ATO 1 — QUANDO O MUNDO TRINCA

O tridente de Klyrion desceu tão rápido que Kael não teve tempo de reagir — apenas ouviu o impacto seco, como se o ar tivesse sido riscado por força bruta.

Nos estilhaços do chão, imagens descoordenadas de si mesmo — caído, sozinho — piscavam como memórias impostas.

O golpe vinha.

O coração falhou.

A mente de Kael se fechou num único pensamento: eu não posso sumir aqui.

Aiden, ainda no chão, sentiu outra certeza — Kael não pode morrer.

Tentou levantar, mas o corpo reagiu antes: um frio direto estourou dentro dele, sem brilho, sem aviso, apenas urgência.

Ele ergueu a mão.

O tridente estava a centímetros.

Aiden gritou — e o gelo subiu em placas decisivas, travando o ataque com violência suficiente para fazer o corpo de Kael vibrar como se tivesse levado o golpe.

Kael tropeçou para trás, sentindo o susto antes da dor.

E a verdade o atingiu um segundo depois: não teria sobrevivido sozinho.

A barreira gelada estremeceu.

Linhas finas cruzaram a superfície — não como rachaduras, mas como se o gelo estivesse tentando se reorganizar e falhando.

Klyrion avançou com precisão irritante.

A lâmina do halberd afundou milímetros.

Outra pressão — a parede se rompeu num estalo seco que ecoou fundo.

Fragmentos saltaram.

Um deles escapou girando no ar.

Klyrion o esmagou entre os dedos, como quem elimina um erro que insiste.

Outro deslizou pelo solo; Kael desviou com uma rajada curta.

E foi nesse instante, breve como o bater de pálpebra, que ele sentiu: o campo não estava mais alinhado.

Algo no espaço em volta havia “trincado” emocionalmente — não fisicamente — desde o primeiro gelo de Aiden.

Como se o mundo tivesse perdido um compasso que antes seguia a vontade de Klyrion.

Um calafrio subiu a espinha de Kael.

— Isso não é só poder — murmurou para si mesmo. — O espaço… mudou.

Aiden tentou formar outro gelo, mas a energia se desfez no ar, repelida por algo invisível.

Ele tremia, como se estivesse tentando usar uma mão que já não respondesse.

Kael deu meio passo à frente, posição instintiva demais para ser pensada.

— Vem tentar de novo — rosnou, mais para proteger Aiden do que para desafiar Klyrion.

Mas Klyrion não mordeu a isca.

Seu olhar estava preso ao chão — ou melhor, ao que estava tentando nascer nele.

O último fragmento bateu no asfalto.

Algo no ambiente… cedeu.

Não houve luz explodindo, nem rachaduras discursivas.

Apenas um deslocamento pequeno. Errado.

Como se o chão tivesse respirado fora de ritmo.

Pequenas linhas de energia correram pelo impacto, convergindo para um ponto que Kael não reconheceu — mas sentiu.

Aquela sensação de desalinhamento agora tinha direção. Um foco. Um chamado.

Nami recuou sem perceber, a água se erguendo ao redor dela.

Lyra firmou o cajado, o chão respondendo como se pedisse para ser escutado.

Maira ajustou a base, os olhos estreitando.

Klyrion girou o halberd.

E nada aconteceu.

As superfícies ao redor não obedeceram.

Pior: ignoraram.

Kael sentiu o estômago apertar.

“Ele não está mais sozinho no campo.”

O ponto de convergência ganhou densidade — não de luz, mas de intenção.

Um contorno formou-se como alguém passando a mão num quadro embaçado, revelando aos poucos uma forma que não deveria estar ali.

Por um segundo, ninguém respirou.

A superfície tremeu num único pulso —

e a figura atravessou.

A criatura emergiu incompleta, como se estivesse montando o próprio corpo às pressas.

As bordas se reajustavam, tentando decidir que forma deveriam ter.

Mas o que realmente distinguiu ela não foi a aparência.

Foi o som.

Um ruído baixo, abafado, lembrando algo arrastado — não vidro, não metal.

Era o som que Kael associava imediatamente à sensação dele próprio tentando se manter inteiro quando quebrado por dentro.

O barulho fez o peito dele afundar.

Não era só uma ameaça física.

Era uma ameaça emocional — como se a coisa tivesse nascido da falha que ele tentava esconder.

Lyra recuou um passo, sentindo o solo estremecer de um jeito que não pertencia à terra.

Aiden ergueu o rosto, reconhecendo o frio — não o dele, mas o frio do medo dele, devolvido por algo externo.

E então ficou claro:

O gelo não tinha apenas bloqueado o ataque.

Tinha desfeito a ordem que Klyrion impunha ao campo.

E nessa falha — nesse espaço emocional e energético exposto — algo atravessou.

A criatura ergueu um braço…

…e o mesmo braço rasgou o chão real, como se estivesse costurando dois pedaços do mundo de forma incorreta, à força, exatamente como um erro que insiste em voltar.

Kael sentiu um arrepio que não vinha do frio.

Algo ali não queria existir.

Mas, ainda assim, existia.

ATO 2 — O CHAMADO DA AUSÊNCIA

Para os humanos, aquilo parecia só destruição — prédios cedendo, água subindo sem lógica, telhados arrancados como se o vento tivesse músculos.

O Véu tentava costurar explicações, mas já não dava conta.

As falhas se espalhavam como respirações descompassadas no ar.

E no meio disso tudo… eles tentavam salvar quem podiam.

Aiden sentia cada vibração — não só do chão, mas dele mesmo.

Um puxão interno, como se o mundo tivesse um centro e ele estivesse sendo chamado sem saber por quê.

Dante ergueu o carro tombado numa explosão de teimosia e força bruta.

Os idosos escaparam; ele quase desabou — mas se ergueu de novo.

Aiden viu isso a distância.

O corpo de Dante vacilava; a coragem não.

Algo no campo reagiu a essa coragem — não com luz, mas com pressão.

Um aviso silencioso.

Jessica e Sophia lutavam para manter um corredor de segurança.

A porta instável vibrava contra o braço de Sophia; a cada impacto, ela perdia um pouco mais de força.

A mulher hesitou.

Jessica não.

Salvou mãe e filho — e deixou outra vida para trás.

O poste caiu, e Aiden percebeu a culpa rasgando o campo como faca.

Culpa tem peso.

Culpa sempre mexe com o mundo.

Lukas salvou um homem paralisado pelo pânico.

O estilhaço veio rápido demais.

A natureza reagiu — galhos emergiram, segurando o fragmento no ar.

Aiden congelou por dentro, não por frio, mas por reconhecimento:

Sempre quase tarde demais… sempre quase.

O campo sentiu isso.

E devolveu em forma de vibração — justamente sob os pés dele.

Então o mundo mudou.

Não ficou mais forte.

Não ficou mais rápido.

Ficou… intencional.

A poeira parou de se mover ao acaso.

Os ventos giraram num padrão único, como respiração invertida.

As sombras pareciam procurar forma.

Kael desviou um clarão impossível.

Dante agradeceu sem encará-lo.

O ar perdeu o cheiro de tempestade e ganhou… direção.

Aiden sentiu isso primeiro.

O chão sob seu pé pulsou, não como impacto — como lembrança.

Ele parou.

O barulho ao redor diminuiu, como se todas as frequências baixassem simultaneamente.

O vento, que rugia, agora segurava fôlego.

O mundo parecia esperar que ele olhasse.

E quando ele olhou… viu.

Na extremidade da rua, entre poeira suspensa e luz deformada, uma figura estava parada.

Não sombra.

Não reflexo.

Não distorção.

Era uma falta.

Uma ausência tão definida que parecia uma presença incompleta.

O Véu tentou cobrir — borrando contorno, puxando sombras, criando pseudoexplicações.

Falhou.

Por um único segundo, ela ficou nítida.

E Aiden soube — sem dúvida, sem lógica — que ela o reconhecia.

Não como ameaça.

Como alvo marcado.

O mundo inteiro silenciou ao redor.

Não por paz.

Por respeito.

A figura simplesmente deixou de estar ali.

Mas a sensação ficou.

Ficou dentro dele.

Ficou no ar.

O chão vibrou mais uma vez.

Os prédios tremeram como se aguardassem ordem.

O vento se alinhou numa única direção — como se estivesse virando a cabeça para olhar.

E então—

As distorções ao redor se moveram juntas.

O caos, antes aleatório, se inclinou.

Aiden entendeu algo terrível e simples:

Isso não era mais clima. Não era mais Véu falhando.

Era o mundo… respondendo.

Ele deu um passo para trás.

Sentiu algo maior do que eles se aproximando — não por força, mas por colapso.

E era impossível ignorar a sensação que atravessou o grupo ao mesmo tempo:

se o mundo estava escolhendo um caminho… o próximo passo não seria humano.

ATO 3 — ECOS DO EU PARTIDO

O mundo não quebrou.

Ele cedeu.

O que começou como falhas pequenas — ondulações no ar, superfícies estranhas — agora se espalhava como rachaduras emocionais.

Era como se a realidade estivesse cansada de sustentar forma.

Klyrion pareceu notar antes de todos.

Ele ergueu o tridente e sorriu — não como quem domina o campo, mas como quem vê uma porta abrir sozinha.

— A verdade não cabe em um único reflexo — disse. — Então vamos multiplicá-la.

O ar dobrou.

As superfícies responderam.

Não porque obedeciam Klyrion — mas porque perderam o que as mantinha estáveis.

E por elas, instâncias começaram a sair.

Não clones.

Não ilusões.

Possibilidades deformadas de Klyrion, existindo por segundos, saltando de reflexos frágeis.

Aiden sentiu o campo responder — não a Klyrion, mas à falha dentro dele.

— Ele não tá copiando a gente… — murmurou. — O mundo tá ajudando ele sem querer.

Kael concluiu:

— Então a gente para de cooperar com o mundo.

Os clones não atacaram em linha.

Eles brotaram como erros surgem:

irregulares, incompletos, às vezes desaparecendo antes de terminar a frase do movimento.

Nami se protegeu com água — ela não reagia a cada ataque, reagia à intenção do campo, como se a água soubesse de antemão por onde as falhas iriam se manifestar.

Um semiclone a tocou com frio morto — não elemental.

Foi quase suficiente para derrubá-la, mas a água a puxou para trás.

Não havia vitórias.

Havia sobrevivência ajustada ao caos.

Kael percebeu que o vento não tinha lados.

Tinha vontades.

Ele não controlava — convencia.

Cada rajada era um acordo temporário.

Ele desviou um ataque não empurrando ar, mas apagando o suporte onde o clone pisava.

A superfície desistiu de existir; a instância sumiu junto.

— Entendi — Kael murmurou. — Não é contra eles. É contra onde eles querem nascer.

Maira entendeu do jeito dela.

Se toda superfície era oportunidade, então ela eliminaria superfícies.

Golpeou o chão para baixo, criando deformidades, irregularidades, texturas que impediam espelho momentâneo.

Não ergueu nada.

Quebrou tudo.

Um clone tentou surgir de uma poça — ela destruiu a forma d'água antes que ele se completasse.

— Aqui não — murmurou, firme.

Lyra não atacava reflexos.

Selava.

As raízes surgiam pequenas, rápidas, cobrindo rachaduras antes que pudessem virar portais.

Mas então surgiram as raízes pálidas: imitações mortas tentando copiá-la sem entender vida.

Uma roçou seu cajado — e o som seco, artificial, fez seu estômago embrulhar.

— Isso tá errado demais…

As raízes dela passaram a proteger o chão — quase abraçando o mundo para impedir que ele se desfizesse.

Aiden tentou congelar o campo — não uma linha, mas a intenção dele.

A falha espiritual devolveu o frio distorcido, curvado como culpa antiga.

Uma lâmina atingiu seu peito.

A outra se formou no ar… e tomou a forma dele próprio.

Não gelo.

Não carne.

Uma versão possível — a que chega tarde, a que falha, a que perde.

Aiden caiu de joelhos.

E o campo… parou.

Não para ajudá-lo.

Para esperar.

Como se reconhecesse aquela falha como chave.

O fragmento âmbar vibrou entre os entulhos — não refletindo luz, mas memória.

Kael sentiu a verdade implícita:

Era a mesma superfície que os acompanhava desde os treinos secretos.

A mesma que “via” o que eles não admitiam.

O reflexo se abriu.

E não trouxe Klyrion.

Trouxe eles mesmos, distorcidos:

— Dante endurecido, carregando arma que não era sua.

— Kael com olhos que confessavam a dúvida que ele esconde.

— Aiden com o vazio que sempre teme.

— Lyra coberta por raízes mortas.

— Maira marcada pelas falhas que tenta enterrar.

— Nami sem movimento, sem fluidez, sem alma.

Klyrion abriu os braços, triunfante.

— Agora sim…

A verdade inteira.

E a rua inteira prendeu o ar —

porque agora a batalha não era física, nem espiritual.

Era contra o que cada um mais teme ser.

ATO 4 — A CONSTELAÇÃO QUE DESPERTA

A água vibrou antes mesmo de Nami se mover — mas a vibração era dela.

A pressão do campo apertava como gargantilha, forçando cada herói a se mover mais rápido do que pensava.

As versões distorcidas avançaram sem lógica, como se o campo espiritual estivesse tentando montar corpos com sentimentos quebrados.

Nami puxou a água — não para atacar, mas para abrir espaço para respirar.

— Fiquem em pé. Só isso — murmurou, mais para si.

O vórtice apagou três distorções e desviou outras duas.

Não era força: era sobrevivência.

Maira sentiu o chão tremer — não por impacto, mas por falha.

Ela se ajoelhou e posicionou as mãos com firmeza.

— A gente não cai — disse, como quem assina um contrato.

O pilar que emergiu não foi exagerado — foi preciso.

Suficiente para quebrar uma investida e abrir caminho.

Mas o segundo pilar demorou — e ela entendeu:

o mundo não queria ajudá-los daquela vez.

Isso só a deixou mais teimosa.

Lyra entrou em sintonia com o próprio instinto — não com o campo.

As raízes brotaram rápidas, como reflexos emocionais, agarrando distorções antes que ganhassem forma.

Mas uma raiz pálida a tocou.

E algo nela recoou — como se tivesse sido copiada de maneira errada.

— Isso… não é vida — ela sussurrou, o rosto endurecendo.

As raízes dela mudaram de tom.

Agora protegiam, não só bloqueavam.

Kael lutava contra vento dividido: metade dele era leal, metade era falha.

— Me dá um braço — pediu ao ar.

O vento respondeu — instável, mas responsivo o bastante para erguer poeira e superfícies falsas para cima, tirando reflexos do alinhamento.

Era tudo que ele precisava.

Aiden viu sua versão distorcida se aproximando.

Ela não tinha expressão — porque a falha que ela representava nunca teve rosto.

Ele congelou.

Não por medo — mas porque era verdade.

— Eu não sou você.

O frio saiu leve, mas honesto — e congelou meia dúzia de distorções de uma só vez.

Não por poder bruto, mas por clareza emocional.

O corpo dele quase caiu — mas o grupo segurou a formação sem que ninguém precisasse falar.

Eles eram cinco pontos tentando se manter juntos num campo que queria separá-los.

Klyrion cambaleou — não por ataque, mas por perder controle do próprio domínio.

Partes dele viravam reflexo.

Partes viravam falha.

Partes tentavam se manter corpo.

— Insolentes… — sussurrou, mas a voz tinha duas frequências fora de sincronia.

Ele avançou.

Lâminas reflexivas rasgaram o chão.

Kael desviou uma.

Maira quebrou outra.

Lyra prendeu uma terceira por raízes vivas.

Mas a quarta veio — e foi Aiden quem congelou o ataque no ar, a poucos centímetros de Nami.

O campo tremeu.

Klyrion também.

E então ele se dividiu — não se multiplicou.

Três versões:

a do controle,

a da distorção,

a da intenção quebrada.

Elas avançaram nos pontos certos, tentando romper a formação:

— contra o fluxo de Kael,

— contra a água de Nami,

— contra o cajado de Lyra.

A formação oscilou.

Aiden sentiu seu frio tentando abandoná-lo — como se dissesse: você não aguenta.

Ele fechou os olhos.

Respirou.

E aceitou.

Encostou as duas mãos no chão.

O frio voltou como algo que reconhece lar.

Dois dos reflexos congelaram de imediato.

Klyrion olhou para o próprio braço trincado, incrédulo.

— Esse frio… não deveria existir.

Aiden abriu os olhos.

— Mas existe. Eu escolho o que ele é. Não você.

O campo, pela primeira vez, não resistiu ao grupo — alinhou-se.

Como se algo antigo estivesse dizendo onde cada um deveria estar.

Kael ergueu o vento.

Maira firmou a base.

Nami conectou a água.

Lyra entrelaçou as raízes.

E Aiden fechou o núcleo.

A Constelação Ascendente não foi criada.

Foi reconhecida.

— ASCENSÃO!

O feixe branco-dourado desceu — não como ataque, mas como correção.

Klyrion tentou dobrar luz, multiplicar reflexos, fugir pela falha — nada funcionou.

O feixe o desfez.

Silencioso.

Perfeito.

Final.

O Véu tremeu como se tivesse assistido tudo.

E um reflexo incompleto piscou atrás deles —

não ameaça,

não vida,

não morte.

Apenas aviso.

O silêncio que veio depois não parecia descanso.

Parecia prelúdio.

Algo tinha acabado.

E algo maior estava procurando onde começar.