Gérion prendia seu chicote na cintura quando percebeu, enfim, que a luz que iluminava seu rosto já não vinha mais da tocha na porta da cela.
Ele olhou para a janela no teto da cela com seu sorriso amarelo de sempre e então se virou para trás.
Hermes estava jogado no chão em uma postura encolhida contra a parede. E agora, para além dos ferimentos da tarde anterior, tinha também em sua cabeça a marca da violência que sofrera.
Já não tinha mais suas lindas mechas de cabelo branco que iam até o pescoço.
Seu couro cabeludo estava marcado. Cortes, esfoliações, pancadas. Marcas de resistência.
Infelizmente para ele, resistir não foi suficiente.
Abaixo dele, um rio de sangue.
Alguns tufos de seu cabelo nadavam sobre as poças de seu sofrimento enquanto outros se misturam com a sujeira do chão da cela.
Ele não respondia.
Sentia-se sujo.
Tão sujo quanto o chão desta cela.
Não. Até mais.
Teve sua divindade violada, sua essência contaminada.
Como poderia ser ainda considerado um deus?
Gérion sorria amplamente atestando a submissão do rapaz.
A visão à sua frente o dizia que finalmente havia colocado o escravo em seu devido lugar.
— Levantem-no, e levem-no para baixo. — Disse a seus homens que estavam no portão da cela — Não o deixem descansar.
Os guardas entraram na cela ao passo que o gigante a deixou e correram para levantar o rapaz.
Hermes não resistiu e se levantou com o apoio dos homens.
Seu olhar vazio não transmitia a dor que estava sentindo, mas um turbilhão de tormenta se agitava por dentro.
“Isso é a humanidade?”, ele pensou, a amargura corroendo sua mente. “Toda a minha insolência, toda a minha rebeldia… foi por eles. Por defendê-los da paranoia de meu pai e…”
A imagem o atingiu, não como uma lembrança, mas como uma pontada no topo da cabeça. Os olhos amarelos de Apolo, arregalados em choque. O som doentio do Caduceu perfurando a carne de seu irmão. O silêncio que se seguiu.
“Não…”, a negação foi um grito silencioso em sua alma. “Não foi por eles. Foi por mim. Meu orgulho. Minha fúria cega.”
Ele sentiu o eco da violência de Gérion em seu corpo, a humilhação, a sensação de ser um objeto, e uma verdade terrível e venenosa se formou em sua mente. O monstro na cela o havia violado, o havia quebrado… exatamente como ele, em sua própria fúria, havia quebrado e apagado seu irmão.
“Este inferno…”, ele concluiu, o desespero o afogando. “Esta dor… é a minha punição. É o eco do meu próprio pecado.”
Suas pernas falharam e ele cambaleou, mesmo apoiado pelos braços em um dos guardas. Logo, outro guarda o segurou pelo outro braço, e eles o arrastaram para fora.
Eles desceram uma rampa circular e Hermes, no cúmulo de sua fraqueza, consegue enxergar algumas pessoas com vestes sujas e rasgadas, todas com picaretas e minerando algo dentro dos túneis que ficam ao lado da rampa em que está descendo.
Apesar de sua visão, tudo parecia fugir de seus sentidos, e tudo no que conseguia se concentrar era na dor que lhe fora infligida.
Chegando ao fundo do poço, os guardas finalmente o largaram.
O rapaz caiu de cara no chão, em meio à poeira e aos outros escravos que já haviam começado a trabalhar.
“É isso o que eu mereço pelo que fiz?”
Sua expressão vazia se concentrou no nada à sua frente, onde logo uma picareta caiu, levantando pó.
— Sem moleza aqui vagabundo. — Um dos guardas grasnou com os dentes cerrados e desprezo no olhar.
Hermes fixou-se na picareta com um olhar desesperançoso.
— Não quer trabalhar hum? — seu algoz caçava o chicote na cintura.
Ele ergueu o braço, mas antes de começar a punição, sentiu algo travar seu pulso. Virou-se, irritado.
— Meu senhor Lyco, permita-me ajudá-lo. — Era um homem barbudo de aparência madura, de torso descoberto e com uma tanga surrada.
A serenidade em sua voz e a audácia de interrompê-lo irritou Lyco, mas o homem ousou prosseguir.
— Não podemos perder mais mão de obra, meu senhor. — ponderou friamente — Contentaria ao mestre Gérion um servo recém adquirido e já inútil?
Lyco abriu a boca para retrucar, mas desistiu ao ser lembrado da figura de seu superior. Puxou seu braço com força, livrando-se do aperto, e guardou o chicote novamente em sua cintura, afagando o pulso com um rosto irritado.
— Leve este imundo daqui, e ponha-o para trabalhar o quanto antes! — Grasnou — Se o vir vadiando, apanharão os dois! — completou apontando acusadoramente o dedo no rosto do velho.
Ele não reagiu.
Lyco estalou a língua, e pôs-se noutra direção deixando os dois para trás, a procura de outras vítimas para castigar.
— Levanta-te jovem. — Disse o homem se agachando ao lado do rapaz
Hermes sentiu mãos apoiarem suas axilas e forçarem o seu levante.
O homem apanhou também a picareta jogada no chão.
Hermes sentiu sua consciência se vacilar. Seu corpo e mente estavam exaustos e massacrados.
Sua visão se escureceu, uma voz nova se aproximava na forma de uma silhueta borrada.
— Ele está bem?
…………..
Hermes abriu os olhos.
Para a sua surpresa, não estava mais no lugar de agora a pouco. As paredes de pedra, o ogro, nada.
Se viu numa floresta escura, fria e úmida.
Estava com suas roupas de sempre. Não aquelas sujas e surradas, mas sim as suas vestes divinas.
O caduceu estava preso à sua cintura.
As árvores à sua volta se serpenteavam entre si, criando e tapando caminhos um depois do outro.
Olhar em volta revelava um labirinto de árvores.
Olhou para o céu e viu nada além da noite.
As estrelas reluziam.
Apesar da tranquilidade e do silêncio, exceto pelos sons das cigarras, Hermes sentiu-se inquieto. Seu coração palpitava mais rápido do que o normal.
Resolveu andar, sair daquele lugar.
Tentou pular e voar, usando suas habilidades divinas. Falhou.
As asas em suas sandálias pareciam teimosas demais para tal.
Sentiu um incômodo incessante. Seu coração não destoava de sua mente na inquietação.
Olhou em volta mais uma vez, e viu a mesma coisa que antes.
Entretanto, atrás dele, as árvores pareciam se entrelaçar. Era como um aviso da natureza.
‘Sem volta.’
Decidiu caminhar pelo chão, e seguiu fazendo seu caminho entre as árvores em sua frente que ainda permitiam a sua passagem.
Após algum tempo nisso, percebeu que não chegava a lugar nenhum. Pelo contrário, as árvores à sua frente pareciam fechar seus caminhos cada vez mais.
Passou a ouvir dentro da floresta alguns sons estranhos.
Sussurros, sons animais.
Sentiu seu coração acelerar, sua mente trabalhava para tentar entender toda a cena que estava acontecendo.
De repente, sentiu uma pontada no peito. Levou a mão até lá, passando-a por baixo do vão de seu Quitón. Sentiu uma cicatriz naquele local. Uma marca em um formato estranho.
CLACK VUUSH
De repente, escutou às suas costas o barulho de um estalo monstruoso, seguido de algo cortando o ar.
Seu peito bateu mais rápido que nunca.
Virou-se assustado.
O medo o tomou.
Avistou um raio, partindo os céus, consumindo as estrelas que cruzavam o seu caminho, e o pior, vindo em sua direção.
Deu passos para trás, com uma expressão assustada, e ao mesmo tempo sem conseguir entender.
VUUUUUSH
Viu aquela flecha de luz e eletricidade romper o céu e tudo em seu caminho, o buscando.
Se virou e correu, com todas as suas forças, driblando seu caminho por entre as árvores.
Sentiu sua cabeça esquentar. Seu peito doer com a intensidade das batidas de seu coração que se aparentavam a socos.
Não conseguiu correr como sempre o fez. Sentiu que sua velocidade não estava lá, e toda vez que a buscava, sentia seu peito doer ainda mais.
A dor vinha da marca.
O barulho atrás dele só se intensificava e aproximava.
No alto de seu desespero ele tentou gritar. Clamar pela ajuda de seu pai.
Sua voz não saiu.

Sentiu então algo escorrer de seu peito. Viscoso.
Olhou para baixo e viu uma mancha negra em seu Quitón na altura do mamilo.
No meio de sua corrida, mais uma vez levou a mão ao local da marca. Estava molhada. Algo como ferro, mas mais sujo.
Sentiu suas forças que já não eram as mesmas vacilarem.
Sua corrida estava perdendo velocidade.
Puxou a mão do peito. Viu seu sangue, mas não era dourado como sempre. Estava negro. Grosso. Sujo.
Ofegante, teve que diminuir a corrida, e foi parando com o tempo, até parar por completo se apoiando numa árvore.
Diferente dele, a lança de raios apenas se tornava mais veloz
Fechou os olhos com a dor em seu peito que havia se tornado insuportável.
VUUUSH CLACK TLACK
Escutou, por fim, o som da floresta cedendo, abrindo espaço para a passagem de seu algoz.
Um clarão se revelou para ele, mesmo com os olhos fechados. Ele rangeu os dentes. A dor só piorou.
…………..