A Basílica de São Pedro erguia-se no coração de Lumian como um gigante adormecido em forma de templo, metade fortaleza, metade aviso. As colunas de mármore branco subiam como ossos antigos em direção aos vitrais, e a luz colorida que escorria deles parecia viva, oscilante, carregando memórias que não pertenciam ao presente.
Sob aquele mosaico de sombras, as relíquias do Apóstolo Pedro permaneceram silenciosas…e vigilantes.Na sala selada onde os cardeais agora se reuniam, o ar era espesso de incenso, mas não o suficiente para mascarar o cheiro da inquietação humana. Não era apenas medo, era a sensação de que algo olhava de volta.
Quase todos estavam presentes. Quase.
O Papa e seus discípulos espalhados pelas províncias imperiais haviam desaparecido, suas conexões cortadas como cordas velhas de um teatro abandonado.
O cristal no centro da mesa ainda pulsava, ecoando os ecos da gravação recém-exibida da praga rastejando, campos devorados, o grito que morria antes de nascer.
— Isso não pode ser real… — murmurou o Cardeal Vittorio, apertando o crucifixo com dedos trêmulos. Fixava o cristal como quem espera que uma mentira se retrate. — Lumian? A própria Lumian?
Montfort respondeu sem erguer por completo o olhar. Seu dedo tamborilava, ritmado, como se marcasse uma contagem regressiva invisível.
— Real ou não… está diante de nós. A barreira nunca havia sido quebrada desde a fundação do Império. Se aconteceu agora… — ele engoliu a própria conclusão — …então alguém abriu o caminho por dentro.
A palavra proibida pairou entre todos.
Hereges, mesmo que ninguém ousase pronunciar a dita palavra.
Helena respirou fundo. Décadas sem roer as unhas, e ainda assim, agora seus dedos buscavam uma borda inexistente.
Se há um traidor à nossa mesa.. então nada neste lugar é seguro.
— As comunicações estão mortas — disse ela, com uma calma artificial. — Cristais destruídos. Espelhos de ligação estilhaçados. Mensageiros desaparecidos. Precisão absoluta. Isso não foi obra de monstros irracionais.
— Foi obra de alguém daqui… — completou Vittorio, sua voz quase um sussurro.
Silêncio. O tipo que não repousa o tipo que cerca.
No canto, o velho Cardeal Aelius fechou os olhos.
Nunca houve uma invasão. Nunca. A barreira era absoluta… até hoje.
Quando falou, sua voz era a de quem carregava peso demais havia tempo demais.
— Lumian sempre confiou na Inquisição, na Academia e em sua guarda interna. Não temos exércitos para confrontar uma infestação. Temos apenas… isto.
Montfort bufou.
— Três instituições e menos de quatro mil combatentes capazes. Se a praga avançar para as vilas, perderemos antes de entender o que nos atacou.
— E se houver um infiltrado — disse Helena — cada palavra dita aqui pode estar sendo observada… ou prevista.
Aelius encarou a mesa.
— Precisamos decidir… enquanto ainda podemos decidir. O que faremos, se o inimigo estiver sentado conosco?
Três cardeais desviaram o olhar.
Vittorio sentiu suor gelado escorrer pela coluna vertebral.
Foi Silas que era jovem demais, ousado demais quem rompeu o silêncio. Ele ergueu o queixo, uma confiança quase juvenil brilhando na superfície, ocultando algo mais fundo.
— Não acredito em um traidor entre nós — disse, cruzando os braços. — Seria conveniente demais. E mesmo que houvesse, todos sabemos o objetivo que é a Arca. Sabotá-la é perder tudo. Os Pecados só precisam de uma fresta.
Um murmúrio inquieto percorreu a mesa.
— E por que descartar a hipótese? — perguntou Aelius.
Silas sorriu com aquele sorriso que irrita, feito como uma lâmina polida.
— Porque somos o grupo menos exposto. Nenhum de nós esteve na fronteira. E isso acontece justamente quando o General Carlos Magno, o homem que enxerga ameaças antes que nasçam, está em campanha? Não. O vetor é externo. Alguém trouxe isso da barreira. Soldados, inquisidores ou clérigos destacados lá.
Ele se inclinou, olhos acesos.
— Se existe um portador inicial… veio de lá.
Aelius reconheceu, silenciosamente, que o jovem não estava errado.
— Sugere que investiguemos todos que voltaram das frentes?
— Sugiro — disse Silas — um ritual sagrado. Algo que exija presença. Quem estiver infectado… o corpo não vai aguentar. A Colmeia interna se expõe. Simples.
Ele respirou fundo.
E então soltou a frase que fez o sangue de alguns gelar
— Mas tenho outra proposta.
— Precisamos usar novamente… os Daemons.
Helena quase se levantou.
— Daemons?! Isso é heresia! Eles foram exilados desde Gênesis! E todos os rituais destruídos há eras!
Aelius pigarreou, a expressão sombria
— Nem todos.
— E além disso é crime! — insistiu Helena. — O plano inicial basta. Ou podemos apenas esperar comunicação com o Império. O Papa retornará com seus Anéis—
Aelius a interrompeu
— Se existe um herege, ele pode usar os cadáveres infectados para invocar um Visconde das Legiões. Ou pior… um Duque. Isso seria o fim do Império.
Silas acrescentou, num tom que parecia ensaiado demais
— Eles têm, no mínimo, cinco mil infectados. Talvez mais. Se Beltezar cair, os requisitos para o ritual se completam sozinhos.
— E nós temos 3.800 combatentes na melhor das hipóteses— completou Aelius. — Não vencermos essa guerra lutando no nosso mundo.
Silas respirou fundo, ele parecia alguém que já havia abraçado o próprio pecado.
— Nossa melhor chance está no Astral. Precisamos de um Daímon… e para isso, vamos precisar da Pedra da Alma.
Um silêncio denso caiu. Depois, Vittorio sussurrou:
— As Pedras Astrais… só temos três. E duas estão fragmentadas.
Aelius acenou, pesaroso.
— São relíquias pré-imperiais. Não podemos reproduzi-las. Nem a Academia sabe como surgiram. Viajar ao Mundo Astral é como entrar em um mar onde até os deuses naufragaram. Se a pedra falhar, a consciência se desfaz. Se o viajante se perder… torna-se alimento das entidades que ali habitam.
Montfort respirou devagar, como quem pesa palavras com a própria vida.
— E com duas pedras fraturadas… só uma pessoa pode ir com segurança.
— Uma só — confirmou Aelius. — Um único emissário, atravessando um reino que nem os Antigos ousavam nomear. Um mundo feito de memórias, mentiras e ecos de divindades mortas. Se ele cair… cairemos com ele.
Os cardeais se entreolharam.
Ninguém parecia desejar a responsabilidade.
Ninguém ousava se voluntariar.
Helena foi a primeira a admitir o óbvio.
— Precisamos decidir. Agora. Quem vai arriscar a alma… para caminhar em um lugar onde até a fé se desfaz?
Silas sorriu de novo não com arrogância, mas com algo ainda mais perigoso a convicção.
— Eu irei.
A sala congelou.
Aelius, lentamente, inclinou-se para frente.
— Tem certeza? Uma vez no Astral… você pode não voltar como você mesmo. Ou não voltar.
Silas o encarou, olhos firmes como pedras antigas.
— Se ninguém tentar… Lumian já está perdida.