ATO 1 — ENTRE O SONO E O CHAMADO

O Centro de Cuidados estava calmo demais.

E o silêncio… reagia.

Como se tentasse acompanhar seis ritmos ao mesmo tempo — e falhasse em todos.

Eles despertavam.

Não juntos.

Cada um quebrando o silêncio à própria maneira.

Kael abriu os olhos primeiro.

A irritação veio sem motivo, como se o corpo soubesse antes dele.

Ergueu a mão.

O ar respondeu tarde — um reflexo deslocado, fora de compasso.

Baixou a mão.

O vento imitou, atrasado de novo.

— Devagar…

O fluxo tentou se ajustar.

Falhou.

E Kael odiava quando o erro vinha do próprio elemento.

Nami despertou com a sensação de estar presa num lugar onde o som não chegava inteiro.

A curandeira falou algo.

Só movimento de lábios.

— Tem alguém me chamando — Nami murmurou.

A mulher franziu a testa.

— Você está sentindo dor?

Nami fechou a boca.

Frustração direta, crua.

O tipo de silêncio que machuca.

Aiden abriu os olhos acreditando que tudo estava normal.

Tocou o metal.

O frio formou-se rápido.

Mas não percebeu o detalhe:

o gelo surgia antes do toque.

“Pelo menos isso funciona.”

Maira sentiu um pulso leve no piso — como um batimento escondido.

Ela tocou o chão.

A vibração se moldou ao ritmo dela, obediente.

Nenhuma ameaça.

Nenhuma resistência.

Só presença.

E Maira sempre reconheceu quando algo estava vivo.

Lyra despertou ao cheiro verde.

Fresco.

Certeiro.

Brotos surgiam perto dos pés dela.

Não invadiam.

Se afastavam, abrindo espaço para cada movimento.

— Obrigada — sussurrou.

A natureza não respondia — acompanhava.

Dante viu a luz antes de ver o quarto.

Uma chama pequena dormia entre seus dedos.

Organizada e atenta.

Ele fechou a mão.

A chama recuou.

Abriu.

Ela voltou.

— Assim tá bom.

Fogo obediente era estranho.

Estranho… e muito útil.

Ryu foi o último.

Nada nele parecia reagir.

Nenhum brilho.

Nenhuma sombra fora do lugar.

Só máquinas discutindo entre si:

Sobe.

Cai.

Trava.

Reinicia.

Até que ele inspirou.

Um único movimento.

O dedo mínimo mexeu.

Simples.

Limpo.

Assustador por não ter fenômeno algum.

No corredor, o clima era pior que qualquer leitura de monitor.

A tensão parecia ter forma.

Jessica caminhava em círculos, irritação visível.

Sophia se encolhia no casaco, analisando cada detalhe sem demonstrar pânico.

Lukas observava os guardas — nunca as portas.

Eles estavam rígidos, prontos, atentos.

— Eles não estão aqui por nossa causa — Lukas disse.

Uma frase simples.

E o corredor pareceu encolher com ela.

Jessica parou.

Sophia engoliu em seco.

Nenhuma luz piscou.

Nenhum cristal falhou.

Só um ajuste leve no ar.

Como um movimento em outra ala.

Um deslocamento sem dono.

Não era aviso.

Não era ameaça.

Era preparação.

E, seja lá o que estava sendo preparado…

ninguém ali tinha sido convidado.

ATO 2 — O QUE NÃO É DITO

O hospital estava quieto demais.

Não era silêncio de descanso.

Era silêncio seletivo — o tipo que escolhe o que deixa passar.

Corredor impecável.

Luzes clínicas.

Cheiro suave de antisséptico.

E um desconforto que nenhum dos três conseguia explicar.

Jessica caminhava de um lado para o outro, inquieta demais para fingir calma.

Sophia observava tudo sentada, o olhar treinado para encontrar falhas.

Lukas não olhava as portas — olhava os guardas.

Demorou pouco para perceber:

eles não estavam lá para proteger pacientes.

Estavam lá para impedir aproximação.

A porta abriu.

A enfermeira saiu com um sorriso ensaiado demais. Plástico. Imóvel.

Jessica avançou meio passo.

— Queremos ver eles.

O sorriso não mudou.

— Visitação suspensa.

Sophia se levantou devagar.

— Isso vale pra todo mundo?

A enfermeira hesitou.

Meio segundo apenas.

Mas suficiente.

— Hoje, sim.

Ela recuou rápido demais e desapareceu no corredor, como quem cumpre uma instrução sem entender a instrução.

Jessica mordeu a irritação.

Sophia voltou ao assento, colocando aquela hesitação na mesma gaveta mental onde guardava anomalias.

O silêncio entre elas não era vazio.

Tinha troca.

Então o elemento humano apareceu.

Um enfermeiro jovem virou a esquina com uma prancheta na mão.

Ele não percebeu os três — até perceber.

Seu passo mudou.

O ombro travou.

O olhar fugiu.

Ele passou por eles rápido demais, quase tropeçando.

E deixou cair um papel.

Só então percebeu.

— Droga… desculpa… é que… — Ele abaixou para pegar e deixou outro cair.

A mão tremia.

Ele tentou sorrir, mas a expressão que saiu foi uma mistura estranha de nervosismo e culpa.

Um guarda pigarreou.

O enfermeiro empalideceu na hora.

— Eu… eu vou… ali — disse, sem saber pra onde apontar.

E saiu quase correndo.

Jessica e Sophia trocaram um olhar silencioso.

Aquele homem não estava disfarçando nada.

Ele estava quebrando.

Era a primeira rachadura humana naquele corredor controlado demais.

Jessica rompeu o silêncio:

— Vou no banheiro.

O guarda se mexeu imediatamente.

— Acompanho.

Sophia ergueu as sobrancelhas.

— É só o banheiro.

— Protocolo.

A palavra veio dura demais, mecânica demais, conjurada sem reflexão.

Ele a escoltou.

Voltou.

Posicionou-se exatamente como antes, como se tivesse sido colocado ali com régua e prumo.

Jessica voltou com o olhar mais tenso.

Sentou.

Não precisou explicar — Sophia já tinha entendido.

Um murmúrio baixo veio dos guardas.

Quase imperceptível.

Mas não imperceptível o bastante.

“…instáveis…”

“…não liberar ainda…”

Sophia congelou por um instante.

Jessica virou o rosto devagar, como se estivesse confirmando uma suspeita que não queria ter.

Não perguntaram “quem”.

Ambas sabiam.

Jessica quebrou o silêncio:

— Minha mãe tentou entrar ontem. Bloquearam também.

Sophia não piscou.

— A minha não conseguiu nem chegar perto.

Não era lamento.

Era informação.

Não era protocolo.

Era controle.

Jessica encarou um dos guardas.

Ele sustentou o olhar por alguns segundos.

Depois desviou.

Um erro pequeno.

Mas guardas treinados não desviam quando têm certeza.

E ninguém ali parecia ter certeza de nada.

A ala ao lado continuava fechada.

Atrás da porta, máquinas mudavam padrões como se procurassem um ritmo certo e não encontrassem.

Cristais tentavam estabilizar leituras que não queriam ser estabilizadas.

Um som abafado — quase uma respiração artificial — escapava por baixo da porta.

Jessica não ouviu.

Sophia não ouviu.

Lukas ouviu.

Ou, ao menos, registrou o arrepio frio que veio junto.

Os guardas também ouviram.

Mas não se moveram.

Não olharam.

Não verificaram.

Porque o que estivesse lá dentro…

não era algo para ser visto.

E, mais importante:

nem eles sabiam como reagir.

ATO 3 — LUKAS E O ECO DA LÓGICA

O hospital tinha silêncios demais.

Para Jessica, seriam presságios.

Para Sophia, seriam sinais.

Para Lukas, eram falhas.

Falhas de comportamento.

Falhas de protocolo.

Falhas de postura.

Enfermeiros evitando olhar.

Curandeiros acelerados demais.

Guardas posicionados não para proteger, mas para impedir aproximação.

Nada ali condizia com um ambiente médico.

E Lukas tinha visto situações assim antes — em lugares onde diziam uma coisa, mas executavam outra.

Ele identificou o padrão rápido demais.

Rápido até para ele.

Um curandeiro passou apressado e quase o acertou.

— A ala está restrita — avisou, sem que Lukas tivesse perguntado.

Isso chamou mais atenção do que qualquer alarme poderia.

— Por quê? — Lukas perguntou, simples.

O curandeiro não parou.

E o silêncio dele falou mais do que uma resposta longa.

A sala de registros era o próximo passo lógico — pelo menos parecia lógico naquele instante.

Ele foi até lá menos por dúvida do que por convicção…

convicção talvez rápida demais.

O recepcionista bloqueou a porta antes que ele entrasse.

— Área proibida.

— Só preciso de um relatório — disse Lukas, com a firmeza habitual. — Qualquer atualização.

— Não tenho autorização.

— Quem tem?

O recepcionista respirou fundo.

— Ordem do alto escalão.

Aquilo era absurdo.

E exatamente por isso fazia sentido — ou parecia fazer.

Voltando ao corredor, Lukas sentiu algo incômodo:

a decisão de ir à sala de registros havia sido automática demais.

Ele não tinha analisado o cenário completo antes de agir.

Tinha presumido que ali estaria a resposta.

Uma presunção apressada — e ele percebeu tarde demais.

“Fui rápido demais nisso.”

Ele não disse em voz alta.

Mas o pensamento ficou.

A lembrança da noite anterior surgiu, não como revelação, mas como distração.

Um vulto perto do muro da fortaleza.

Postura rígida.

Movimento controlado.

Altura familiar.

Por um segundo, Lukas pensou no pai.

O que não fazia sentido, ele sabia.

E mesmo assim, a hipótese surgiu antes de ser descartada.

Isso também era uma falha — pequena, humana.

Era mais provável ser um guarda.

Ou alguém em patrulha.

Mas o fato de ter pensado no pai por um instante dizia muito sobre seu estado mental:

as falhas ao redor estavam gerando falhas internas.

Ele seguiu até o corredor onde Ryu estava internado.

Nada alarmante à primeira vista.

Luzes normais.

Máquinas funcionando.

Ar estável.

Mas duas coisas destoavam.

A temperatura era mais baixa que no resto do hospital.

Não frio mágico — frio técnico, falha de ventilação.

E havia marcas recentes na porta.

Como se alguém tivesse se apoiado ali.

Ou tentado puxar.

Ou segurar.

Lukas se aproximou.

— Ryu? — chamou, por hábito.

Nenhuma resposta.

Então veio o bip.

Um só.

Isolado.

Monitores raramente fazem isso.

Lukas parou.

Não por medo — por lógica.

Algo mudou lá dentro.

Alterou o padrão.

Ele tocou a porta.

Nada.

Sem ruído.

Sem choque.

Mas estava mais quente do que deveria.

Um desbalanceamento.

Ou alguém mexeu.

Ambas hipóteses válidas.

Ele deu um passo atrás e tentou organizar a mente em camadas:

Temperatura.

Guardas rígidos.

Respostas ensaiadas.

Proibições incoerentes.

Máquinas erráticas.

Pessoas evitando perguntas simples.

Mas uma das peças não encaixava:

sua suposição inicial de que a sala de registros teria respostas.

Ele foi rápido demais.

Deixou o ambiente ditar o ritmo.

Corrigiu mentalmente:

“Observar primeiro. Concluir depois.”

O resto fazia sentido.

Não uma história mágica.

Mas uma história errada.

“Alguma coisa aqui não querem explicar.”

Lukas não sentiu medo.

Nem adrenalina.

Sentiu um ajuste interno —

como quem aperta um parafuso mental que estava frouxo.

Observar mais.

Falar menos.

E esperar a primeira falha real —

não a imaginada.

Porque em estruturas rígidas demais,

a primeira rachadura sempre entrega a verdade.

E agora ele sabia que precisava evitar criar rachaduras sozinho.

ATO 4 — ENTRE SEIS E O DESCONHECIDO

A sala improvisada estava quente demais para um espaço tão pequeno.

Cortinas fechadas.

Cristais instáveis.

Ar pesado, lento, que parecia empurrar os pensamentos para baixo.

Os seis estavam juntos.

Mas nenhum se sentia acompanhado.

Cada um carregava uma emoção diferente — irritação, medo, ansiedade, curiosidade, vergonha, serenidade — e essas diferenças se tocavam como pedras dentro de um saco apertado.

Kael entrou primeiro.

O vento entrou com ele.

Ele tentava respirar devagar, mas o ar reagia antes, vibrando curto, impaciente.

Kael não parecia assustado.

Parecia irritado.

— Só preciso de um minuto de paz — murmurou.

Era seu jeito: endurecer quando algo saía do controle.

Nami sentou perto, os joelhos próximos ao peito.

Não tremia, mas estava fechada.

Gotas formavam um círculo na pele do braço, como se testassem a distância correta.

— A voz… ainda tá ali — sussurrou.

Medo quieto.

Medo que tenta não ocupar espaço.

Dante estava no canto, abrindo e fechando a mão.

Brasas surgiam, desapareciam, voltavam.

Ele tentava parecer relaxado, mas o olhar o entregava.

— O fogo tá tentando… conversar. — riu sem humor. — E eu não falo brasa.

Ansiedade mascarada.

Ele sempre tentava parecer forte pelos outros.

Maira se sentou com calma — calma treinada, não natural.

O chão pulsava sob seus pés, leve, como batimento tímido.

Ela encostou a mão, estudando a vibração.

— Ele reconhece a gente.

Havia curiosidade genuína no tom.

Medo também, mas escondido atrás da análise.

Aiden mantinha as mãos escondidas entre as pernas.

Linhas finas de gelo surgiam e derretiam sem controle.

— Acho que… tô atrapalhando — murmurou.

Era vergonha.

Não medo do poder — medo de ser o problema.

Lyra estava encostada na parede.

Pequenas folhas nasciam aos seus pés, brotavam e sumiam com a respiração.

Ela observava cada broto como se fossem conhecidos antigos.

— Não dói — disse. — Só… acompanha.

Calma demais.

Serena demais.

Quase deslocada.

O silêncio entre eles parecia diferente para cada um:

incômodo para Kael, sufocante para Nami, arriscado para Dante, fascinante para Maira, pesado para Aiden, neutro para Lyra.

Um mosaico emocional imperfeito.

Kael respirou fundo.

— A gente viu, né? Não foi sonho.

Nami encolheu os ombros.

Dante mordeu o lábio.

Aiden desviou o olhar.

Maira assentiu.

Lyra apenas observou.

Todos confirmaram — cada um à sua maneira.

Nami falou primeiro:

— A água… ela… me chamou. Eu não pedi.

Dante soltou um riso curto:

— O fogo não pede. Ele só fica esperando eu vacilar.

Maira tocou o chão, quase carinhosa:

— A terra me reconheceu. Não era hostil.

Aiden apertou os dedos:

— Eu… vi alguém no reflexo da água. Disse que eu negava quem eu era.

Kael passou a mão no rosto.

— O ar não obedece. Tá tentando decidir por mim.

Só Lyra hesitou.

— Lyra? — Kael perguntou.

Ela levantou o rosto devagar.

O olhar não era perdido. Era antigo.

— A natureza não falou — disse. — Nem chamou.

Os outros esperaram.

— Ela me recebeu.

Simples.

Direto.

E a sala mudou.

Cada um reagiu diferente:

Kael — tensão imediata.

Nami — compaixão.

Dante — um desconforto estranho, quase inveja.

Maira — fascínio puro.

Aiden — medo.

Lyra — constância.

O peso emocional ficou desigual.

Kael fechou os olhos.

— A gente não tá pronto.

Nami abaixou a cabeça.

Dante recostou na parede.

Aiden tremeu os dedos.

Maira observou o pulsar da terra.

Lyra deixou outra folha brotar.

Então Nami disse, num fio de voz:

— O que quer que seja… não vai esperar a gente estar.

Não foi união perfeita.

Mas foi direção.

Dante ergueu a mão, que tremia pouco demais para parecer firme:

— Então ficamos juntos. Como der.

Maira assentiu.

Aiden respirou fundo.

Lyra deixou mais uma folha crescer, tranquila.

Kael abriu os olhos.

— Vamos entender isso.

Pausa.

— Antes que outra coisa entenda por nós.

O silêncio que seguiu era torto, irregular.

Seis peças tentando formar um círculo.

Era frágil.

Mas era começo.

E, na sombra da sala, algo observava.

Atento às brechas.

Às diferenças.

Às fragilidades.

A Luz estava mudando.

E a Sombra sabia exatamente como usar isso.

ATO 5 — A DECISÃO QUE QUASE ATRASA

O Salão Prismático parecia maior do que deveria.

As luzes azuladas subiam pelas colunas de cristal e escorriam pelo teto. As runas se moviam como constelações vivas.

Chamavam de treino.

Mas ninguém respirava como se fosse.

Kaelios rompeu o ar antes dos outros. Avançou sem pressa, só precisão.

A lança acertou Korvus com um estalo que ecoou nas paredes. O piso rachou em três linhas irregulares, incapaz de absorver um golpe tão direto.

Ele recuou apenas o bastante para medir o impacto.

Nada em Kaelios era instintivo ali.

Era cálculo.

Avaliação.

Caça.

Korvus respondeu com um único soco. Simples, seco, brutal.

O chão reverberou. As runas tremeram.

Ele observou a rachadura se espalhar, mas seu olhar já revelava o incômodo:

Aquilo não era força.

Era pressa.

E algo já estava avançado demais.

Arcétean desceu de um pilar em um giro fluido. As lâminas traçaram riscos azulados no ar, pontuais, perfeitos.

Nada desperdiçado.

Némaia ergueu a mão e a água se moldou ao redor dela. Cada desvio era suave, calculado, como se ela previsse o movimento antes de ele nascer.

Os dois percebiam o mesmo:

Os seis jovens não estavam despertando.

Estavam sendo puxados.

O som da lança de Kaelios batendo no centro da arena cortou a tensão.

— Eles reagiram mesmo desacordados.

Korvus cruzou os braços, rígido como pedra.

— Reagir não é problema. — Sua voz era baixa. — Reagir assim… é.

Astraim ergueu o escudo para bloquear fragmentos de energia que ainda serpenteavam no ar.

— A Luz não faz isso sem motivo. — Ele desviou outro feixe. — E não vamos descobrir chutando hipóteses.

Selene avançou. A espada estelar vibrava num tom quase preocupado.

— Eles precisam entender o que estão carregando. — Seu olhar escureceu. — Se não der tempo… alguém vai ensinar no nosso lugar.

Ninguém respondeu.

O silêncio disse tudo.

Talerion entrou na arena.

As correntes espirituais ao redor dele se agitaram, inquietas.

— Há algo na Solarion — disse.

Sem drama.

Sem pausa.

Só verdade.

Kaelios girou a lança. O cristal reagiu com um zumbido agudo.

— Invasão?

Talerion negou lentamente.

— Não parece invasão.

Um segundo de silêncio.

— Parece que algo está espreitando, tentando se aproximar.

A palavra pesou no ar.

Algo próximo o bastante para fingir ser Luz.

Mas imperfeito demais para enganar por muito tempo.

Uma sombra aprendendo.

Altherion ergueu a mão. Pilares de luz subiram ao redor.

— Se a Terceira Chave está perto da Solarion…

Astraim completou:

— …não temos mais margem.

Nada respondeu.

As runas ficaram imóveis.

O silêncio foi aceitação.

A arena se esvaziou rápido.

Não por pânico.

Por urgência.

Em pouco tempo, só Altherion restava diante do maior cristal.

Ele se ajoelhou e tocou a superfície.

A Luz respondeu desalinhada.

Inquieta.

As imagens vieram em cortes quebrados:

Vento contra vento.

Mar invadindo o alto.

Fogo recuando como se temesse a própria chama.

Terra desfazendo-se antes de formar algo.

Vida brotando fora de lugar.

Gelo marcando fronteiras inexistentes.

E uma sombra… não observando.

Analisando.

O impacto o fez recuar.

A segunda visão veio como golpe:

A Solarion.

Um corredor comum.

Sete jovens caminhando.

Atrás deles, sete silhuetas distorcidas.

Imitações.

Sombras incompletas.

A voz que veio junto estava irritada, não profética:

“A Luz desperta.

E algo tenta imitá-la.”

O cristal brilhou roxo. Firme. Definitivo.

— Não querem destruir… — Altherion sussurrou.

— Querem substituir.

A mensagem atravessou a fortaleza, deslizando pelas runas e paredes como um raio silencioso…

…até alcançar o único lugar desprotegido.

A Solarion.

Que estava completamente exposta ao que tentava corrompê-la.

ATO 6 — SINAIS QUE NÃO CABIAM NA ROTINA

A Solarion parecia normal demais.

Corredores cheios.

Gente falando alto.

Professores correndo para tentar controlar o caos que nunca realmente controlavam.

Tudo estava no lugar.

E, ao mesmo tempo, nada estava no lugar.

Os Sete Rivais avançavam como se tivessem treinado para ser populares.

Reno cumprimentava todo mundo.

Nirse posava para cada celular apontado na direção deles.

Ilia absorvia elogios como se aquilo fosse natural.

Violet caminhava com pose exagerada.

Daryl parecia perdido tentando acompanhar.

Craven filmava tudo como se fosse um vlog profissional.

Enquanto isso, Skam, mais quieto e observador, percebeu uma pequena falha de sincronia no fluxo da escola.

E isso fazia o estômago dele apertar.

Mas o primeiro erro não aconteceu com ele.

Aconteceu com Violet.

Ela passou sob uma lâmpada.

A luz oscilou.

Nirse, que estava alguns passos atrás, reagiu.

Ela piscou forte, como se tivesse levado um flash direto no rosto — mesmo não estando sob a lâmpada.

— Ugh, que luz é essa? — reclamou.

Só Skam percebeu que não havia luz forte nenhuma onde ela estava.

Ele olhou para a lâmpada.

Depois para Nirse.

O incômodo nele começou aí.

O segundo erro veio antes de ele conseguir descartar o primeiro.

Daryl bateu a mão no armário de metal enquanto ria de uma piada de Craven.

Recuou imediatamente.

— Tá quente! Por que esse armário tá quente?

Violet virou o rosto na hora, sem ouvir Daryl, mas o reflexo dela no espelho ao lado tremeu como se tivesse recebido o impacto.

A imagem dela reagiu antes do corpo.

Como se o reflexo sentisse antes que ela percebesse.

O terceiro erro aconteceu quando Craven tropeçou.

Normal.

O típico tropeço dele.

Mas o que não era normal foi Ilia reagir como se alguém tivesse esbarrado nele — mesmo estando três passos à frente e fora do alcance.

Ele deu um tranco para o lado, a mão subindo instintivamente como se tivesse levado uma ombrada.

Só que ninguém o tocou.

Skam andou mais devagar.

No corredor dos espelhos, o quarto erro aconteceu.

Violet passou em frente ao espelho central — e o vidro tremeu, como antes.

Mas desta vez, quem reagiu foi Nirse.

Ela pousou a mão no próprio braço, como se algo tivesse passado sobre a pele.

— Por que tá frio aqui? — perguntou, confusa.

Mas o ar ali estava normal.

O frio tinha sido só para ela.

As falhas estavam cruzando entre eles — e nenhuma delas fazia sentido.

Skam sentiu o corpo travar.

Ele olhou para o chão.

Para a própria sombra.

E nesse instante, Craven deu outra tropeçada atrás dele.

O reflexo de Ilia tremeu no vidro.

E a sombra de Skam… atrasou, não por causa dele.

Mas por causa do tropeço do outro.

Ele ergueu o braço devagar.

A sombra hesitou.

Um atraso mínimo, mas existia.

Skam abriu e fechou a mão.

A sombra tentou acompanhar, não conseguindo completamente.

Algo gelado percorreu sua coluna.

Ele virou devagar.

— Gente…

A voz saiu fraca, quase infantil, para alguém tão lógico quanto ele.

Mas ninguém parou.

Nirse ria de uma foto.

Reno comentava algo sobre o treino de mais tarde.

Daryl falava sobre jogos.

Violet reclamava do reflexo no espelho.

Ilia ajeitava o cabelo pela quinta vez.

Craven filmava tudo, como sempre.

Ninguém tinha visto nada.

— Tem algo errado com a gente — Skam disse, baixo.

Reno nem olhou.

— Relaxa, cara. Estamos só… finalmente com sorte.

“Paranoia.”

“Cansaço.”

“Impressão.”

“Você pensa demais.”

O grupo seguiu andando.

Skam ficou.

O corredor parecia vazio demais e, ao mesmo tempo, consciente demais.

Como se estivesse esperando a próxima interação falhar.

Ele respirou fundo.

Tentou recuperar a normalidade.

Não funcionou.

Havia algo ali — não atrás dele, não à frente — mas entre eles.

Skam esfregou o rosto.

“Eu preciso de ar.”

Começou a andar, mas agora sentia o corredor acompanhar.

E mesmo sem provas sólidas —

sem nada claro —

ele sabia.

Os sete estavam mudando. E algo nas sombras parecia saber disso antes deles.

ATO 7 — OS ARAUTOS MOVEM A PRIMEIRA PEÇA

O vazio respirava de um modo que não lembrava silêncio.

Era uma vibração abafada, pesada, semelhante ao despertar lento de algo que nunca deveria ter adormecido.

As paredes — se fossem paredes — pulsavam como tecido vivo, e veios escuros se moviam nelas com um ritmo próprio, quase paciente.

O ar permanecia suspenso, aguardando um comando.

No centro, a fenda vibrava como uma ferida que se recusava a fechar.

A primeira rachadura do selo.

Diante dela, os três Arautos observavam.

Vareth permanecia ereto, completamente imóvel; a ausência de rosto não era ausência, mas profundidade — uma escuridão que engolia qualquer luz que ousasse tocá-lo.

Seris movia os dedos como quem afina cordas invisíveis; sua voz nunca vinha de um único lugar, sempre fragmentada em múltiplos tons.

Norath respirava arrastado, e cada expiração parecia arranhar o próprio espaço, enquanto as runas em seus braços pulsavam de forma irregular.

O chão púrpuro brilhou, o mesmo padrão que havia atravessado a mente de Altherion horas antes.

Seris rompeu o silêncio primeiro, a voz fracionada como cascos quebrando gelo fino:

— O rastro da Terceira Chave voltou a vibrar… embora não esteja íntegro.

Norath ergueu o rosto num movimento lento.

— Fenda… ou fragmento?

Vareth apenas levantou a mão.

O glifo no chão estremeceu, recuando como se tentasse se afastar.

— Viva.

A pausa carregou peso.

— Inquieta.

Até para eles, aquilo não era trivial.

A fenda reagiu e projetou imagens distorcidas da Solarion:

Reno, Nirse, Violet, Ilia, Craven, Daryl e Skam — figuras instáveis, como se os contornos de suas sombras tentassem se ajustar a algo que não pertenciam.

Norath soltou um som que lembrava desdém:

— Recipientes frágeis.

Seris sorriu pouco.

— Fragilidade abre espaço.

Seu toque distorceu ainda mais a projeção, que ondulou como tinta negra espalhada em água fria.

— E espaços se tornam portas.

Vareth estudou os sete jovens com precisão de carrasco.

— Sem acorde.

— Sem legado.

— Sem direito ao selo.

Ele inclinou ligeiramente a cabeça.

— Mas cheios de fissuras.

— Desejos.

— Vontades mal resolvidas.

O glifo púrpuro pulsou como uma resposta silenciosa.

Norath deixou escapar algo que soou como um sorriso áspero.

— Perfeitos.

— Vazios o suficiente para aceitar qualquer forma… sem perceber que estão aceitando.

Seris deixou as sombras projetadas se diluírem.

— Eles querem ser vistos.

Vareth respondeu com simplicidade:

— Então veremos.

As runas nos braços de Norath vibraram.

— O rastro aumenta a cada hora.

Seris completou:

— A Chave está próxima deles. Muito próxima.

Vareth fechou a mão, e a projeção se desfez.

— Misturada. Oculta pela própria ignorância.

As três vozes ecoaram juntas, como um único pensamento dividido:

— A caçada começa.

Um pulso grave atravessou o vazio.

Vareth estendeu a mão, e da fenda escorreu um filamento de sombra, não exatamente sólido, não exatamente fluido.

— Marcaremos o primeiro.

Seris deixou o filamento tocar seus dedos.

— Não precisamos de impacto.

— Só de presença.

Norath murmurou, a voz baixa demais para ter certeza de que fora dita:

— Alguém sempre responde.

A sombra deslizou, atravessando a fenda, e sumiu no espaço entre mundos.

Na Solarion, o corredor estava quase vazio.

As luzes muito fracas para o horário, e o ar mais frio do que deveria.

Skam caminhava sozinho, a mochila pendendo do ombro, sem perceber que o silêncio estava mais fundo do que em qualquer tarde normal.

O fenômeno veio sem aviso, mas não como toque.

Foi uma oscilação —

um atraso mínimo no som do próprio passo.

Skam pisou.

O eco veio meio segundo depois, como se o corredor tivesse demorado para registrar o impacto.

Ele parou.

O eco continuou, como se tivesse vida própria.

O ar então deslocou levemente atrás dele, não em direção, mas em pressão —

como quando alguém passa rápido demais em um lugar estreito.

Skam virou a cabeça devagar.

Nada se movia.

Nada estava fora de lugar.

Mas o som do corredor parecia… atrasado.

Como se os ruídos tivessem que “alcançar” o espaço antes de chegar aos ouvidos dele.

Um cheiro fraco — algo metálico, quase inexistente — atravessou o ar.

Não havia motivo para aquele cheiro ali.

O coração de Skam acelerou em um ritmo irregular, como se tivesse perdido a contagem de batidas por um instante e precisasse reorganizar o fluxo.

Ele fechou a mão instintivamente.

Não por medo.

Por reflexo.

O corredor não explicou nada.

E também não disfarçou nada.

Skam respirou fundo e percebeu que o ar entrou no peito um pouco atrasado.

Um atraso que não era fisiológico.

Algo havia passado por perto.

Ou o espaço tinha falhado por um breve segundo.

Na fenda distante, Vareth comentou, com a voz quase sem som:

— Está no lugar certo.

O vazio respondeu com um brilho contido, como se aprovasse.

Nada mais precisou ser dito.

E a Sombra recuou, satisfeita, enquanto o corredor da Solarion voltava ao normal devagar demais para parecer coincidência.