A madrugada pesava sobre a Quarta Fazenda como um lençol de chumbo. O ar, antes perfumado pelo orvalho e pelas plantações de Sheba, agora estava saturado por um cheiro doce e podre como fruta fermentada misturada a ferro oxidado.
Jonas caminhava devagar entre as fileiras de milho alto, lâmpada a óleo numa mão, o velho tridente de colheita na outra.
— Tem algo errado… muito errado.
Os grilos haviam parado. O vento não ousava soprar. Até as sombras pareciam tentar se encolher.
Mara, alguns passos atrás, segurava uma espingarda antiga com nervosismo.
— Jonas… você está ouvindo? — sussurrou ela, apertando o braço dele quando algo se mexeu adiante.
Jonas ergueu a lâmpada.
— Deve ser um boi desgarrado. — tentou convencer a si mesmo.
Mas seus pensamentos gritavam outra coisa:
Não tem boi nenhum. Nada se mexe assim.
O milho se abriu num estalo seco.
Algo saiu.
E não era animal.
Era Efraim, ou o que restara dele.
A pele estava rachada como casca de árvore seca e das fissuras, placas negras subiam como quitina. Os olhos… vazios, mas vibrantes, pulsando com um verde infeccioso.
— Efraim? — Mara engasgou. — Por Deus… ele… ele está vivo?
— Não. — Jonas respondeu, num fio amargo de voz. — Isso aí só está usando ele.
O cadáver avançou com o som de mandíbulas se esfregando. O exoesqueleto crescia em tempo real, rangendo como madeira dobrada.
Outros passos surgiram. Pesados. Irregulares.
— Jonas… acho que tem mais… — Mara murmurou, recuando.
— Fiquem onde estão. — disse uma terceira voz atrás deles.
Era o velho Isaac, vizinho deles, ofegante e carregando uma enxada enorme.
— Vocês também ouviram o alarme da Zona Norte? Eles disseram que… que os dois irmãos tinham morrido que nem vespas humanas…
Ele não completou.
Porque dez sombras emergiram de entre os milharais.
E todos tinham o mesmo exoesqueleto negro de inseto crescendo sobre o corpo morto.
A primeira investida foi tão rápida que Jonas mal viu.
Efraim ou a coisa que mascarava seu rosto disparou como uma flecha viva. Jonas ergueu o tridente por instinto. O som do impacto foi grotesco, como metal raspando a pedra.
— Recuem! — gritou ele. — Atrás da cerca!
Mara disparou com a espingarda, o tiro abriu um buraco no ombro da criatura, mas nenhum sangue escorreu. Apenas uma pasta escura, que borbulhava… e se recompunha.
— Eles não caem! — Mara choramingou.
— São controlados! — Isaac berrou, girando a enxada. — Essa é a praga de Belzebu! Eu já vi isso nos registros antigos! Eles são feitos pra durar!
Jonas sentiu o estômago virar.
Se era uma praga dos Filhos de Belzebu, então… aquilo não deveria existir dentro de Sheba. Não a menos que alguém tivesse trazido de fora, rompendo o pacto sagrado.
Traição interna… alguém corrompido no Império…
O mundo dele desmoronava.
E os cadáveres vinham correndo.
Jonas enfiou o tridente no peito do primeiro morto-vivo que saltou. A haste tremeu com o peso, e o corpo caiu, mas tentou se levantar como se fosse marionete de fios invisíveis.
— Pelo Império! — rosnou Jonas, pisando a cabeça do bicho antes que levantasse.
Mara acertou outro na perna, o que apenas o deixou mais rápido, como se quebrar o próprio osso o deixasse mais leve.
— Isso não faz sentido! — ela gritou, recarregando a munição. — Eles estão melhorando quando feridos!
Isaac girou a enxada na diagonal, rachando o crânio de um terceiro cadáver.
— Não estamos lutando contra gente. Estamos lutando contra… contra uma colmeia!
— Então corta as pernas! — Jonas ordenou, tentando manter firmeza.
Mas a verdade era que o pânico já arranhava sua garganta.
Eles não iam durar muito ali.
E então Jonas viu
Ao longe, no topo da colina, a torre de comunicação. Uma sombra solitária, silenciosa, mas ainda inteira.
— A torre… — ele sussurrou. — Se conseguirmos mandar um sinal… alguém de fora de Sheba vai ouvir. Alguém precisa saber que as pragas quebraram a barreira.
Mara entendeu na hora.
— Você quer alcançar a torre… no meio disso tudo?
— Quero sobreviver. — Jonas disse. — A única chance é avisar o Império antes de engolir toda Sheba.
Isaac rangeu os dentes.
— Então vamos. Antes que sejamos engolidos juntos.
Jonas respirou fundo e encarou os cadáveres avançando como uma maré viva.
Se alguém sabotou a comunicação… então isso não é um acidente.
Alguém fez isso de propósito.
Ele firmou o tridente.
— Corram. Agora!
E o trio disparou pela plantação enquanto dezenas de infectados os perseguiam, rangendo placas de quitina sob a luz fria da madrugada.
A torre de comunicação surgia entre a neblina como um dedo de ferro apontado para o céu. Não havia luzes nela. Nenhum zumbido. Nenhum sinal de vida.
— Pelo menos ainda está inteira… —pensou Jonas, ofegante. — Se alguém realmente sabotou tudo, que pelo menos não tenha destruído a torre…—
Mas atrás deles, entre o milharal, o som dos ossos secos e placas quitinosas se arrastando continuava aumentando.
Mara tropeçou ao subir a rampa de concreto.
— Rápido! Eles tão chegando perto demais! — ela arfou, segurando o peito.
Isaac, mesmo mais velho, passou direto por ela, empurrando a porta pesada de metal com ombros trêmulos.
— Jonas, ajuda aqui!
Jonas jogou o corpo contra a porta. Ela abriu com um rangido demorado, ecoando como se estivesse gritando para o mundo inteiro onde eles estavam.
Os três entraram. Jonas bateu a porta e a trancou com a barra interna, mas ele sabia que não ia durar muito. Não contra aqueles cadáveres.
— Precisamos barricá-la. — Jonas disse, já olhando em volta.
— Com o quê? — Mara retrucou, a voz vacilante. — Isso aqui é só uma sala velha de manutenção!
— Então usa tudo, cacete! — Isaac respondeu, sem paciência. — Ou vamos virar comida de inseto!
Começaram a puxar tudo que podiam: armários enferrujados, um banco quebrado, ferramentas, caixas com peças elétricas.
Jonas pegou até uma prateleira inteira e jogou contra a porta.
BAM.
Algo bateu do lado de fora.
Mara estremeceu.
— Eles já chegaram?!
— Claro que chegaram. — Isaac rosnou. — Não viu como correram? Fizeram parecer que têm mais articulações do que deviam ter.
BAM. BAM. BAM.
Agora os golpes vinham em ritmo.
Jonas pressionou a última caixa contra a pilha.
— Isso vai segurar por algum tempo… espero.
Mas sua mente soprava a verdade amarga
Minutos. Talvez nem isso.
Mara respirou fundo, tentando afastar o desespero.
— Eu vou subir. Se o transmissor ainda tiver alguma coisa funcionando, eu dou um jeito de mandar um pulso… nem que seja só um ruído, uma interferência… alguém lá fora pode captar.
— Vai. — disse Jonas. — Eu e Isaac nos seguramos aqui.
Isaac assentiu, mas seus olhos diziam outra coisa: pavor absoluto.
Mara correu para a escada helicoidal no canto da sala. Cada passo ecoava como se a torre fosse um sino gigante de metal.
Meio caminho para cima, ela olhou para baixo.
Jonas estava parado diante da barricada, tridente em mãos. Isaac ao lado, enxada erguida. Ambos iluminados apenas pela lâmpada de óleo tremulante no chão.
Ela quase chorou.
— Jonas… você… você acha que alguém vai ouvir?
Jonas não respondeu imediatamente.
Ele apertou a empunhadura do tridente como se fosse a última coisa real no mundo.
— Acho… que alguém precisa ouvir. — disse ele, finalmente. — Mesmo que não ouviçam a gente. Mesmo que seja tarde demais pra nós… alguém lá fora tem que saber o que tá vindo.
Mara engoliu seco e continuou subindo.
Assim que desapareceu no andar superior, Jonas olhou para Isaac.
— Segura firme.
Isaac bufou.
— Sou velho, mas não sou frouxo.
— Eu sei. — Jonas respondeu. — Mas… ouviu o jeito que eles se movem? Não parece… natural.
Isaac apertou a enxada, encarando a porta.
— Nada disso é natural. Isso é obra dos Filhos de Belzebu. Isso é uma praga de colmeia.
Ele engoliu seco.
— Jonas… se isso começou na Zona Norte… então Sheba já era.
Jonas queria discordar.
Queria gritar que o Império era forte demais.
Que os Eclesiásticos iam resolver tudo.
Que a Arca nos protegia.
Mas nada disso saiu.
Porque ele não acreditava em nenhuma das palavras.
Lá em cima, Mara alcançou o painel de comunicação. Poeira cobria tudo. Cabos arrancados. Fusíveis queimados. E o cristal de transmissão… rachado.
— Não… não, não, não! — ela chorou, mexendo freneticamente nos cabos. — Alguém fez isso de propósito! Tudo desligado, tudo cortado… isso é sabotagem!
Ela ouviu três pancadas secas lá de baixo.
Então um rugido de madeira quebrou.
— Jonas?! — gritou ela.
Lá embaixo, o mundo estava desabando.
— Isaac! Segura! — Jonas urrou.
— Tô segurando, mas esse desgraçado tá empurrando como se tivesse dez braços!
A porta afundou um pouco. A madeira rangeu. O metal entortou. A prateleira deslizou alguns centímetros.
E Jonas pensou, com uma clareza desagradável:
Eles não querem só entrar…
Eles querem impedir a torre.
Alguém está guiando eles até aqui.
A voz de Mara ecoou do alto.
— TÔ QUASE! SÓ MAIS UM CABO E EU CONSIGO FORÇAR UM PULSO MANUAL!
Jonas ergueu o tridente, respirou fundo…
E o próximo golpe contra a porta fez todo o prédio tremer.
A porta já não era mais uma porta.
Era uma parede tremendo, rangendo, deformada por braços mortos que batiam como martelos e garras de quitina arranhando como se fossem lâminas.
CRACK.
Um pedaço da madeira interna partiu.
Isaac recuou dois passos, o terror deformando seu rosto.
— Jonas… eles tão abrindo. Eles tão abrindo!
— Mantém a arma erguida! — Jonas respondeu, mesmo sabendo que estavam condenados. — Só precisamos de tempo! A Mara precisa de tempo!
Tempo…
A palavra parecia zombar dele.
Nada ali lhes daria tempo.
BAM.
A porta dobrou.
Uma fenda abriu.
Olhos verdes, sem alma, espreitaram por ela.
Jonas reagiu primeiro.
Enfiou o tridente pela abertura, empalando o rosto da criatura.
Ela nem sequer gritou. Apenas empurrou mais forte.
— Eles tão entrando mesmo morrendo! — Jonas rosnou, puxando a arma ensanguentada.
— Porque já estão mortos, seu idiota! — Isaac rebateu, esmagando o canto da porta com a enxada para tentar fechá-la. — Isso aí não é gente, é colmeia viva!
A fenda se alargou de novo.
Duas mãos negras tentaram passar.
E mais duas.
E mais quatro.
Uma onda.
— RECUA! — Jonas berrou.
A porta explodiu para dentro.
Cadáveres invadiram como uma enchente demoníaca, atropelando tudo. Placas de quitina batiam nas paredes. Mandíbulas cerradas estalavam no ar. Cada movimento era seco, rápido, impossível para um corpo humano.
Isaac foi o primeiro a ser alcançado.
— NÃO! — Jonas gritou.
Isaac balançou a enxada num arco largo, arrancando metade da cabeça de um dos infectados… mas três outros caíram sobre ele como animais famintos.
Um mordeu sua clavícula.
Outro enfiou garras no estômago.
O terceiro simplesmente o derrubou e começou a esmagar seu rosto contra o chão com força repetida, brutal, desumana.
— Aaaaah! JONAS! — Isaac urrou, até que o som virou gargarejo.
E então silêncio.
Jonas não teve tempo de lamentar.
Um cadáver se atirou nele, prendendo-o contra a parede. O exoesqueleto raspava em sua pele como lixas de metal.
Jonas empurrou o tridente no que seria o pescoço do monstro, rasgando os músculos reanimados, mas outro já vinha por trás.
— MARA! — ele gritou, com a voz falhando. — FAZ ESSA PORRA FUNCIONAR!
Lá em cima, Mara ouviu tudo.
Seu coração batia tão rápido que parecia querer fugir do corpo.
Suas mãos tremiam enquanto conectava os fios soltos do painel de transmissão improvisado.
— Vamos… vamos, por favor… — ela sussurrava, como uma oração desesperada.
— Só precisa mandar uma faísca. Qualquer coisa! Qualquer ruído! — A voz começou a falhar. — Alguém… alguém precisa saber…
Ela apertou o último cabo.
Um estalo percorreu o cristal rachado.
E a luz interna dele piscou pela primeira vez em meses.
— FUNCIONOU! — ela gritou, lágrimas descendo. — JONAS, FUNCIO—
THUD.
Algo bateu na porta do andar superior.
Ela travou.
Não podia abrir.
Não podia hesitar.
— Não… não agora… — Mara trancou a porta com a barra metálica. — Eu só preciso de mais alguns segundos… só isso… só alguns segundos…
Lá embaixo, Jonas lutava contra três criaturas.
Uma enganchou as garras na panturrilha dele, arrancando carne.
Jonas caiu de joelhos.
— MARA… VAI… — ele tentou gritar, cuspindo sangue. — AVISA… A… CAPITAL…
— ELES… ESTÃO… CONTROLANDO… TUDO…
Um cadáver agarrou seu rosto, enfiando dedos na boca e puxando até rasgar a mandíbula.
Jonas não teve tempo de gritar.
O tridente caiu no chão com um clang metálico.
Mara fez o transmissor zumbir.
Um ruído começou a se propagar pelo cristal rachado.
— Vamos… manda sinal… manda sinal… por favor… — ela repetia, sem perceber que estava chorando abertamente, o rosto inteiro molhado.
BOOM.
A porta começou a ceder.
Ela pulou para o painel e ativou o pulso manual.
O cristal explodiu em luz.
Um eco elétrico atravessou Sheba como um grito silencioso.
— SINAL EMITIDO! — Mara chorou. — POR FAVOR ALGUÉM, QUALQUER UM, OUÇA A GENTE!
CRACK.
A porta cedeu.
Cinco cadáveres entraram de uma vez, correndo em quatro patas como predadores.
As mandíbulas se abriram.
Os olhos verdes focaram nela com uma fome antinatural.
Mara recuou até colidir com o painel. E, mesmo assim, tentou falar.
— Sheba está comprometida… — ela engasgou. — É praga… praga da Ordem Hymenoptera… alguém sabotou tudo… não confiem em ninguém… repito… NÃO CONFIEM—
Os infectados caíram sobre ela.
Mandíbulas instalaram.
O som de ossos quebrando ecoou pela torre inteira.
O sangue espirrou no cristal ainda aceso.