O silêncio da madrugada na casa era pesado, quebrado apenas pelo zumbido baixo da geladeira. Cael estava sentado no sofá da sala, mas sua mente estava a quilômetros de distância, presa em um turbilhão. A revelação da televisão o atingira como um soco no estômago, e agora os fragmentos de um quebra-cabeça impossível giravam em sua cabeça. Carolina Seraphyne. Carolina Reacher. Sua mãe. As duas eram uma só? A heroína pública e a mulher reclusa que o ensinou a temer o mundo?

Cada pergunta era um lobo faminto uivando no vazio de seu peito. E, somado a isso, o enigma de Maya. A garota vibrante que desaparecera, dando lugar a uma sombra que o assombrava com um pedido de perdão que ele nunca entendeu por completo. A mente de Cael, já sobrecarregada pela crise de ansiedade horas antes, estava no limite. Problemas que ele havia ignorado por anos agora martelavam suas têmporas com a força de uma bigorna.

Precisando de algo para ancorá-lo à realidade, ele se levantou e caminhou até a cozinha. O ambiente estava escuro, com a luz da lua desenhando um retângulo pálido no chão de ladrilhos frios. O cheiro de café passado pairava no ar. Ele pegou um copo, encheu com água da torneira e bebeu de um gole só, o frio descendo por sua garganta. Sua guarda estava baixa, os sentidos, normalmente tão aguçados, estavam entorpecidos pelo cansaço mental.

Foi por isso que ele não a ouviu se aproximar.

De repente, sentiu um calor envolvendo suas costas, braços finos circulando sua cintura em um abraço que a memória quase esquecera.

— Eu fiquei muito preocupada com você. — Disse Maya, a voz serena, um eco da menina que ele conhecia.

"Eu não a notei." — A surpresa o paralisou por um segundo. — "O que está acontecendo comigo?"

— Quando eu vi você no colo da Hana, inconsciente, meu coração quase parou... — A voz dela era um sussurro abafado contra suas costas.

O fato de Maya estar abraçando Cael é um evento que não acontecia há anos, uma ponte inesperada sendo construída sobre um abismo de mágoa. A desatenção de Cael, ainda com os resquícios da crise recente, pode ter tornado esse momento de vulnerabilidade possível. Mesmo surpreso, Cael decidiu aproveitar a rara oportunidade.

— Maya... O que aconteceu com você? — Cael questiona, sua voz baixa e cheia de seriedade, o que pega Maya de surpresa.

— Comigo? Achei que o assunto era você. Você que teve uma crise recente. Uma que me assustou, muito! — Ela desconversou, a voz ficando um pouco mais aguda, um sinal claro de ansiedade.

— Eu conheci uma Maya... — Ele disse, a voz mantendo a frieza habitual, mas com um peso de nostalgia e mágoa. — Uma garota que gostava de sair, ir a festas e que, por um tempo, era muito próxima de mim. E agora, tem outra Maya. Uma garota que me abandonou, continuou indo em festas, mas, de um dia para o outro, parou. E agora corre atrás de mim, pedindo perdão e, ao mesmo tempo, fingindo que nada aconteceu. E ainda tem outro fato, essa "nova Maya" ficou tão desesperada por esse "perdão" que...

— POR FAVOR! — Maya sobe o tom abruptamente, a voz quase um rosnado, mas logo se acalma, lembrando que está de noite, e abaixa o tom para um sussurro desesperado. — Não... E-eu não quero falar sobre isso. Isso é assunto meu.

— Não, Maya! Esse assunto é nosso! — A voz de Hana, firme e cortante como vidro, veio da entrada da cozinha. Sua silhueta estava parada ali, e seus olhos cor de âmbar, normalmente tão calmos, brilhavam com uma severidade rara.

Maya se soltou de Cael como se tivesse levado um choque, recuando até a parede oposta. Seus ombros se encolheram, os olhos verdes arregalados em pânico.

— Cael. Por favor, não conte para a Hana! — Ela suplicou, olhando de um para o outro como um animal encurralado.

— Contar o quê? Que você ofereceu seu corpo para ele em um ato desesperado de conseguir perdão? Isso ele já contou — Disse Hana, a voz dura, mas com uma dor velada.

A revelação atingiu Maya como um raio. Seu corpo enrijeceu, a boca se abriu em choque, e ela começou a tremer incontrolavelmente. Hana se aproximou e pôs as mãos, delicadamente, sob as bochechas de Maya.

— Maya... Eu não sei o que te fez chegar a esse extremo. Mas não é bom guardar isso para você.

Maya tirou as mãos de Hana de seu rosto com um puxão brusco e deu alguns passos para trás. Segurando o próprio braço, ela olhou para o chão, os olhos turvos, revivendo um trauma. Ela segurou a cabeça com força, bagunçando os cabelos ruivos, um gemido baixo escapando de seus lábios.

— Não não não... — Ela repetia, a expressão de pânico absoluto, a respiração rápida e ofegante, como se estivesse sufocando.

Hana olhou para Cael, assustada. A cena transcendia sua compreensão médica. Cael se aproximou de Maya, que virou de costas, o corpo tenso, como se segurasse algo prestes a explodir.

— Maya... — Ele disse, a voz cautelosa, mas firme, e tocou seu ombro.

— NÃO! — Ela gritou.

Imediatamente, seu corpo se contorceu em um espasmo violento. Ela se virou, os olhos verde-esmeralda agora "mortos", vazios, e desferiu um soco no peito de Cael. Não era o soco de Maya. Era um impacto brutal, de força desumana.

WHUMP!

Cael é lançado para longe, atravessando a parede da cozinha como se fosse papel, e seu corpo esguio e atlético se torna um projétil no ar. O impacto ressoa com um "CRACK!" seco enquanto ele quebra a primeira árvore do quintal. O quintal dos fundos se revela em um borrão: gramado denso, alguns arbustos, uma cerca baixa e, além dela, a densidade escura da floresta. Cael não para na primeira árvore; seu corpo continua, rasgando o ar e as folhas, profundamente na floresta, e só se detém ao colidir com a segunda árvore, que entorta e range com a força da pancada, revelando parte de suas raízes. Uma nuvem de poeira e destroços da parede preenche a cozinha, agora aberta para o exterior.

Hana, horrorizada, olha para o buraco na parede, um rasgo irregular na alvenaria que dá para o quintal, e para Maya, uma silhueta tensa contra a abertura.

— Cael! — Ela chama, a voz embargada pelo medo, os olhos arregalados. — Maya, por que fez isso? Isso não é você!

Mas Maya não escuta. Seu olhar gélido, consumido por uma fúria cega, se volta para Hana. Ela levanta a mão esquerda, mas o braço trava no ar, tremendo. Era Cael. Ele surge da escuridão densa da floresta, sujo de terra e folhas, mas sem um arranhão aparente, sua postura séria e impassível em meio ao caos. Com um simples gesto da sua mão, ele a puxa com sua telecinese para o gramado do quintal.

"Nenhuma movimentação..." — Ele usa sua Visão de Raio X para checar o quarto de Nina. Os feixes invisíveis atravessam as paredes, confirmando que a pequena continua em sono profundo, alheia à batalha lá fora. — "Ela ainda... Está dormindo? Que sono pesado." — Cael comenta em seus pensamentos, um fio de alívio o percorrendo.

Aliviado, ele voltou sua atenção para Maya, que agora o encara com uma ferocidade cega.

— Cael! Você está bem? — Hana pergunta, a voz trêmula de genuína preocupação. Ele acena, sem tirar os olhos de Maya, arrancando um suspiro de alívio de Hana. — Ela está fora de si! Tome cuidado! — Hana alerta, os olhos fixos na figura de sua filha adotiva, quase irreconhecível.

Maya parte para cima de Cael com uma arrancada tão veloz que KRRRAK! O chão se estilhaça sob os pés dela, rachando as lajotas do quintal enquanto ela avança, uma fúria borrada. Cael prepara a base, seus olhos castanho-escuros amendoados e profundos focados nela. Quando Maya chega até ele, prepara-se para desferir um soco com uma força assustadora, e Cael, com um movimento preciso de seu físico esguio e atlético, segura o golpe com a mão.

BOOOM!

A força do impacto é o suficiente para gerar uma onda de choque que faz as paredes da casa tremerem violentamente, o som de algo estalando na estrutura, mas os vidros permanecem intactos. Na perspectiva da Hana, Maya se moveu tão rápido que ela só conseguiu perceber que ela havia atacado Cael quando a onda de choque do golpe a atingiu, sentindo o ar vibrar.

— Eu não vou usar a telecinese com você. — Disse Cael, sua voz fria e controlada, enquanto joga Maya para o lado com um movimento preciso, fazendo-a rolar por vários metros na grama do quintal, levantando torrões de terra.

Maya para, sua figura um borrão de fúria. Ela está em um estado de fúria incontrolável, seu corpo pulsando com o poder de fortalecimento, os olhos mortos fixos em Cael. O ambiente ao redor deles agora é o quintal desordenado, com o buraco na parede da casa como testemunha.

"Ela está em estado berserker. Não está pensando direito." — Cael pensa, observando a ferocidade de seus ataques e a ausência de técnica em seus golpes.

Mas, Maya para, um momento de silêncio tenso se segue no quintal. Até que ela começa a gargalhar, de uma forma incontrolável, um som áspero e desprovido de alegria, quase maníaco, que ecoa pelo ar.

— É isso! É isso! Me mostre o que você tem! — Maya diz, em meio à gargalhada, sua entonação de voz mais rouca e gutural, quase irreconhecível.

Hana, que observa da cozinha destruída, fica sem entender nada. Ela olha para Cael, e percebe que ele também não está entendendo a reação perturbadora de Maya.

"Ela está se divertindo?" — Tanto Cael, quanto Hana, pensam ao mesmo tempo, um arrepio de estranheza percorrendo ambos.

Com um grito, ela ataca, uma tempestade de socos e chutes que visam quebrar, esmagar, impulsionados por sua força recém despertada. Cael se move como uma sombra, desviando de cada golpe com uma facilidade sobrenatural. SWOOSH! Um chute giratório cortou o ar onde sua cabeça estava um segundo antes. Ele respondeu com um soco curto e potente no estômago dela.

THWUMP!

O som foi surdo e pesado. Maya arqueou, cuspindo saliva. Mas quando se endireitou, o sorriso em seu rosto era ainda maior, os olhos brilhando com um prazer perturbador. Ela se firma ao chão e volta a realizar mais ataques, com uma ferocidade renovada. Cael resolve se movimentar mais, usando o ambiente a seu favor, recuando para a densidade das árvores. Ele se move para dentro da floresta que cerca o quintal, com Maya incessantemente em sua caça. O som da luta agora é misturado com o estalo de galhos secos e o farfalhar de folhas enquanto eles se aprofundam na vegetação. Maya tenta vários golpes, seu corpo um borrão ruivo em meio ao verde, mas Cael desvia com facilidade, sua agilidade sobre-humana inigualável. Ele começa a utilizar as suas rajadas ópticas em Maya, a acertando diversas vezes e causando danos. Mas ela parece não se importar com o dano.

"Ela está gostando. A dor alimenta a fúria." — Pensa Cael, enquanto desvia de um soco que visava seu rosto, o impacto soando como um "WHACK!" contra uma árvore próxima.

Ela voltou a atacar, mais rápida, mais selvagem. Cael continua a usar suas rajadas ópticas. BZZZZT! Um feixe de luz azul neon sibilou e a atingiu no ombro. Uma parte do tecido do seu pijama se desintegrou instantaneamente, e a pele por baixo ficou enegrecida, mas ela apenas grunhiu, ignorando a dor. BZZZZT! BZZZZT! Outros dois disparos a atingiram na perna e no flanco, deixando marcas de queimadura severa, fazendo-a cambalear, mas ela não parou. Ele a guia, recuando estrategicamente, fazendo-a atravessar de volta os arbustos até o coração do quintal, exatamente onde a luta começou.

— Por que não está mirando no meu rosto, irmão? Você gosta tanto assim dele? — Maya provoca, mas a entonação da sua voz era diferente, mais rouca, a fúria e o prazer macabro misturados.

Cael, já de volta ao centro do quintal, acertou um soco em seu queixo. O impacto foi seco e limpo. A cabeça dela estalou para trás. Os olhos vidrados perderam o foco por um instante. Ela caiu no chão do quintal como um saco de batatas, inerte. Maya é nocauteada por alguns segundos, seu corpo inerte no chão. Mas acorda e se levanta abruptamente, a energia berserker ainda pulsando. Ela olha para o Cael, com um olhar que dizia "Você fez mesmo.". Maya fica com um hematoma roxo escuro no queixo, uma prova visível do golpe. Cael olha sério para ela, e Maya sente um arrepio, um traço de sua consciência normal lutando para emergir.

— Você está bem resistente, mas nem tanto. — Cael comentou, sua voz calma e analítica, observando a mudança. — Você está se acalmando agora, eu espero.

A máscara de fúria no rosto de Maya começou a rachar. A raiva deu lugar à confusão, e então, a uma dor avassaladora. Seus joelhos cederam. Ela caiu na grama, e as lágrimas vieram, lavando o vazio de seus olhos. Ela estava de volta.

— Me desculpe. — Maya diz, em prantos, a voz agora normal, mas quebrada pelo choro.

Hana, que observava tudo, correu para abraça-la, mas foi impedida, paralisada pela telecinese de Cael. O mesmo, se aproxima de Maya, que está chorando de soluçar.

— E-eu... Não consigo esquecer... Não sai da minha cabeça... — Maya começa a falar, as palavras entrecortadas pelo choro e pela dor.

Hana entendeu o que Cael fez ao paralisa-la. Ele queria que Maya se abrisse, sem interrupções. Cael solta Hana, permitindo que ela se mexa. Hana, por sua vez, permanece parada no mesmo lugar, a poucos passos de distância, apenas para escutar Maya, que havia conseguido segurar o choro parcialmente, mas a agonia era palpável.

— Naquela festa... a minha última... eu estava me divertindo muito... mas, pessoas que eu pensei que eram meus amigos, me levaram para o um quarto... — Maya trava, a memória a atingindo como um golpe. Cael enrijece o rosto, e aperta as mãos, como se fosse dar um soco. Hana vira o rosto e coloca a mão na boca, um som de horror escapando de seus lábios. Ambos já preveem o que Maya está prestes a dizer. — Eles rasgaram a minha roupa... colocaram a mão na minha... — Maya trava mais uma vez, o corpo tremendo, a voz se recusando a continuar. Hana sente vontade de vomitar, a dor de sua filha a atingindo em cheio. Cael sente uma raiva crescente, uma fúria fria, mas intensa, crescendo em seu peito. — Eu... não me lembro do que aconteceu depois... só me lembro de acordar e estar andando na rua.

Cael sente seu coração apertar com a revelação, e Hana também. O ar parece mais pesado.

— Você sempre teve razão. Você me protegia e eu afastei você. Me desculpe. — Maya diz, enquanto retomava o choro, um soluço profundo a sacudindo.

Cael se aproxima um pouco mais de Maya, um pouco tímido, sem saber o que fazer, a mesma, abaixa a cabeça, chorando sem controle. Hana, rapidamente, abraça Maya, com lágrimas nos olhos. Ela se sentia responsável pelo que aconteceu com Maya, pela ausência que a deixou tão vulnerável. E Cael, não era diferente, ele se sentia péssimo por não ter protegido ela, e por tê-la afastado por tanto tempo, sem saber da profundidade de seu problema. Ele entende seu desespero, entende por que Maya fez o que fez para se reaproximar dele. Ela estava quebrada.

Cael se ajoelha na frente de Maya, em silêncio. A verdade é que Cael não sabe como reconfortá-la. O trauma dela é profundo, e talvez ele tenha perdido a "antiga Maya" para sempre, mas está disposto a proteger a "nova Maya", agora que sabe sobre seu trauma. Ele permanecerá ali, com Maya e Hana, o elo familiar sendo restaurado na dor, até que Maya pare de chorar, um guardião silencioso em meio à tempestade de emoções.

Um tempo se passa, após o confronto brutal e o desabafo agonizante de Maya. A escuridão da madrugada ainda envolve a casa, um silêncio pesado preenchendo os espaços vazios e a parede destruída na cozinha. Cael acaba de deixar Maya na cama de seu quarto, pois a jovem havia chorado tanto que caiu em um sono profundo.

O quarto de Maya, em contraste com a sobriedade do restante da casa, era um reflexo vívido de sua personalidade vibrante e complexa. As paredes eram pintadas em um tom suave de lilás, com pôsteres de bandas de hip-hop e R&B, e alguns esboços de arte abstrata colados sem ordem aparente. Sobre a escrivaninha de madeira clara, havia uma pilha de livros de faculdade misturada a quadrinhos e mangás. Um pequeno violão jazia encostado na parede, e uma luminária de lava brilhava em um canto, lançando sombras mutáveis. A cama, com lençóis coloridos e um cobertor de tie-dye, era um oásis de conforto. Peças de roupa, algumas com tons vibrantes de amarelo e verde-limão, outras mais neutras e fechadas, estavam jogadas sobre uma cadeira, um testemunho silencioso de sua dualidade. Apesar da desordem alegre, havia algo de protetor no ambiente, quase um refúgio.

Maya ainda tem alguns hematomas, roxos escuros, em seu queixo e braços, visíveis mesmo na penumbra do quarto, enfeixados e cuidados por Hana. A mulher, de 40 anos, estava escorada no batente da porta do quarto de Maya, o rosto marcado por um cansaço que transcendia o físico. Os olhos de Cael encontram os dela. Em um entendimento silencioso, eles decidem deixar Maya lá, descansando de sua própria tormenta.

Da mesma forma que Hana e Maya tinham feito mais cedo, ela e Cael vão em silêncio até a sala. Hana se joga no sofá, seu corpo magro e elegante afundando no acolchoado, exausta.

O silêncio reina entre os dois, um silêncio carregado de tudo o que acabara de ser revelado e de tudo o que ainda pesava em seus corações. Hana põe a mão sob a cabeça, esfregando as têmporas e respira fundo, um suspiro que parece carregar o peso do mundo.

— É pior do que eu imaginava... — Hana comenta, a voz baixa, quase um lamento. Seus olhos cor de âmbar fixam-se no nada, marejados de dor. — O que eu faço? Eu... me sinto tão culpada. Culpada pela minha ausência... Culpada por não ter visto, por não saber.

Cael observa Hana. Sua expressão é de choque total, um nível de desespero que Cael raramente vira nela. Não é uma expressão normal da Hana, a mulher centrada e inabalável que ele conhecia. Ele sente um aperto no coração.

— Eu... fui uma péssima mãe... — A voz trêmula de Hana faz Cael sentir um aperto no coração. Ela, ainda sentada no sofá, recolhe suas pernas, abraçando-as como se buscasse consolo, ficando com o rosto entre os joelhos, permitindo-se desabar.

Cael se mantém em silêncio, não porque não se importa, mas porque não sabe o que falar. As palavras parecem inadequadas diante de tanta dor. Ele apenas a observa, sentindo o peso do sofrimento dela.

— Quando eu era mais nova, sempre quis ter filhos... — Hana começa, a voz abafada pelos joelhos, mas com um fio de memória distante. — Eu e minhas amigas sempre sonhamos em ter filhos, e, na medida em que o tempo foi passando, eu me casei, e minhas amigas, também. Mas... — Hana faz uma pausa, a respiração presa, e respira fundo, liberando um pouco da dor. — Elas foram engravidando e eu... não. Meu ex-marido, também, foi se mostrando "insatisfeito" com o fato de eu não conseguir engravidar, até demonstrando comportamentos que nunca tinha mostrado, antes do casamento. Então, eu decidi fazer alguns exames, no mesmo hospital que eu trabalho. Foi quando eu descobri: eu não posso ter filhos. Eu não tenho útero. Isso me devastou. Eu nem conseguia trabalhar, a dor era física e na alma. E para piorar, quando o meu ex-marido ficou sabendo, ele começou a me trair, ficava com várias mulheres, sem nem mesmo esconder. Ele me torturava com os gemidos delas, e eu não podia fazer nada, eu estava presa na minha própria dor e impotência. Ele aproveitou que eu estava em depressão, e até fazia sexo com elas na minha frente. — A revelação crua de Hana, dita com uma voz quebrada, faz Cael sentir um nojo profundo da situação. Ele estava com muita pena de Hana, não sabia que ela tinha sofrido tanto. — Mas, um dia, eu não aguentei. Finalmente tomei coragem e me divorciei dele. Com o dinheiro do divórcio, eu comprei essa casa, já que eu não queria ficar naquela, me tratei e, depois de um tempo, adotei Maya e, posteriormente, você. Imaginei que conseguiria ser uma mãe melhor, do que fui como esposa...

"Espera. Ela se culpa pela falta de caráter do ex-marido?" — Pensa Cael, a mente processando a profundidade do trauma de Hana.

— Mas, eu falhei. — Hana continua, a voz embargada pelo choro. — Achei que se me esforçasse trabalhando, para dar a vocês boas condições, vocês conseguiriam se virar bem. Mas, eu negligenciei o mais importante, o tempo. Devia ter passado mais tempo com vocês, escutado mais, ser mais... mãe. — Ela chora abertamente, os soluços sacudindo seu corpo.

Cael se senta ao lado dela no sofá, o peso de suas próprias dores se misturando àquelas que ele acabara de ouvir. Lentamente, ele estende a mão e pousa-a sobre o ombro de Hana, um gesto desajeitado, mas cheio de uma ternura silenciosa.

— Para uma pessoa sem experiência. Até que você não foi tão mal. — Cael diz, sua voz grave, mas com uma doçura que raramente permitia transparecer.

Hana esboça um leve sorriso entre as lágrimas, levantando um pouco o rosto para olhá-lo.

— Não precisa tentar me animar. A Maya foi... estuprada e eu não estava lá para dar apoio para ela... Eu devia ser a sua mãe, cuidar dela! Mas eu estava lá, presa em plantões, enquanto os meus filhos sofriam psicologicamente. — Hana abaixa a cabeça novamente, e chora, os soluços se intensificando. — Eu... não mereço vocês. Vocês mereciam uma mãe melhor do que eu. Me desculpe. Me desculpe por não ser uma mãe. Me desculpe. Me desculpe. — Hana, em prantos, repete "me desculpe" sem parar, a voz baixa, quase um lamento.

O coração de Cael pesa no peito, as palavras de Hana perfurando suas próprias defesas. Cael respira fundo, seus olhos marejados, mas ele se força a não chorar.

— Ainda precisamos de você. Mesmo ausente, você foi a razão da gente ainda continuar vivendo. Vou te confessar uma coisa... — Cael diz, sua voz baixa, mas firme. Quando ele diz que vai confessar algo, Hana levanta o rosto, o corpo paralisado pela expectativa, e olha para ele, os olhos vermelhos e inchados. — Há alguns anos atrás, eu... estava muito mal, muito mal. Eu não me sentia suficiente, depois de ser abandonado pela Rose e... pela Maya, também. Eu.. estava na floresta, sozinho. Então eu decidi me matar... — Quando Cael diz isso, Hana olha para ele em choque. Um grito silencioso morre em sua garganta, seus olhos arregalados de horror. — Eu... usei a minha telecinese e... quebrei o meu pescoço. Tudo ficou escuro, e, depois, eu vi uma imagem, de um Sol azul. Eu tentei me aproximar dele e, quando eu estava próximo, veio uma outra imagem na minha mente, de uma pessoa chorando. Era você. Eu ainda tinha você, e eu ignorei isso, de forma egoísta. Eu não pensei em como você iria reagir. Naquele vácuo, eu me senti arrependido... Mas, quando eu fechei os olhos de novo, eu senti o calor no meu rosto. Era o Sol. Eu, por algum motivo, revivi ao amanhecer. Meu pescoço estava no lugar e eu... estava diferente. No final das contas, eu pensei que deveria aproveitar essa segunda chance e te ajudar de alguma forma. Então eu consegui trabalhos online e uma boa renda, para aliviar suas despesas e para você descansar. No final das contas, o que me fez não tentar tirar a minha vida mais uma vez, foi pensar que eu faria você chorar. E talvez essa, tenha sido a melhor decisão da minha vida.

Hana fica sem palavras. O choque e a revelação a deixam muda, mas ela sente o calor das palavras de Cael. Ela se sente um pouco melhor, após as palavras de Cael, uma ponta de esperança e culpa aliviada surgindo.

— Além disso... Quando Isobel se for. A Nina vai precisar de uma figura materna, e de alguém com mais calor. Eu não sou muito bom nessas coisas. — Cael comenta, desviando o olhar, um toque de vulnerabilidade.

— Você é melhor do que eu, só não percebeu isso ainda. — Hana diz, agora com um sorriso reconfortante no rosto, seus olhos brilhando com uma nova determinação.

Cael se levanta.

— Você precisa descansar. — Cael diz, de costas para Hana, sua voz voltando ao tom sério habitual.

Logo ele é surpreendido por um abraço por trás, vindo da Hana. Ela o aperta com toda a força, um abraço apertado e cheio de gratidão e carinho.

— Obrigada, meu filho. Por me consolar. Eu prometo que vou melhorar. — Ela diz, a voz embargada, já o soltando, mas seus olhos fixos nos dele.

Cael se vira, esboçando um pequeno e sutil sorriso, quase imperceptível, que faz o coração de Hana se apertar de carinho. Hana encosta sua cabeça no peito de Cael, o abraçando novamente, agora que ele está de frente. Cael, meio sem jeito, retribui o abraço, seus braços o envolvendo com a mesma ternura desajeitada de sempre. Hana se estica um pouco e beija a bochecha de Cael, deixando-o sem jeito e com o rosto todo vermelho, um rubor que contrasta com sua palidez. Hana solta uma leve risada da reação de Cael, ela é bastante inusitada.

— Bem. Eu vou tentar dormir. — Hana diz, soltando Cael e se dirigindo para a escada.

— Boa noite. — Cael diz.

A fala, surpreende Hana. Que responde:

— Boa noite.