nu de Maya. Em seguida, com um movimento quase imperceptível da minha mente, a forcei para trás. Ela não foi jogada com violência, mas um empurrão invisível a guiou para fora do quarto, para o corredor.

[FIM DO FLASHBACK]

Cael abre os olhos, que agora estão marejados, mas ele se força a não chorar. A sala parece mais fria, as sombras mais longas. Ele respira fundo, a memória ainda vívida, a voz embargada pela dor.

— Eu fiquei com tanta raiva, e nojo... Não dela, nunca dela. Mas da situação. Do que a levou a isso. Do que eu vi nos olhos dela. Aquele desespero. Eu não conseguia respirar. Eu não... eu não podia ser a solução para a dor dela daquele jeito. Não assim. Eu só queria fugir.

Hana ouve em silêncio, a respiração presa na garganta. Sua expressão muda de surpresa para um horror crescente, os olhos arregalados, a mão instintivamente cobrindo a boca. Ela não consegue formular uma palavra, apenas balança a cabeça em negação, processando a gravidade do que acabou de ouvir. A ficha cai. A "obsessão", as roupas de Maya, a fobia social, a fala "ninguém estava"... tudo se encaixa de uma forma brutal.

O choque é palpável. O silêncio que se segue é diferente de antes, agora carregado de uma nova e pesada compreensão.

— Eu... Não sei o que dizer... O que houve com Maya para ela chegar a esse extremo? — Hana pergunta, o horror ainda estava em sua voz, mas misturado com uma dor profunda pela garota.

Cael respira fundo.

— Eu não sei... Eu, nunca perguntei para ela. E eu não sei se ela vai dizer. — Cael responde, a voz carregada de uma impotência palpável.

Hana se levanta. Seus olhos perdidos, mas com uma nova e terrível clareza.

— Eu... acho que eu vou pensar um pouco... — Hana diz, sua voz fraca, enquanto sai da sala e vai para os fundos da casa, buscando um espaço para processar a informação devastadora.

Cael permanece em silêncio, envolto em seus próprios pensamentos, no peso da memória e na nova realidade compartilhada com Hana. Até que algo o tira de sua mente, o som da televisão.

— "De acordo com a nossa investigação, Carolina Seraphyne teria sofrido uma tentativa de assassinato enquanto estava grávida. Provas apontam que ela resolveu viver escondida, em algum lugar, para criar a criança em segurança e não sofrer mais com as pressões políticas dos elitistas." — Diz o repórter com seriedade.

Cael começa a prestar atenção, mais atentamente, a cada palavra.

— "Ainda não temos muitas informações sobre qual era a sua identidade, mas temos um retrato falado de uma mulher que tinha um rosto muito parecido com o dela, mas tinha características diferentes." — Revela o repórter, e a tela mostra o retrato.

A mulher no retrato falado possuía cabelos ruivos vibrantes, com algumas mechas mais claras, e seus olhos eram de um tom incomum de alaranjado, quase âmbar, que lhe conferiam um olhar intenso e misterioso. As sobrancelhas eram finas e bem definidas, e seus lábios, finos mas bem desenhados, pareciam esboçar um leve sorriso enigmático. Embora a cor do cabelo e dos olhos fosse diferente da Carolina Seraphyne da revista, a estrutura óssea do rosto era inegavelmente semelhante: o mesmo formato oval, o nariz reto e delicado, e o queixo levemente proeminente. A semelhança era inegável, apesar das diferenças marcantes. O quão parecido era o rosto das duas não deixava dúvidas.

— Mãe? — Ele diz, incrédulo, o nome escapando de seus lábios em um sussurro chocado.