A madrugada ainda abraçava o céu quando os primeiros tons azulados surgiam no horizonte, anunciando que o Sol estava por vir, mas ainda não havia chegado. O mundo estava suspenso naquela breve transição entre o fim da noite e o começo do dia. A floresta, densa e fria, exalava um cheiro úmido de terra, folhas molhadas e silêncio.

Ali, no coração daquele oceano verde, isolado do mundo, uma cabana simples se erguia. As tábuas de madeira desgastadas estavam manchadas pelo tempo, rachaduras atravessavam o teto, e teias de aranha adornavam os cantos como se fossem tapeçarias esquecidas. A luz tênue da Lua, prestes a se esconder, invadia o espaço através das frestas, formando feixes prateados que cortavam a penumbra do interior.

No centro da cabana, sentado no chão de madeira, estava ele, Cael. Seu corpo permanecia imóvel na posição de lótus, como se ele próprio fosse parte daquela floresta. Seus cabelos pretos, longos e bagunçados, caíam sobre seus ombros e parte do rosto, ondulando levemente a cada sopro de vento que atravessava a porta entreaberta. Sua pele clara, quase pálida sob a luz fria, contrastava com as sombras projetadas no ambiente.

Seus olhos, estavam fechados. Suas mãos repousavam sobre os joelhos, os dedos ligeiramente curvados, enquanto respirava de forma lenta e profunda, ou, pelo menos, tentava. Mas nem toda a meditação do mundo parecia capaz de acalmar aquela tempestade que rugia dentro dele.

O peso dos últimos dias esmagava seus ombros. As lembranças eram afiadas, perfuravam sua mente sem dó. A discussão com Maya. O olhar acusador da irmã da Aurora. O sangue no asfalto. A promessa feita para Nina.

"Por quê?" — Ele se perguntava em pensamento. — "Por que eu prometi? Eu nem a conheço direito..."

Mas, no fundo, ele sabia. Sabia exatamente o motivo, mesmo que sua consciência se recusasse a aceitar. E foi então que ela veio.

Uma voz. Sussurrada. Profunda. Fria. Como se fosse a própria sombra de seu pensamento, mas com um tom que carregava o peso da dor, da culpa, do medo – a manifestação de sua culpa silenciosa e seu medo de perder novamente.

— "Você só vai magoá-la... igual fez com a Rose... igual fez com a mamãe..."

Assim que a palavra "mamãe" atravessou seu peito, Cael abriu os olhos abruptamente. Seu corpo inteiro estremeceu, tomado por um choque interno. A respiração disparou. As pupilas dilataram. O suor escorreu pela têmpora, gelado como a lâmina de uma faca encostando na pele.

Ele ficou alguns segundos ali, imóvel, arfando. Até que, quase como um reflexo de autopreservação, se colocou de pé com violência, os pés, calçados com um tênis de solado plano, rangendo sobre a madeira seca.

Ele precisava sair dali. Agora.

Empurrou a porta da cabana, que rangeu alto, e atravessou o campo de força invisível que cercava toda aquela área, um campo que sua telecinese mantinha ativo enquanto estivesse na floresta, isolando aquele refúgio do restante do mundo, protegendo-o até mesmo da presença humana.

Assim que cruzou a barreira, o cheiro da floresta deu lugar ao da cidade. Passos firmes. Ombros tensos. A cabeça abaixada. Ele avançava como uma sombra ambulante pelos becos, calçadas e ruas, um vulto, deslocado do mundo ao redor.

O céu começava a se tingir de tons dourados e alaranjados. A cidade despertava lentamente. Luzes dos postes começavam a se apagar, uma a uma. Trabalhadores saíam apressados, com olheiras fundas e copos de café nas mãos. Crianças bocejavam nas calçadas, com mochilas maiores que elas, esperando os ônibus escolares. Carros circulavam em marcha lenta, cuspindo fumaça e tédio.

Cael, perdido nos próprios pensamentos, não olhava para nada, nem para ninguém. Era como se o mundo inteiro estivesse em preto e branco, e ele fosse a única peça fora de lugar naquele cenário.

Até que... algo quebra o padrão.

Ao virar uma esquina, percebe uma movimentação estranha em um dos becos. Três moleques, com roupas de uma escola cara, bonés de marca e tênis mais caros que a casa de muita gente, corriam. Mas não fugindo. Eles perseguiam alguém.

Cael desacelera os passos. Seus olhos se estreitam. Um desconforto crescente aperta seu estômago. Algo nele, uma intuição, um sexto sentido, grita para ele olhar. Para intervir. Sua natureza protetora emergindo.

Silenciosamente, vira na direção do beco.

E lá estão eles. Três garotos, espancando alguém. Uma criança, claramente menor, está agachada, com os braços cruzados sobre a cabeça, tentando se proteger dos socos e dos chutes. O som das gargalhadas ecoa, misturado aos xingamentos:

O líder do trio era um moleque loiro, de aproximadamente 6 anos, com um rosto arredondado e bochechas ligeiramente cheias, que denunciavam seu tipo físico "meio gordinho". Seus cabelos loiros claros eram curtos e espetados, e o nariz pequeno e ligeiramente arrebitado dava-lhe um ar de superioridade. Os lábios cheios estavam curvados em um sorriso presunçoso, e os grandes olhos azuis carregavam uma expressão de intensa petulância e crueldade infantil. As sobrancelhas finas e loiras estavam arqueadas em desdém, e os cílios claros mal se destacavam.

Ao lado dele, um garoto de cabelos castanhos claros e olhos verdes, com um rosto mais afilado e sardas discretas, desferia chutes com menos convicção. O terceiro, um menino de cabelos pretos e olhos escuros, com um rosto mais quadrado e uma expressão de tédio, parecia apenas seguir o líder por inércia.

— Pobre de merda!

— Imunda! Verme!

— Gente como você devia sumir do mundo!

O sangue de Cael ferve. Mas, por fora, seu rosto não muda. Não há raiva aparente, nem fúria. Apenas um olhar vazio e frio, a expressão impassível que mascarava a tempestade interna.

Sem dizer uma palavra, ele levanta a mão direita, os dedos relaxados, como quem segura algo invisível. E, subitamente, os três moleques são erguidos no ar, como bonecos de pano, suspendendo-se meio metro do chão.

Eles gritam, se debatem, chutam o ar. Mas é inútil.

Cael apenas os desloca, jogando-os mais para longe da criança agachada. Não os machuca. Só os afasta.

Quando um deles tenta abrir a boca para falar, Cael apenas ergue o olhar na direção deles. Não disse uma única palavra. Mas bastou.

Os três, instantaneamente, empalidecem. E correm. Correm como se o próprio diabo estivesse na cola deles.

— Você vai se ver com o meu irmão mais velho! Ele é muito forte, ouviu? — Grita o moleque loiro, enquanto se desequilibra na correria.

Cael não responde. Não reage. Apenas se vira, lentamente, em direção à criança caída.

Quando ela levanta o rosto... seu coração dá um leve tranco.

— Irmão!! — Grita Nina, correndo em direção a ele e se agarrando às suas pernas, as lágrimas rolando descontroladamente pelo rosto sujo.

Por alguns segundos, Cael fica parado, sem saber como reagir. Sua inabilidade com demonstrações de afeto era evidente. Até que sua mão, quase automaticamente, se move e pousa sobre a cabeça da garotinha, fazendo um leve carinho desconcertado.

Um tempo depois. O sol começava a beijar o horizonte, tingindo as nuvens de dourado e laranja, enquanto o vento matinal soprava suave, carregando o cheiro de pão recém-assado, fumaça de escapamento e folhas molhadas.

Na praça ao lado do beco, dois corpos muito diferentes, mas absurdamente parecidos, estavam sentados lado a lado em um banco de madeira gasto. Cael, com seu semblante habitual, frio, inexpressivo, e olhos semicerrados, e Nina, encolhida ao seu lado, com os olhos ainda levemente inchados de tanto chorar.

Ela vestia seu uniforme escolar, uma blusa branca de mangas curtas, uma gravata azul-marinho frouxamente ajustada, e uma saia longa azul plissada, inspirada nos clássicos uniformes japoneses. Seu cabelo preto, liso, longo e solto, balançava com cada rajada de vento, e sua pele clara estava suja de terra, com algumas marcas da agressão recente.

Cael observava ela de soslaio, com aquele olhar que, para quem não conhece, parece desinteressado... mas quem conhece sabe que ele tava observando cada microexpressão dela, cada movimento, cada sinal de dor escondida, a percepção aguçada de um super-humano.

— Agora que tudo passou... — Ele quebrou o silêncio, sua voz grave, rouca, arrastada — Por que eles estavam fazendo aquilo com você?

Nina apertou as mãos no próprio colo, com os dedos tremendo. Desviou o olhar, encarando o chão de terra batida.

— ...Porque eu sou pobre... — Sua voz saiu falha, quebradiça, mas firme. — E... inferior... foi o que eles disseram...

O maxilar de Cael travou. Ele respirou fundo, mas manteve o olhar impassível, encarando a linha do horizonte.

— Pobre... você é. — Ele disse, seco, direto, e Nina arregalou os olhos, surpresa, até magoada por um segundo — ...Mas inferior? Não. Isso, você não é.

Ela piscou, confusa, levantando o olhar para ele.

— Você estava se segurando. Eu percebi. Você podia ter acabado com eles. — Completou, cruzando os braços.

Nina balançou a cabeça, meio envergonhada, meio assustada.

— Mas... eu não posso. A diretora disse que Super-Humanos não podem bater em Humanos... que é crime... que é errado... — A voz dela ficou cada vez mais baixa, como se estivesse se encolhendo dentro das próprias palavras, o medo de usar seu poder evidente.

Cael olhou diretamente nos olhos dela. Olhos que, apesar de pequenos, refletiam um peso que criança nenhuma deveria carregar.

— E eles sabem disso... — Respondeu, sério. — Se aproveitam disso. Jogam com as regras. Se escondem atrás da própria fraqueza.

Nina abaixou a cabeça, apertando as mãos no joelho.

— ...Tem mais uma coisa. — Cael continuou, inclinando-se levemente. — Seus olhos... Você tava segurando, né?

Ela gelou. Respirou fundo e, com muita relutância, balançou a cabeça afirmativamente.

— Meu poder... é... — Mordeu o lábio inferior, olhando para os lados, para ter certeza de que não tinha ninguém por perto — Eu solto raio laser pelos olhos... mas... é muito forte... toda vez que uso... eu sou jogada pra trás... machuca meu pescoço... eu bati em uma árvore uma vez... quase quebrei as costas... — a voz dela ia ficando mais fina, mais embargada. — Meu poder é inútil...

Silêncio. Por uns dois segundos, só o som do vento atravessando as folhas.

Até que um estrondo seco quebra o ar.

"FWOOSH."

Uma rajada óptica azul neon atravessa o chão da praça, deixando um rastro queimado de quase dois metros. Nina arregala os olhos, dá um pulo no banco, segurando o próprio queixo de tanto choque.

Ela olha pra Cael, que ainda estava com os olhos levemente brilhando de azul, como se aquilo fosse a coisa mais casual do mundo.

— Não é inútil. — Ele sentencia, cruzando os braços, com aquele tom pesado, de quem fala pouco mas fala tudo.

O choque virou um sorriso. Depois virou um brilho. Depois virou esperança. Nina parecia ter esquecido por completo tudo que tinha acontecido minutos antes. Ela literalmente saltou no banco, segurando o braço do Cael.

— VOCÊ TAMBÉM CONSEGUE, IRMÃO!?! PODE ME ENSINAR?? — Perguntou, com olhos gigantes, brilhando como faróis.

Cael desviou o olhar, meio desconcertado. Passou a mão pelo próprio cabelo, puxando os fios pra trás, respirou fundo.

— ...Posso. — Respondeu, meio relutante — Mas tem uma condição. Você não conta pra ninguém.

Nina acenou tão rápido que parecia um boneco de mola.

— Sim, sim, sim!! Segredo absoluto! — Disse, levando o dedinho mindinho até a boca, como selando a promessa.

Cael respirou fundo, ajeitou a postura, e passou a mão levemente na cabeça dela, limpando a poeira do cabelo e das roupas.

— Tá. Mas agora... bora. Você vai se atrasar pra escola. — Disse, se levantando.

Nina imediatamente agarrou na mão dele, fazendo um biquinho adoravelmente chantagista.

— Você vai me levar!! — Declarou, olhando para ele como se essa fosse a única verdade possível no universo.

Cael piscou. Respirou fundo. Soltou aquele famoso "Hmmm..." estilo Geralt.

— Tá. — Respondeu, simples assim, como se tivesse aceitado seu destino.

E lá foram eles. Ela segurando firme na mão dele, praticamente arrastando aquele homem de quase dois metros pela calçada como se ele fosse só mais um irmão mais velho qualquer.

Caminharam até a escola, um prédio simples, com muros pintados de azul claro, desgastados pelo tempo, e portões brancos, meio descascados. Na entrada, uma jovem mulher, de aproximadamente 1,75m, com cabelos castanhos presos em um coque meio bagunçado, pele levemente bronzeada e olhos verdes, observava os alunos chegando. Era a porteira, que exalava uma energia carismática e um olhar atento.

Ela sorriu ao ver Nina, acenando.

— Bom dia, Nina! Anda, entra, antes que se atrase! — Disse, simpática.

Nina largou a mão de Cael, acenou de volta com energia.

— Tchau, irmão! — Gritou, correndo em direção ao portão.

Cael ficou ali, observando-a desaparecer no mar de mochilas, risadas e passos apressados.

Mas antes que ele se virasse para ir embora, a mulher na entrada se aproximou dele, cruzando os braços.

— Você deve ser o irmão da Nina. — Disse, sorrindo — Sou Lilia Verdanis, a porteira da escola. Só pra te avisar... horário de saída dela é meio-dia, tá bom?

Cael, sem alterar expressão nenhuma, apenas acenou com a cabeça, agradecendo silenciosamente.

Enquanto se virava para ir embora, Lilia o olhou de cima a baixo e pensou, mordendo o lábio inferior:

"Eles são tão parecidos... Estranho... nunca vi ele com a mãe dela antes. Será que morava fora?"

E, com isso, ele se afastou, sumindo no meio da multidão, como uma sombra que não pertencia à luz do dia.

O som abafado da cidade preenchia o fundo, enquanto os passos de Cael ecoavam sobre a calçada. O vento da manhã bagunçava seus cabelos negros, que caíam desordenados sobre o rosto. Ele andava... e andava... perdido nos próprios pensamentos, como uma sombra, vagando sem rumo fixo.

Nem percebeu quando o cenário mudou. Quando deu por si, estava ali. Diante do hospital. O mesmo onde, há tão pouco tempo, Aurora estava internada... e, mais importante, onde conheceu Nina.

Franziu a testa, confuso.

"Por que...?" — Se perguntou mentalmente.

Não sabia responder. Seus pés simplesmente o trouxeram ali, como se carregassem memórias e vontades que ele mesmo não entendia.

Mas algo logo arrancou ele desse transe.

Sentada em um banco, banhada pelo dourado suave do Sol da manhã, estava uma mulher de aproximadamente 30 a 35 anos. Sua beleza se mantinha etérea e tocante, mesmo diante da fragilidade. Com cerca de 1,65m, sua figura era delicada e visivelmente consumida, mas seus traços ainda revelavam a essência de uma beleza que um dia foi vibrante. Vestia aquelas roupas de hospital brancas, largas e simples, que não ocultavam a magreza de seu corpo. Mas o que mais chamava atenção... era o cabelo negro absurdamente longo, liso e denso, tão longo que se espalhava sobre o banco e escorria até o gramado verde e impecavelmente aparado do jardim do hospital, balançando com cada sopro do vento.

Sua pele era alva, pálida, quase translúcida, contrastando com o preto dos fios. O rosto oval, com traços finos e delicados, preservava uma beleza etérea, marcada pelo emagrecimento e pelo cansaço. Seus olhos castanho-claros, grandes e profundos, carregavam o peso das dores e a serenidade de uma empata, e os lábios finos e secos se curvavam em um sorriso suave e quase triste.

Ela notou a presença de Cael imediatamente. Não com um susto, nem surpresa. Mas com um sorriso suave, como se... já esperasse por ele.

— Você é... exatamente como a Nina descreveu... — Disse, quebrando o silêncio com uma voz tão serena que parecia uma canção adormecida. — Confesso que achei que ela estivesse sonhando quando falou de você. Mas... nunca vi mentira nos olhos dela.

Cael ficou imóvel. Franziu levemente a sobrancelha.

— ...Você é uma empata. E... é a mãe da Nina. — Concluiu, sua voz fria, mas levemente intrigada, sua percepção apurada já trabalhando.

Ela sorriu, confirmando com um aceno delicado.

— Acertou. — Respondeu. — E... obrigada. De verdade. Por aliviar, mesmo que só um pouco, o peso que minha filha carrega. Nenhuma criança deveria carregar o fardo de ver sua mãe... desaparecer aos poucos.

Sem saber bem o porquê, Cael se aproximou. Não disse nada. Apenas... sentou-se ao lado dela. Um gesto raríssimo vindo dele, que evitava o contato social.

Isobel observou o horizonte por alguns segundos antes de voltar os olhos para ele.

— Sabe... Eu não sinto maldade em você. Pelo contrário. Sinto... algo profundo. Uma conexão... como se vocês dois, você e Nina, tivessem nascido para serem irmãos. Algo escrito. Algo... inevitável. — Ela respirou fundo. — Aliás... Me chamo Isobel.

Cael desviou o olhar, encarando qualquer coisa que não fosse ela.

— Prazer... Cael. — Respondeu, curto, seco. — Mas... sinto que você não me chamou aqui só pra agradecer...

Ela hesitou. Suas mãos se apertaram no tecido fino do próprio vestido hospitalar. A expressão serena deu lugar a algo mais... vulnerável.

— Cael... Eu sei que é pedir muito... que pode parecer absurdo... mas... — Sua voz falhou, tremendo — A Nina não tem ninguém além de mim. Nenhum parente. Nenhum apoio. O pai dela... não é confiável. E... — Segurou a respiração, apertando as próprias mãos até os nós dos dedos ficarem brancos — ...eu confio em você. Nina confia em você. Meu dom nunca falhou. Então... — Ela estendeu a mão, segurando a dele — Por favor... Cuide da Nina. Por mim. Por ela.

O toque gelado da mão dela encontrou a pele quente do Cael. E, curiosamente... ele não afastou. Não se esquivou. Não ergueu a telecinese como sempre fazia. Isso... era estranho. Até pra ele.

Ele a encarou nos olhos. Nos olhos dela havia algo raro. Esperança. E esperança era algo que Cael não via há anos.

Aquilo fez ele desviar o olhar, desconcertado. — ... — E, pela primeira vez em muito tempo, sentiu suas bochechas esquentarem, um raro rubor de emoção genuína.

Isobel também percebeu. Sorriu de canto, meio tímida, até corou um pouco.

— Me desculpa... me empolguei... — Tentou se retrair, sem saber onde enfiar a cara.

Mas Cael a cortou, respirando fundo:

— Eu faço isso. — Sua voz soou grave, firme, uma promessa irrefutável.

Isobel arregalou os olhos, quase sem acreditar. — Sério...? Você tá falando sério?

Ele acenou, encarando agora o chão.

— ...Sim. Pela Nina. — A última parte saiu mais baixa, meio envergonhada, quase um sussurro perdido no vento, mas cheia de significado.

E, antes que ele pudesse reagir, Isobel simplesmente se jogou nele e o abraçou.

— Obrigada, obrigada, obrigada! — Disse, apertando-o com toda força que aquele corpo frágil conseguia.

Cael... congelou. Literalmente não sabia como reagir. Mas, mesmo desajeitado, levantou uma mão e pousou nas costas dela, retribuindo minimamente o gesto.

— Você é mesmo a mãe da Nina... — Murmurou, soltando um risinho quase imperceptível no canto dos lábios, um novo traço de humanidade que só Nina e Isobel conseguiam despertar.

Foi então que uma voz surgiu atrás deles, cortando aquele momento.

— Com licença... — Era uma enfermeira, segurando uma prancheta — Desculpe interromper o momento com seu filho, senhora Isobel, mas... está na hora de voltar para o quarto.

Isobel segurou a risada. Olhou para o Cael, que a encarava sem saber se ria ou se fingia que nada aconteceu.

Ela segurou o cabelo longo com uma das mãos, se levantando com ajuda da enfermeira, e piscou para Cael, sorrindo:

— Nosso tempo acabou, filho. Obrigada pela visita.

Ele apenas... acenou. Sem palavras.

Enquanto a enfermeira levava Isobel de volta, segurando aquele cabelo que parecia não ter fim pra não arrastar no chão, Cael ficou ali, parado.

Viu a figura dela desaparecer na esquina do corredor. Então respirou fundo, se levantou do banco, ajeitou a jaqueta e pensou:

"...O que eu acabei de fazer...?"

Mas, no fundo... sabia exatamente o que tinha acabado de fazer.

O tempo parecia correr diferente. Cael estava sentado no banco do ponto de ônibus, com o corpo ali... mas a mente, longe. Bem longe.

O olhar perdido no chão, nos próprios pensamentos.

"Por que eu aceitei? Por que eu... me deixei abaixar a guarda assim?"

Questionava-se, mastigando as próprias incertezas.

Considerou, por alguns segundos, se aquilo poderia ser algum tipo de influência psíquica. Algum truque mental. Mas descartou rapidamente.

"Empatas não invadem mentes... só corações." — Pensou, quase bufando com a ironia do próprio pensamento.

O silêncio da manhã foi interrompido por um som estridente e... biológico. "GROOOOWWL..." Sua barriga reclamou alto, como se tivesse um megafone embutido.

Procurou nos bolsos, automático, mas... claro. Sem carteira. Suspirou, levando os olhos para o céu, como quem perguntava ao universo "Sério isso?". E sim, dava para saber que eram aproximadamente 9 horas da manhã. Ele sabia ver as horas apenas... olhando para o céu – um detalhe que reforça suas habilidades de sobrevivência e observação.

O ônibus chegou, e ele embarcou, cruzando a cidade em silêncio, enquanto o mundo começava a ganhar movimento.

Desceu na frente da casa. Caminhou até a porta e... claro. Esqueceu a chave. Suspirou, revirando os olhos.

— Pelo menos deixei a janela destrancada... — Murmurou.

Foi para os fundos, flutuando como se a gravidade fosse opcional, e entrou pela janela do próprio quarto. Pegou a carteira que estava jogada na escrivaninha, conferiu o dinheiro e, dessa vez, saiu pela porta.

Descendo as escadas, deu de cara com Hana, largada no sofá, recém-chegada do plantão, com aquele clássico visual de médica destruída.

— Bom dia... — Disse ela, meio esparramada, com a voz cansada. — Bom dia. — Respondeu ele, breve, seco, quase robótico.

Ela piscou, surpresa.

"Ué... Ele tá saindo de casa de novo? Segunda vez seguida?" — Pensou, quase boquiaberta.

E, como se a vida tivesse roteiro próprio, Maya descia as escadas naquele exato momento. Hana nem esperou:

— Acordou agora? Isso não é normal... Brigou com o Cael, né? — Foi direto, sem filtro, sua percepção aguçada se manifestando.

Maya arregalou os olhos.

— Como você...? — Começou, mas logo soltou um suspiro, derrotada. — Eu não entendo! Eu só queria ajudar ele, mas ele me afasta! Sempre me afasta! — Desabafou, a voz trêmula entre raiva, frustração e dor, revelando sua profunda mágoa e desejo de reconexão.

Hana permaneceu em silêncio. Mas seu olhar... ah, aquele olhar. Materno. Cheio de acolhimento. Aquele tipo de olhar que não precisa de palavras, porque já te abraça inteiro.

Maya se jogou no colo dela, enfiando o rosto na barriga da mulher, que automaticamente começou a fazer cafuné em seus cabelos.

— Eu sei que errei... Que troquei ele por... por status, por... gente da escola... Abandonei ele quando ele mais precisou... — A voz dela ficou abafada contra Hana. — Mas... eu tô tentando, Hana... Eu juro... Eu tô tentando ser melhor! Por ele! Por nós! Será que ele não vê isso...?

Hana respirou fundo, puxando Maya mais para perto, como se quisesse colar os pedaços quebrados dela de volta.

— Olha... eu não sei exatamente tudo que rolou entre vocês. Eu... fui uma mãe muito ausente. O trabalho sempre me engoliu. Mas se tem uma coisa que eu sei... é que o Cael é como um gato ferido. Desconfiado. Arisco. E vai te arranhar se sentir que você representa ameaça. — Hana fez uma pausa, apertou de leve os ombros da Maya e completou: — Se você quer reconquistar ele... só tem um jeito. Você tem que ficar. Mesmo que doa. Mesmo que ele te arranhe. Fica. Até ele entender... que você não quer ferir. Que você... é lar.

Os olhos de Maya se encheram d'água. Ela entendeu. Tudo. A sabedoria de Hana ressoando.

Enquanto isso...

Cael caminhava pela cidade, agora decidido. Não vagava mais sem rumo. Sabia exatamente para onde estava indo.

Quando percebeu, estava perto da escola. O sinal tocou. Crianças começaram a sair em bando, correndo em direção aos pais, às vans, às bicicletas...

E então...

— IRMÃO!!! — A voz doce e animada cortou o barulho da multidão.

Nina correu até ele, se jogando em seus braços, com aquele sorriso que poderia fazer qualquer planeta inteiro se derreter.

— Vamos. — Disse Cael, curto e direto.

Ela segurou firme na mão dele.

— Tenho que visitar a mamãe! — Lembrou. — Tá. Mas antes... a gente vai comer. — Decretou ele.

Eles se dirigem ao restaurante, até que chegam. Era um lugar simples, mas ajeitado. Limpo, cheiroso, agradável. Cael puxou uma cadeira com telecinese, fazendo Nina dar uma risadinha divertida.

— Você devia usar isso pra tudo, irmão! Imagina, abrir portas, pegar coisas no mercado, atravessar a rua... — Disse ela, com aquele jeito meio tagarela, meio fofa.

Cael arqueou a sobrancelha.

— Seria preguiça. — Respondeu, seco, mas não conseguiu esconder um sorriso quase invisível no canto da boca – um novo sinal de seu coração amolecendo.

O garçom chegou, eles fizeram o pedido, comida simples: hambúrguer artesanal pra Nina, e um prato de frango grelhado com arroz e legumes pra Cael.

Quando a comida chegou, Nina praticamente enterrou o rosto no hambúrguer, e Cael apenas observava... talvez... com um micro traço de paz no olhar.

Ao final, a atendente trouxe a conta.

— Estão participando de uma promoção! Me passa seu número de celular, moço. A gente tá sorteando um dia de refeições grátis! — Disse ela, simpática.

— Não tenho celular. — Disse Cael, impassível.

A atendente arregalou os olhos. Nina quase se engasgou com o suco.

— COMO ASSIM?! — Nina explodiu, levantando o celular dela, que tava todo zoado, com capa rasgada e película trincada. — Irmão! Celular é essencial!

— Nunca achei necessário. — Respondeu ele, no auge da indiferença.

— Vai comprar um AGORA. — Decretou Nina, batendo o punho minúsculo na mesa como uma mini líder da máfia.

Até a atendente tentou segurar a risada.

— Tem uma loja aqui na esquina... vendem celulares top de linha. — Sugeriu, toda prestativa.

— Tá. — Disse Cael, simplesmente aceitando. — Antes de ir pro hospital.

Eles se dirigem até a loja e, ao chegarem, ela era... futurística. Tudo branco, vidro, neon. Tava mais para uma nave espacial do que para uma loja.

— Bem-vindos! Posso ajudar? — Disse um atendente todo sorridente.

— Quero um celular. — Respondeu Cael, curto e reto.

O cara começou a mostrar os modelos. Nina tava praticamente babando em cima dos balcões, apontando, comentando, pulando de empolgação. Até que, o atendente resolver mostrar um modelo mais "futurista". Ele não possuía tela, e utilizava uma tecnologia única de proteção 3D, que fazia com que a as informações fossem projetadas, sem o auxílio de superfícies ou telas.

— Esse aqui é o Hypertech Z20. O mais novo, mais poderoso, mais... — O cara mal terminou.

— Vou levar. — Disparou Cael, no seco.

— Tem certeza? São vinte mil créditos... — Perguntou o vendedor, meio pálido.

Cael olhou pra Nina, que tava toda encantada por um modelo um pouco mais barato.

— E aquele que minha irmã quer também. — Completou.

Depois de um tempo. Cael está com duas sacolas nas mãos. Uma Nina saltitante ao lado. E os dois caminhando até o hospital.

Assim que entram no quarto, Nina já vai gritando:

— MAMÃE!!! O irmão comprou um celular pra mim!!! — Pulando na cama da mãe.

— Sério? Que incrível, filha! Já agradeceu seu irmão? — Isobel respondeu, com aquele tom doce e cheio de carinho.

— Obrigada, irmão!!! — Disse Nina, olhando pra Cael, que acenou meio sem jeito.

— Obrigada, Cael... Espero que não tenha sido muito caro... — Comentou Isobel, sorrindo.

— Não foi nada... — Respondeu, desviando o olhar, meio corado.

O clima era leve, descontraído. Eles conversaram, riram... ou melhor, ouviram Nina falar sem parar, empolgada, cheia de histórias e sonhos.

Em determinado momento, Isobel propôs, do nada.

— Que tal... você passar uns dias com seu irmão, Nina?

Silêncio. A proposta pegou todo mundo desprevenido.

Nina olhou para a mãe, com aquele olhar que misturava vontade e preocupação.

— Você vai ficar bem...? — Perguntou, a voz baixinha.

— Claro que vou, amor. Você precisa descansar, comer direito... e tomar banho, que eu sei que você anda fugindo do chuveiro. — Isobel alfinetou, fazendo Nina envergonhar na hora.

Cael observava tudo. Sabia. Já viu esse filme antes. E sabia... esse seria o último abraço.

Nina se jogou na mãe, abraçando forte. E, quando Cael se aproximou para se despedir, disse em voz baixa:

— ...Adeus.

Isobel olhou nos olhos dele, e respondeu, com um sorriso... lindo, cheio de amor:

— ...Adeus.

Quando a porta fechou, ela olhou pela janela do quarto. E pela primeira vez em muito tempo... sorriu. Um sorriso de paz. De alívio. De missão cumprida.

Na recepção, Cael deixou seu número recém adquirido com a atendente, pedindo que avisasse "se algo... acontecesse.", claro, sem usar a palavra morte na frente de Nina.

Depois, foram até a antiga casa de Nina pegar suas coisas. Ela recolheu roupas velhas, brinquedos, memórias.

— A gente vai comprar roupas novas. Isso aí tá tudo velho. — Comentou Cael.

— Você é rico, irmão? — Perguntou Nina, meio surpresa.

— Não. Só não gasto. E isso acumula. — Respondeu, no auge da simplicidade.

Quando finalmente chegaram... estavam ali. Na frente da casa de Cael. Parados. Observando.