— Hermes é o traidor.
O silêncio que se seguiu à acusação de Zeus tornou o ar mais pesado. Todos os olhares se viraram para o deus mensageiro.
— Você! — Zeus marchou na direção de seu filho a passos pesados que erodiam o piso de mármore do saguão dourado — Ousa sorrir diante de sua traição?
— Pai- Por favor, seja razoável, Hermes nunca- — Apolo se aproximou do pai gesticulando com um rosto preocupado.
Um trovão explodiu do lado de fora. Apolo estremeceu e silenciou com o olhar temeroso.
— Traição? — A voz de Hermes era calma, quase jocosa. — Você se afoga em profecias estranhas e teme a sombra dos Titãs, e chama seu próprio filho de traidor? Sua paranoia o cegou, meu pai.
Os olimpianos arregalaram os olhos, incrédulos da irreverência de Hermes frente ao seu pai.
Outros passos pesados ecoaram atrás de Zeus. Ares, o Deus da Guerra, marchava com sua lança ao centro do coliseu.
— Você já se divertiu o bastante, irmão — rosnou o deus da guerra em um tom de advertência — Talvez precise pensar sobre suas ações no Tártaro.
Impetuoso. Agia como o braço direito, a força de seu pai e de todo o Olimpo. Tinha o orgulho para tal.
Tsiip. Pump
Hermes sumiu como um feixe. Antes que Ares pudesse sequer tirar o cabo da lança do chão, o deus mensageiro reapareceu em uma investida no ar e deu-lhe um chute devastador no nariz. O deus da guerra voou para trás, e atravessou um pilar de mármore. Ele tentou se levantar com braços apoiados nos destroços, mas caiu, inconsciente.
Todos arregalaram os olhos e apertaram suas armas. O susto, tanto pelo ataque repentino, quanto pela violência, escapou na forma de suspiros exasperados.
Hera tinha os olhos arregalados. Sua mente paralisada enquanto ela, de boca aberta, encarava o desenrolar da cena. “Um maldito bastardo ousa encostar um dedo em meu filho?”
Poseidon se levantou de seu trono com seu tridente em mãos. Não parecia abalado
— Você está condenado, sobrinho.
— Pessoal, por favor- — Apolo suplicou exasperado, preocupado.
— NINGUÉM. MOVE. UM. DEDO. — Zeus rugiu, e outro trovão ressoou no Olimpo.
Seus olhos brancos e elétricos estavam fixos em Hermes.
Em um instante, o corpo de Zeus esmaeceu num branco amarelado, e a atmosfera do saguão ruiu com um zunido que abalou os ouvidos de todos. No instante seguinte, transformou-se num raio e avançou, para trás um fantasma de faíscas elétricas ficou.
O Mensageiro se prostrou, erguendo os braços numa guarda. O raio retomou a forma de Zeus irrompendo em um soco supersônico. As braçadeiras do mensageiro cederam imediatamente ao impacto, pulverizadas. Ele rangeu os dentes.
Os joelhos de Hermes não cederam, e seus pés deixaram um rastro de destruição no pavimento branco do saguão enquanto ele era arrastado para trás.
Zeus não deu descanso, seus punhos transformados em lâminas elétricas avançaram em socos que vinham de todas as direções.
Seus braços, envoltos em energia, formavam borrões de luz em socos que quebravam a barreira do som. Ninguém era capaz de competir com essa velocidade. Ninguém, exceto a própria encarnação da velocidade.
Hermes, em essência, era a única coisa superior à velocidade alcançada pelo Deus dos Raios.
O Mensageiro se esquivava como um vulto dourado a zombar da fúria de seu pai, e seus contra-ataques, irritantes como picadas de agulha, deixavam-no ainda mais furioso.
Golpes rápidos e precisos nos joelhos, nos cotovelos, nas articulações do rei.
Quando um dos contra-ataques de Hermes atingiu em cheio o abdômen, Zeus urrou e sentiu o ar escapar de seu peito. De dentes crivados e maxilar cerrado, ele gritou para o céu e um raio desceu ao seu amparo, rompendo o teto do salão.
Seus cabelos longos e brancos brilharam com faíscas e endureceram com a estática. Ele gritou e avançou mais uma vez.
A velocidade dos golpes de Zeus era agora ainda maior, seu rosto se tornou um vulto furioso indistinguível que tremeluzia. Seus braços começam a formar borrões de luz no ar emanando faíscas elétricas.
Hermes lutava para desviar e não conseguia mais contra-atacar pois a aura elétrica nos punhos de Zeus agora se expandia e tomava conta de todo o seu braço. Era perigoso se aproximar, mesmo por um único instante.
As faíscas escapavam dos punhos e cortavam o ar e a pele de Hermes a cada esquiva por um triz.
Em um milésimo de segundo perdido após um tropeço descuidado num dos destroços do saguão, cortes fundos surgiram imediatamente em seus braços e em seu rosto.
Hermes foi forçado a recuar. Ele estava sendo encurralado. Zeus, ao sentir a mudança, pressionou ainda mais e avançou. Ele ergueu o punho para um golpe final, um martelo de raios que prometia esmagar seu filho contra as paredes do Salão.
Apolo, que observava paralisado pelo terror, viu o golpe se formando. Viu a exaustão nos olhos de Hermes. O temor pela vida de seu irmão superou o pavor que sentia de seu pai.
— PAI, PARE! — Seu apelo desesperado se perdeu no rugido da tempestade.
Apolo saltou de seu lugar, para puxar Hermes para longe do caminho da aniquilação.
Naquela fração de segundo, o tempo se distorceu. Hermes, vendo o golpe de Zeus descendo, executou sua manobra mais desesperada. Num instante quase imensurável, puxou o Caduceu preso em sua cintura, e em sua mão ele brilhou com uma luz dourada. As duas serpentes envolviam sua haste sibiliram, seus corpos de ouro se moveram, se torceram e se fundiram atravessando as asas laterais, formando em um instante uma lâmina dourada elegante, afiada e mortal.
Com a arma divina agora em punho, ele avançou sob o golpe de Zeus, mirando o flanco exposto de seu pai. Foi nesse exato instante que Apolo o alcançou.
O corpo de Apolo se moveu para o espaço onde Zeus estava um momento antes, suas mãos se estendiam para o ombro de Hermes. A lâmina do Caduceu, carregada com a força de um deus e a velocidade de um cometa encontrou seu destino.
Encontrou o peito de seu irmão.

Um baque surdo, doentio e terrivelmente umido ecoou no saguão. Apolo congelou, sentindo o ar escapar de seus pulmões em um gemido chocado. Seus olhos amarelos se arregalaram em choque quando ele olhou para o irmão.
Hermes, por sua vez, sentiu o impacto errado. A resistência macia demais. O Caduceu, como se percebesse por si o erro terrível, desfez-se em sua mão, as serpentes se desenrolaram e voltaram à sua forma de cajado. Um cajado agora manchado com o icor dourado de Apolo.
A lira caiu das mãos do deus da música para o mármore com um som desafinado e triste, uma corda se rompeu com o impacto. Ele tropeçou para trás com o olhar ainda fixo no de Hermes, e então desabou no chão, inerte.
O coliseu se tornou silencioso por um instante longo. A tempestade de Zeus cessou. Seus olhos estavam arregalados e a boca aberta em horror. Hera levou as mãos à boca.
Hermes, paralisado, encarou o Caduceu que deslizava de sua mão trêmula. Olhou o corpo de Apolo no chão, e depois para seus dedos ensanguentados.
— Meu… filho…
Zeus estendeu a mão trêmula em direção ao corpo de Apolo no chão, mas no meio do caminho, seus olhos se fecharam e seu maxilar se cerrou. Ele urrou.
— MATEM-NO!
No mesmo instante, a névoa entorpecente de Dionísio subiu do chão e tornou o saguão em um pântano roxo. As vinhas de Hera brotaram das rachaduras, agitadas como serpentes. O tridente de Poseidon se chocou contra o mármore e fez o chão tremer.
Hermes, em seu torpor após ter assassinado o seu irmão caiu de joelhos.
A tontura e embriaguez começava a se apoderar de sua mente. Virou-se. Antes que tudo desaparecesse, conseguiu encarar uma figura enorme e gorda, com um barril na mão, desaparecendo em meio ao gás roxo.
— Já chega, irmãozinho. — Disse Dioniso em um torpor raivoso e bêbado.
A neblina parecia surgir a partir dele, antes de o engolir por completo.
Hermes levou a mão ao pescoço, uma queimação ácida tomava sua boca e queria se espalhar para o resto do corpo. Sua visão se tornou turva.
Seus pensamentos já não se encaixavam mais com a clareza de antes. A dor, o arrependimento, o medo, tudo se misturou em sua mente. A junção de todas deu origem a mais uma. A raiva.
“Foram vocês.” Ele pensou.
— VOCÊS QUE ME FIZERAM MATÁ-LO!
A dor em sua voz ecoou pelo Coliseu. Sua visão, turva pela névoa de Dionísio e pelas lágrimas que ele tanto se recusava em derramar, buscou as figuras de seus parentes. Seus algozes.
A raiva, pura e primordial, explodiu, em meio ao torpor e a confusão. Ele avançou cegamente na névoa púrpura.
Uma sombra se ergueu sobre ele com um tridente em mãos. Hermes conseguiu desviar por pouco do arco descendente das três pontas. Uma chuva de mísseis d’água caíram sobre ele no mesmo instante. A visão turva o impediu de desviar de todos, e ele sentiu algo atravessar o seu ombro. Rangeu os dentes.
Ele girou nos calcanhares e flexionou os joelhos, então avançou contra Poseidon com um punho firme na barriga. Seu tio grunhiu e voou com o soco para algum lugar naquela névoa.
Outra silhueta apareceu. Hermes saltou em sua direção em alta velocidade. E então, socou o vento. Então, outra vez. Ele socou, e nada acertou. E outra, outra.
Rangeu os dentes.
— AFRODITE! APAREÇA DE UMA VEZ, SUA VADIA! — sua voz estava distorcida pelo ódio.
O gás de Dionísio se adensou ao seu redor, e silhuetas começaram a dançar em sua visão periférica. Eram as ilusões de Afrodite, cruéis, personalizadas. Ele viu Apolo, sorrindo para ele, a lira em mãos. De repente, o sorriso se desfez, substituído pela expressão de choque e dor, o peito sangrou e ele caiu no chão.
— Não… — Hermes gemeu e atacou a imagem com um soco desesperado que encontrou apenas o ar.
Ele fechou os olhos.
— Pare! — lágrimas escorriam como rios pelas maçãs de seu rosto.
Enquanto ele estava distraído pela tortura psicológica, um pio agudo cortou a névoa. Uma coruja branca voou em sua direção. Estava cego pela raiva. Seu braço subiu de forma automática com o punho fechado.
No instante do impacto, a ilusão se desfez, a forma da coruja se esticou e afiou.
— GAH!
A lâmina de bronze celestial perfurou seu antebraço, atravessando músculo e osso. A dor aguda o trouxe de volta à realidade. Ele olhou, chocado, para a lança cravada em seu braço. Ao retirá-la com um grunhido, viu seu sangue divino escorrer, mas não em seu dourado habitual. Estava tingido de um tom púrpura doentio.
“Envenenado,” a constatação foi tardia. Atena, a estrategista, havia se aproveitado de sua fúria.’
Fwishh
Uma flecha negra cruzou o espaço, o som de sua passagem limpando um corredor na névoa. Hermes, cujo corpo começava a sentir a dormência do veneno, desviou por puro instinto. A flecha passou de raspão em sua coxa, e uma paralisia elétrica subiu por sua perna.
“Até Ártemis…”, ele pensou, surpreso, mas notou que, para a melhor caçadora do universo, o tiro havia sido estranhamente impreciso.
A flecha, no entanto, lhe deu uma ideia. Ao ver o caminho que ela abrira na névoa, ele agiu. Ignorando a dor, o veneno e a paralisia iminente, Hermes começou a correr. Ele correu em círculos, cada vez mais rápido, um borrão dourado que gritava em agonia e dor. Um redemoinho começou a se formar e passou a sugar a névoa de Dionísio para seu centro e a dissipava pelas paredes quebradas do salão com a força centrífuga avassaladora.
O ar do Coliseu ficou limpo. Mas o esforço custou a Hermes o resto de suas forças. Ele tropeçou sentindo o corpo finalmente ceder, e caiu de joelhos no chão rachado. O veneno de Atena e a paralisia de Ártemis agora corriam livres por seu sistema. Seu braço perfurado começou a se regenerar lentamente, mas a centelha divina estava sendo gasta para combater as toxinas.
Ele estava vulnerável.
— Ainda persiste? — A voz de Atena veio acompanhada de escárnio.
Hermes tentou se levantar, mas seus pés pareciam âncoras. Ele olhou para baixo e viu. Vinhas espinhosas, emanando uma aura púrpura, haviam brotado do mármore e se enrolado em seus tornozelos, subindo por suas pernas.
— VOCÊ! — Hera se aproximou com os olhos tomados por um brilho roxo e furioso — Um bastardo ousa levantar a mão contra meu filho… e matar um de seus irmãos!
As vinhas se apertaram, torceram e acabaram por quebrar os ossos de suas pernas com estalos secos. Um grito de dor escapou em meio a veias saltadas na garganta de Hermes.
Rangeu os dentes e lançou o punho num golpe desesperado, mas sentiu algo perfurá-lo no mesmo instante. O tridente de Poseidon cortou o ar, perfurou o antebraço de Hermes e o cravou no chão.
O rei dos mares se vinha das ruínas do pilar destruído contra o qual ele havia sido arremessado. Suas vestes rasgadas e seu rosto marcado pela exaustão.
Hera estendeu o braço para Hermes, e uma aura púrpura fluiu violentamente em sua direção. O rapaz gemeu ao sentir a dor de mil agulhas penetrarem o seu corpo.
Dos céus, Zeus flutava lentamente, sobre seu filho imobilizado. As pontas de suas sobrancelhas brancas estavam arqueadas para cima, os olhos cansados e entreabertos. Com um suspiro pesado, ele parou.
— Você não será o arauto do fim — Zeus ergueu a mão, e um raio em formato de lança, crepitando com o poder do céu, se materializou. — Eu o despojo de seu domínio. De sua velocidade. De sua divindade. Você será acorrentado à carne mortal, para que apodreça como um deles, esquecido e impotente.
Ele respirou fundo, encheu o peito e cravou seus dedos no relâmpagou em sua mão.
— SEUS TEMPOS COMO UM DEUS, ACABARAM!
A lança elétrica desceu dos céus, cravando-se no peito de Hermes.
O grito do deus da velocidade foi ensurdecedor. Ele sentiu sua essência divina ser estilhaçada, fragmentada. Seus cabelos dourados perderam o brilho, e tonaram-se brancos como ossos. A magia de Hera, potencializada pela energia do raio, queimou em seu peito, marcando-o física e espiritualmente.
A investida do raio continuou até que as vinhas queimassem e o chão de mármore abaixo dele cedesse. Ele cruzou o céu da Grécia como uma gigante serpente de raios, deixando para trás um panteão quebrado e o corpo sem vida de seu irmão.
— Quem diabos permitiu que parasse? — a voz fina e irritada de um nobre ecoou de dentro da carruagem.
Um homem forte de armadura negra, o capitão da escolta, Íxion, aproximou-se, apontando para a destruição à frente.
— Há algo estranho, meu Lorde. Uma cratera. Recomendo que permaneça na segurança de seu veículo.
O nobre, um homem de meia-idade de cabelos lambidos até o pescoço, vestindo um quitón amarelo e um rosto flácido marcado pela covardia, desceu apressadamente.
— E se forem ladrões? Vão roubar meus escravos! Nem pensar! Eu vou com você!
Íxion revirou os olhos e, com um gesto para que seus homens ficassem para trás, guiou o nobre até a borda da cratera. No centro, em meio à terra revirada, jazia o corpo de um jovem.
— Parece um corpo. — afirmou o capitão, sua voz desprovida de emoção.
— Não digas, imbecil! — O nobre ironizou, cobrindo o nariz com um lenço. — Desça lá e traga-o aqui.
Com um suspiro contido, Íxion obedeceu. Ele retornou carregando o corpo e o jogou no chão aos pés do nobre. Era um rapaz de cabelos brancos, sujos de sangue e terra, vestido com os restos de um quitón branco que mal cobria seu peito. Ele cuspiu um pouco de sangue, um sinal fraco de que ainda vivia.
— Isto vive? — o nobre perguntou, cutucando o corpo com a ponta de sua sandália como se fosse um animal.
— Devo matá-lo, Arconte? — perguntou Íxion, a mão já no cabo da espada.
O nobre se agachou, seus olhos gananciosos percorrendo o corpo quebrado. Foi então que ele viu. No peito do rapaz, gravada na pele como se por um ferro em brasa, havia uma marca. Um desenho perfeito e estranho, um caduceu. Seus olhos se arregalaram, não com reverência, mas com a cobiça de um colecionador que encontra uma peça rara.
— Não. — Ele respondeu com um sorriso. — Não serei tão insultuoso aos céus a ponto de recusar tamanha regalia. Faças o favor de jogar este… traste… em uma das carroças. Ele agora é minha propriedade.
Íxion ergueu uma sobrancelha, mas não questionou. Ele jogou o corpo inconsciente de Hermes sobre o ombro e começou a caminhar de volta para a caravana.
O condutor da primeira carroça o viu se aproximar.
— Quem é esse?
— Um ladrãozinho seguidor de Hermes, pelo jeito. O Lorde gostou da marca que ele tem. — Íxion respondeu sem se importar, jogando o corpo de Hermes na parte de trás de uma gaiola de madeira com outros escravos.
— Ladrão? Mas Hermes não é o deus dos mercadores ou algo assim? — perguntou o condutor.
Íxion parou por um instante e soltou uma risada áspera e desdenhosa.
— E tem alguma diferença entre eles?
Ele se virou e se afastou, deixando o condutor com suas reflexões. A caravana voltou a se mover, o ranger das rodas retomando sua canção monótona.