Prólogo
Esta história está mais próxima de um dossiê sobre a anatomia do fim do que de um conto.
Porém, se fosse, de fato, um conto, não seria um conto de salvação.
Se fosse, seria um estudo sobre contos.
Um estudo de caso.
Ao contrário do que a arte insiste em dizer pra gente, não há grandes explosões nem sinfonias apoteóticas anunciando o colapso.
Há apenas o silvo de um pulmão enfraquecido e a pele amarelada da criança... A recusa lenta da terra em parir o que comemos.
No caso do nosso mundo, a queda veio devido à Grande Morte, às vezes chamada de "A Infecção".
A medicina clássica, desde Galeno, sempre nos ensinou que a doença é um desequilíbrio, como uma ruptura entre o corpo e sua harmonia funcional.
A patologia, segundo essa escola, seria "um relógio emperrado".
Mas surgiram espécimes tão peculiares...
Os zoólogos e estudiosos da época apelidaram de "bestas patológicas", embora mais tarde fossem ser apelidados de "flagelos".
Eles não atacavam somente o tecido. Os infectados esqueciam seus nomes, falavam com os mortos, gritavam com o céu, sorriam antes de morrer, e alguns queriam morrer muito antes disso.
A primeira geração dos contaminados foi negligentemente diagnosticada com uma neurodegeneração infecciosa, algo similar à encefalopatia espongiforme, doenças priônicas, como o "mal da vaca louca". Mas nenhum príon conhecido transformava corpos daquela maneira. Nenhuma encefalopatia causava cicatrizes em formatos geométricos, idênticos por todo o mundo. Nenhuma degeneração comum fazia com que suas vítimas pudessem sobreviver à decapitação.
Na ausência de explicação científica, veio a explicação teológica. E quando esta também falhou, veio a dura realidade de aceitar que o mundo morreu.
As cidades caíram, como previu qualquer epidemiologista com dois dedos de razão. O erro não foi na previsão. Achavam que haveria tempo. Que o inimigo se moveria como uma pandemia tradicional de vetores, incubação e contágio. Que o protocolo de quarentena bastaria, que os muros bastariam, que os soldados bastariam.
Mentiram para manter a ordem, e mentiram para os homens que seriam enviados a morrer, entretanto os primeiros a cair não foram os fracos.
Foram os confiantes.
Foi neles que a Infecção encarnou primeiro.
Nos líderes.
Nos heróis.
Nos generais.
Nos santos.
Porque todo herói é um vetor.
Um organismo exposto.
Um corpo público, carregado de fé e portanto, vulnerável.
Eles carregaram a esperança como uma vacina.
Eles são a cura para o mal.
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Capítulo 1
O Sol não nascia mais com o mesmo fervor há algum tempo.
Era um disco opaco, afogado por camadas de poeira e fumaça, que tingia o mundo de tons ocres e castanhos.
Havia dias em que mal se podia distinguir o céu da terra, ambos fundidos numa névoa amarelada que ardia nos olhos.
A terra não cheirava a barro. O aroma que antes anunciava a chuva e prometia colheitas havia sido substituído por um fedor persistente de estopa queimada.
A brisa, outrora fresca e portadora do orvalho matinal que beijava as folhas e refrescava as faces suadas agora vinha pesada, carregada com o peso invisível de milhares de cadáveres.
Um jovem estava ajoelhado num campo de trigos mortos.
Os joelhos do jovem afundavam no solo quebradiço, que rachava em veios desidratados como a pele de um leproso.
Cada movimento produzia um som seco e desagradável, como ossos se partindo sob a pressão.
Uma enxada jazia ao seu lado, abandonada, sem vida, com o cabo partido ao meio (provavelmente quebrado quando utilizada para cavar além da camada superficial de terra), e a lâmina enferrujada, coberta por uma pátina esverdeada que parecia crescer igual musgo.
Na frente dele estava um único trigo teimoso, pálido e retorcido parecendo um dedo cadavérico. A planta tinha uns quinze centímetros de altura, suas folhas eram finas como papel de arroz e tinham uma coloração amarelada. O caule era torto, como se tivesse crescido as pressas.
O jovem coçou o queixo pensativamente.
Os dedos rugosos demais para alguém da sua idade passaram por uma barba grisalha.
Era mais uma penugem áspera do que barba propriamente dita.
Os olhos, fundos como covas abertas recentemente, observavam a planta silenciosa e religiosamente.
Tinha ali, diante de si, um trigo morto, ou quase morto, que representava genericamente esforço sincero.
Uma única planta patética que provavelmente morreria antes da próxima lua minguante.
O jovem se chama Gaspar Belmont.
Era um rapaz de estatura média, talvez um metro e setenta centímetros (1,70cm), embora parecesse menor devido à postura constantemente encurvada pela lida incessante.
Um jovem de dezessete anos, mas aparentava facilmente ter uns vinte.
O rosto era coberto de manchas solares e pequenas cicatrizes: uma no supercílio esquerdo, outra no queixo e várias menores espalhadas pelas bochechas e testa, semelhantes à marcas de varíola.
Ele tinha pele clara, embora agora estivesse bronzeada e ressecada pelo trabalho ao ar livre, e uma expressão permanentemente abatida, com olhos profundos cor de âmbar, que transmitiam um cansaço existencial.
Seu cabelo tinha tons predominantemente brancos, grosso e um pouco ondulado, mas com algumas manchas vermelhas na parte superior, especialmente no fim da testa, que lhe davam uma aparência combalida.
Usava uma camisa de algodão desbotada, originalmente branca ou talvez bege-claro, mas agora de um cinza-amarelado indefinível, com terra nas axilas e no peito. As mangas estavam arregaçadas até os cotovelos.
A calça de linho grosso, pelo menos dois números maior que o necessário, estava presa precariosamente por uma corda amarrada em múltiplos nós ao redor da cintura.
O campo ao redor dele poderia até ser chamado de uma "terra abandonada" ou um "cemitério agrícola".
Troncos ocos de árvores que forneciam sombra aos trabalhadores nas tardes quentes agora eram apenas esqueletos enegrecidos, caules queimados por algum fogo invisível que consumia de dentro para fora. Raízes expostas emergiam do solo, retorcidas. Havia crateras rasas onde antes cresciam canteiros inteiros de vegetais, batatas, cenouras e nabos, mas agora não havia nada dentro delas.
As aves não cantavam ali.
Os corvos haviam migrado para outras terras ou morrido de fome.
As cotovias, rouxinóis, pardais, todos haviam partido ou fora silenciados.
Os grilos, as cigarras que antes criavam uma sinfonia ensurdecedora nas noites de verão, até as formigas, essas criaturas persistentes que sobreviviam a quase tudo, pareciam ter desistido de marchar sob aquela terra.
O silêncio era opressivo, pesado e impetuoso.
Era o tipo de silêncio que pressionava os tímpanos e fazia o coração bater mais rápido.
O jovem estava na área rural da cidade de Thorne, no Reino de Vietta, um dos nove Grandes Reinos do continente de Hermes.
Vietta era conhecido por seus campos dourados que se estendiam até onde a vista alcançava, ondulando ao vento como um mar de ouro, e por suas florestas frondosas ao norte onde carvalhos centenários cresciam tão próximos que suas copas formavam um teto verde-escuro que bloqueava quase toda a luz do sol. Localizado na porção sudoeste de Hermes, Vietta era um dos reinos mais antigos ainda de pé, com uma linhagem real que traçava sua ascendência até os Reis do Primeiro Ciclo, mais de mil e duzentos anos atrás.
O reino era sustentado por uma política agrária rígida e minuciosamente organizada. Cada lote de terra era registrado e cada colheita era contabilizada. O brasão de Vietta, um feixe dourado de trigo maduro entrelaçado por duas foices cruzadas sobre um campo verde, decoravam cada marco de estrada de pedra que levava às vilas e cidades, cada porta de celeiro nas fazendas reais, cada estandarte que tremulava nas torres de vigilância ao longo das fronteiras.
No entanto, esses emblemas agora eram zombarias. O trigo dourado estava morto, as foices enferrujadas, e o campo verde havia se transformado em cinza e marrom.
O continente de Hermes era vasto e geograficamente segmentado.
Segundo as Crônicas de Maldren, escritas em Alto Hermesiano, acreditava-se que, em tempos imemoriais, cerca de três mil anos atrás, o continente teve um único trono e um só nome, governado pela dinastia Arlitt, que teria durado quase mil anos. Mas aquele império foi dilacerado pela Grande Morte, ou pelo menos pela primeira manifestação dela, pois os estudiosos debatiam se o evento catastrófico que ocorrera havia quinze anos era a primeira ocorrência ou apenas a mais recente numa série cíclica. A maioria das pessoas comuns não se importava com essas distinções acadêmicas. Para elas, a Grande Morte era a Grande Morte, e o fato de ter acontecido antes ou não era irrelevante diante da perda de milhões de vidas.
O colapso do império transformou Hermes numa terra de ninguém durante séculos, um período que os historiadores chamavam de Era Cinza, quando facções guerreavam constantemente, fronteiras mudavam, e a civilização regrediu a um estado tribal.
Desde então, após séculos de consolidação lenta e dolorosa, os Nove Grandes Reinos de Hermes se espalharam sobre o mapa, cada um reivindicando legitimidade como herdeiro verdadeiro do Império.
Esses reinos eram:
Vietta, no sudoeste.
Glavinte, no noroeste, famoso por suas montanhas ricas em minério de ferro e prata, e por seus ferreiros que produziam as melhores armas e armaduras do continente.
Merica, no centro-sul, um reino mercantil onde as guildas comerciais tinham mais poder que a própria nobreza.
Lurien, no nordeste, uma teocracia governada pela Igreja da Luz Perpétua, cujos templos de mármore branco podiam ser vistos de léguas de distância.
Khard, no extremo norte, uma terra gelada habitada por clãs guerreiros que viviam em fortalezas cavadas no gelo e sobreviviam caçando leviatãs marinhos.
Asterre, no leste, um reino de planícies abertas e cavaleiros nômades que seguiam as manadas de bisontes selvagens e viviam em tendas de couro.
Therissa, uma península ao sul, cercada por três lados pelo Mar Escarlate, famosa por seus navegadores e pela Frota Carmesim.
Orthun, uma confederação de cidades-estado ao redor do Lago Central, que viviam em constante tensão entre aliança e rivalidade.
E Niisi, no sudeste, um reino misterioso coberto por pântanos venenosos e florestas de mangue, onde se dizia que bruxas praticavam feitiçaria.
Thorne, por sua vez, era apenas uma cidade média num vale pouco fértil mesmo nos melhores tempos, localizada a leste de Grenholme, a capital real de Vietta.
A cidade era mais uma vila grande, e ficava à margem sul do Rio Haffer, um rio largo mas raso, com águas tradicionalmente claras que hidratavam as planícies de Grenholme.
O rio nascia nas montanhas ao norte, serpenteava por trezentos quilômetros através de Vietta central, e finalmente desaguava no Mar Escarlate.
Mas o Haffer também estava morrendo.
Seu leito tinha baixado quase dois metros nos últimos cinco anos. As pedras do fundo agora ficavam expostas. As carpas e trutas e bagres haviam desaparecido quase completamente. E a água tinha uma coloração esverdeada e um gosto amargo.
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Dia 15 de setembro de 1611, 11:26
Vilarejo de Thorne do Reino de Vietta, Hermes.
Gaspar esticou os braços acima de sua cabeça, entrelaçando os dedos e empurrando as palmas para cima até sentir os ombros estalarem. A tensão que se acumulou em seus músculos após horas agachado no campo se liberou parcialmente, e ele gemeu de alívio. Suas costas protestaram numa dor aguda na região lombar que vinha piorando nas últimas semanas, provavelmente consequência de dormir no chão duro da cabana, pois o colchão de palha havia apodrecido completamente e ele não tinha recursos para substituí-lo.
Ele olhou para o céu através de pálpebras semicerradas.
Devia ser meio da tarde, a julgar pela posição, embora fosse impossível ter certeza absoluta.
O tempo parecia se mover de forma estranha ultimamente. Alguns dias duravam uma eternidade, enquanto outros passavam num piscar de olhos.
Em sua visão periférica, desfocada pelas lágrimas que o vento seco provocava, Gaspar via um moinho.
O moinho de vento dos Belmont é uma estrutura de madeira que, com suas pás gigantescas girando majestosamente ao vento, produzia a farinha que alimentava a família.
Os Belmont eram uma família antiga, estabelecida ali havia pelo menos quatro gerações.
O velho Willem Belmont, bisavô de Gaspar, morreu por conta da Infecção, assim como sua esposa Greta e três de seus cinco filhos. Os dois sobreviventes haviam partido para Grenholme dois anos atrás, buscando trabalho nas manufaturas da capital, abrindo mão da manutenção do moinho.
Ele permanecia imóvel agora, contra o horizonte morto. Com as pás partidas: três das quatro haviam sido arrancadas completamente durante uma tempestade e a quarta pendia num ângulo de 120º, presa por apenas alguns pregos. O eixo central estava coberto de ferrugem alaranjada que escorria pela madeira. Pássaros costumavam fazer ninhos nas vigas superiores, mas, como foi dito, eles haviam abandonado o lugar.
Mais adiante, cercas tortas de madeira delineavam o que antes foi uma plantação de girassóis, agora apenas um retângulo de solo calcinado.
Gaspar inspirou fundo, enchendo os pulmões com o ar, sentindo-o arranhar sua traqueia.
Se levantou lentamente, com os joelhos dormentes. Ele virou o rosto um pouco para a esquerda, protegendo os olhos com uma mão espalmada, foi quando viu uma figura se aproximando.
"Gaspar! Gaspar!" A figura estava acenando vigorosamente com ambos os braços acima da cabeça, pulando ocasionalmente para ser notada.
Gaspar esfregou os olhos com nós dos dedos, tentando dissipar a névoa que o turvava. Camadas de poeira haviam se acumulado em suas pálpebras, e seus olhos ardiam constantemente.
A mulher que se aproximava, correndo desajeitadamente pelo campo irregular, era Magda, sua irmã mais nova.
Ela tinha quinze anos, dois anos a menos que Gaspar. Embora às vezes parecesse uma criança e outras vezes uma mulher madura demais para sua idade.
Seus passos eram rápidos mas descoordenados, tropeçando ocasionalmente nos torrões rachados do solo e nos talos mortos de plantas antigas.
Seu vestido de linho azul claro, que foi um presente do pai deles anos atrás, estava agora completamente desbotado para um cinza-azulado indefinível. Mas estava limpo, ou tão limpo quanto possível considerando que tinham que lavar roupa no riacho com água salobra.
Magda se esforçava para manter certa dignidade.
Os cabelos castanhos de Magda, com reflexos avermelhados quando a luz os pegava em certo ângulo, herdados da mãe deles, que tinha sido uma beleza local na juventude, estavam presos em uma trança desleixada que pendia sobre o ombro direito, balançando com seu movimento. Fios soltos escapavam da trança e flutuavam ao redor de seu rosto fino.
Seu rosto, embora marcado pela fadiga constante, com olheiras roxas permanentes sob os olhos e a pele esticada sobre as maçãs do rosto de forma pouco saudável, iluminou-se ao vê-lo.
"Gaspar! Oh, finalmente te encontrei!"
Ela parou na frente dele, ofegante, colocando uma mão no joelho para se apoiar enquanto recuperava o fôlego. Seu peito subia e descia rapidamente sob o vestido. Depois de alguns segundos, estendeu as mãos de dedos finos e calejados e agarrou o antebraço de Gaspar com força surpreendente.
"Você precisa vir agora. É o Renne! Ele voltou! Ele está aqui!"
Gaspar sentiu o coração bater mais forte, acelerando de maneira abrupta que fez seu peito apertar. Renne. Seu primo, filho do irmão mais novo do pai deles, Markus, que também morrera na Grande Morte.
Renne, seu irmão de brincadeiras quando eram crianças, quando o mundo ainda fazia sentido e o futuro parecia brilhante.
Renne, o único que o protegia quando criança...
Ele havia partido três anos atrás para se juntar ao exército de Oficiais da Ninfa, uma organização renomada que combatia os Flagelos, e que desde então impossibilitava Renne de visitá-los, fazendo ele se comunicar através de cartas esporádicas.
Renne finalmente arrumou tempo para visitá-los?
"Ele... ele está bem? Está ferido?" As palavras saíram atropeladas da boca de Gaspar.
"Está inteiro, sem ferimentos visíveis, graças a Deus," Magda respondeu, começando a puxá-lo pelo braço. "Mas você precisa vir agora, ele disse que não pode ficar muito tempo, tem que voltar para Grenholme antes do anoitecer."
Gaspar abandonou a enxada ali mesmo, cravada no solo rachado num ângulo de 45º e seguiu Magda com passos apressados.
A cabana à distância estava a pouco mais de duzentos metros do campo. Era visível como uma mancha marrom, com suas paredes de madeira inclinadas precariamente e telhado de palha remendado.
"Venha, Magda!" Ele olhou para trás e gritou, apressando-a, embora fosse ela quem o guiava. Sua voz saiu rouca.
Ambos partiram em direção à cabana de madeira, praticamente correndo agora.
Algumas hortaliças estavam plantadas ao redor da casa num pequeno terreno cercado por pedras que demonstrava algumas tentativas de cultivar alface, rabanetes e cebolas.
Gaspar conseguia ver detalhes agora.
Ao empurrar a porta rangente, o som ecoou na tarde silenciosa como um grito e um cheiro de pão de cevada invadiu seus sentidos.
E então, ele o viu.
Renne estava de pé, perto da lareira fria, uma abertura de pedra que não tinha fogo aceso porque não podiam desperdiçar lenha, seu contorno iluminado pelo último raio de sol que entrava pela janela estreita e lançava uma barra de luz dourada sobre o chão de terra batida.
Ele era mais alto do que Gaspar lembrava, consideravelmente mais alto, talvez um metro e oitenta, o que o tornava um gigante pelos padrões locais. Os ombros eram largos sob o manto surrado da Ninfa, o manto verde-escuro característico da organização, com detalhes em alto-relevo dourados.
O manto tinha um capuz profundo que estava jogado para trás naquele momento, revelando seu rosto. Presos ao manto por alfinetes de bronze estava o broche oficial da Ninfa que Gaspar logo notaria melhor.
Seus cabelos escuros, negro azulados, do tipo que refletia a luz de maneira quase iridescente, agora estavam mais longos do que quando partira, caindo até abaixo dos ombros, amarrados atrás da cabeça com um cordão simples de couro trançado. Alguns fios soltos haviam escapado e caíam sobre o rosto, emoldurando suas feições angulares.
Mas quando Renne se virou completamente, Gaspar viu que o sorriso era o mesmo sorriso torto de sempre, "estou feliz de te ver mas vou fazer de tudo para não demonstrar muito", era o que o sorriso queria dizer.
"Ga-san..." A voz de Renne era mais profunda do que Gaspar lembrava.
Ga-san era o apelido de infância de Gaspar. Ninguém mais o chamava assim desde que Renne partiu.
Gaspar não conseguiu conter-se. Todas as regras não escritas de masculinidade estóica que governavam interações entre homens naquela região, o aperto de mão firme e o tapa nas costas foram para o inferno.
Em três passos largos que cobriram a distância minúscula da cabana, ele fechou o espaço entre eles e jogou os braços em volta do primo, enterrando o rosto no seu ombro.
O manto cheirava à poeira. Havia também uma aroma amargo que deviam ser remédios de campo obrigatórios prescritos pela organização.
Renne riu, um som rouco e quente que reverberou em seu peito, e apertou Gaspar com força surpreendente. Seus braços eram muito mais musculosos do que antes. Uma mão enluvada, bateu levemente em suas costas três vezes.
"E eu que pensei que você tinha virado um daqueles espantalhos," Renne disse, suavizando as palavras. "Você está mais magro, Ga-san. Muito mais magro. Estão comendo?"
Gaspar soltou um riso abafado contra o manto dele, parte alívio e parte histeria contida.
"..."
Magda observava os dois do outro lado da cabana, perto da mesa tosca onde comiam suas refeições esparsas, os olhos úmidos com lágrimas que ameaçavam transbordar a qualquer momento.
"Renne trouxe farinha e mel," ela disse com voz trêmula, como se fosse anunciar um milagre divino. "De verdade. Farinha branca de trigo, não aquela farinha de cevada amarga que a gente vinha comendo. E mel de abelhas verdadeiras, não aquele xarope horrível!"
Renne afastou-se o suficiente para segurar Gaspar pelos ombros com ambas as mãos, mantendo-o a distância de um braço para que pudesse examinar seu rosto adequadamente. Seus olhos verdes, verde claro como jade polido, uma característica distintiva da linhagem materna da família, estavam sérios agora, vasculhando cada detalhe das feições de Gaspar com a atenção de um médico examinando um paciente doente.
"Está tudo bem, Gaspar?"
Gaspar hesitou. Nada estava bem. Absolutamente nada estava bem. O sol estava morrendo, a terra estava doente, e ele sonhava com água limpa todas as noites. Sonhava que estava se afogando em água cristalina, tão limpa que podia ver o fundo, tão fria que o fazia tremer, e quando acordava sua garganta estava tão seca que mal conseguia engolir. Mas não queria preocupar Renne. Ele já tinha problemas suficientes, provavelmente via horrores toda semana que Gaspar nem podia imaginar. Não ia adicionar sua miséria à dele.
"Estamos bem, na medida do possível," murmurou Gaspar, sentindo seus dedos contraindo involuntariamente no manto de Renne.
A Ninfa.
A Ninfa é uma organização interessante, fascinante até, que sempre era mencionada nas histórias que Renne contava em suas cartas.
Nascida dos escombros da Grande Morte, a Ninfa era uma das instituições mais organizadas e estruturadas que surgiram após o surgimento da IInfecção.
Diferente das ordens militares que brotaram, a Ninfa foi construída com disciplina, criando uma força eficiente no combate aos Flagelos.
No topo da hierarquia estavam os cinco Diretores, figuras cujas identidades eram conhecidas apenas pelos escalões mais altos da organização. Renne mencionou em uma de suas cartas que nunca viu nenhum dos Diretores pessoalmente, e que apenas recebeu ordens filtradas através de múltiplas camadas de comando. Dizia-se que cada Diretor governava sobre uma região específica do continente de Hermes, coordenando operações em múltiplos reinos simultaneamente, e que suas reuniões aconteciam em locais secretos.
Abaixo dos Diretores estavam os Oficiais, a espinha dorsal operacional da Ninfa. Eles são enviados regularmente à missões de combate aos Flagelos.
E então havia o resto, a vasta infraestrutura que mantinha a Ninfa funcionando. Recepcionistas que catalogavam novas espécies de Flagelos. Zeladores que limpavam os quartéis e mantinham as instalações funcionais. Cozinheiros que preparavam as refeições diárias garantidas a cada membro. Ferreiros que forjavam armas especializadas. Alquimistas que produziam os óleos, unguentos e pós necessários para combater doenças. Escribas que arquivavam os manuais de treinamento. Mensageiros que corriam entre as diversas instalações da Ninfa espalhadas pelo continente. A lista é extensa.
Gaspar observou o broche que Renne utilizava em sua veste, preso ao manto com um alfinete de bronze. Era um objeto belamente trabalhado apesar do desgaste, um feixe de trigo dourado, três talos perfeitamente proporcionados com suas espigas maduras, entrelaçado com uma adaga de prata cuja lâmina apontava para baixo em posição de repouso, e atravessado diagonalmente por um cajado alado representando Hermes, o deus antigo que deu nome ao continente e que, segundo as lendas, guiava as almas dos mortos para o além. O metal tinha uma coloração esverdeada nas áreas mais fundas do relevo, sugerindo bronze de boa qualidade e uso constante. Cada membro da Ninfa recebia um ao ingressar oficialmente na organização, fosse como Oficial ou como funcionário. O broche de Renne, no entanto, tinha uma diferença sutil que Gaspar só notou ao olhar mais atentamente: uma pequena estrela de cinco pontas gravada no centro do feixe de trigo, fazendo dele um Oficial Portador.
O vento uivou mais forte lá fora, fazendo a porta da cabana tremer em seus gonzos fracos.
Um assobio agudo penetrou pelas frestas nas paredes, e havia muitas frestas, rachaduras no revestimento de barro entre as tábuas de madeira que deixavam passar não apenas som mas também vento frio e chuva ocasional.
Renne estudou o rosto de Gaspar com aqueles olhos verdes penetrantes.
"Só sobreviver não basta, Ga-san..." Renne disse baixinho, apenas alto o suficiente para Gaspar ouvir por cima do vento lá fora. "Eu já lhe disse isso antes de partir, e continua sendo verdade..."
"Fácil dizer quando você tem três refeições por dia", Gaspar pensou. Fácil falar sobre viver quando você não passa as noites se perguntando se vai acordar no dia seguinte. Mas não é justo pensar assim. Renne arrisca a vida todo dia.
Ele merece o que tem.
Ele realmente merece.
"Você trouxe notícias de Grenholme?" Gaspar perguntou, mudando de assunto antes que a conversa pudesse se aprofundar em territórios desconfortáveis. Afastou-se um passo, dando espaço a Renne, e gesticulou vagamente em direção à mesa tosca no centro da cabana. "Sente. Por favor. Você deve estar exausto da viagem."
Renne trocou um olhar rápido com Magda antes de responder, um daqueles olhares carregados de significado que fazem perguntas silenciosas e recebem respostas igualmente silenciosas.
Então assentiu e caminhou até a mesa, puxando uma das cadeiras e sentando-se com um suspiro longo que falava de cansaço profundo.
"A situação em Grenholme está tensa," ele começou, desabotoando o colarinho da túnica para respirar melhor. Seus dedos trabalhavam nos botões com prática automática. "A Rainha está enviando emissários para todas as vilas e cidades do reino, convocando homens aptos para treinamento, e tal..."
Ele tirou o cinto de couro largo com múltiplas bolsas e compartimentos, junto com a bainha vazia da espada, e o pendurou no gancho de ferro atrás da porta.
O movimento foi casual mas revelador, era claramente um hábito desenvolvido em quartéis militares onde armas eram sempre mantidas acessíveis mas não necessariamente à mão durante refeições ou descanso.
"A Ninfa precisa de mais recrutas. Muitos mais. Os números estão diminuindo mais rápido do que conseguimos treinar substitutos."
"Recrutas?" Sua voz saiu mais alta e mais aguda do que pretendia, quebrando um pouco na última sílaba. "Quer dizer... estão aceitando voluntários ou é recrutamento forçado? Como funciona? Eles vão de porta em porta arrancando homens de suas casas?"
"Voluntários, tecnicamente," Renne respondeu, os dedos tamborilando na mesa lascada num ritmo irregular que traía nervosismo, um tique que Gaspar não se lembrava dele ter antes. "Mas há alguns incentivos substanciais. Três refeições diárias garantidas, e não estou falando de mingau, mas comida de verdade, tipo, carne pelo menos três vezes por semana, vegetais, frutas... Alojamento em quartéis aquecidos com lareiras funcionais e colchões de verdade. Pagamento mensal de quinze moedas de prata. E isenção completa de impostos para a família do recruta por cinco anos, incluindo impostos sobre terra, colheita, e até o imposto de residência..."
Gaspar assoviou baixinho entre os dentes, um som agudo e prolongado.
Quinze moedas de prata por mês era mais do que a maioria dos camponeses via num ano inteiro de trabalho árduo. Uma única moeda de prata podia comprar um saco de farinha de trigo de boa qualidade, ou três galinhas vivas, ou uma semana inteira de refeições decentes numa taverna modesta. Quinze moedas eram uma fortuna para pessoas como Gaspar e Magda.
A isenção de impostos valia mais que o próprio pagamento.
Os impostos em Vietta eram brutais, especialmente nos últimos anos quando as colheitas falharam e a Coroa aumentou as taxas para compensar a perda de receita. O imposto sobre terra podia chegar a 40% do valor produzido, e para terras que não produziam nada, como a deles, ainda havia uma taxa fixa baseada na metragem. Alguns anos sem pagar impostos significava a diferença entre sobrevivência lenta e talvez uma chance de reconstruir algo.
"Então não é exatamente 'voluntário' quando as pessoas não têm uma escolha," Gaspar murmurou, sentando-se na cadeira oposta a Renne.
A madeira rangeu sob seu peso, mesmo que ele estivesse mais magro do que nunca.
"Não," Renne concordou com um aceno sombrio de cabeça, seus olhos verdes escurecendo com algo que parecia culpa ou talvez remorso. "Não é voluntário de verdade. É uma coerção econômica disfarçada de oportunidade. Mas..." ele fez uma pausa, escolhendo as próximas palavras com cuidado, "as alternativas são piores. Muito piores..."
"Se não conseguirmos manter os números da Ninfa estáveis, se não tivermos Oficiais suficientes para patrulhar e conter os Flagelos, então não haverá vilas para proteger de qualquer forma. Não haverá famílias para isentar de impostos porque todos estarão mortos ou transformados."
Magda recuperou a colher do chão e a limpou na saia antes de voltar ao que estava fazendo. Ela se moveu até o pequeno fogão de pedra no canto, onde uma chaleira de ferro velho estava posicionada sobre brasas mornas que ela devia ter preparado antes de sair correndo para buscar Gaspar. Ela encheu a chaleira com água de um balde de madeira perto da parede, água que haviam buscado no riacho naquela manhã e fervido anteriormente para matar qualquer contaminação. A água tinha uma coloração levemente turva mesmo depois de fervida, mas era o melhor que tinham.
"Alguns já estão vagando pelas estradas," Renne continuou, sua voz baixando para quase um sussurro, como se falar alto demais pudesse invocar os próprios horrores que descrevia. Ele se inclinou para frente, apoiando os cotovelos na mesa e entrelaçando os dedos. "Flagelos. Não muitos ainda, não em números que possamos chamar de invasão ou epidemia, mas o suficiente para preocupar os Diretores. O suficiente para que ordens urgentes tenham sido emitidas."
Ele fez uma pausa, seus olhos se fixando em algum ponto distante além das paredes da cabana, como se estivesse vendo algo que só ele podia ver, alguma memória horrível reproduzindo-se atrás de seus olhos.
"Um batalhão inteiro da Guarda Real foi mobilizado duas semanas atrás e conseguiu conter um avanço perto de Bergarosa." Ele engoliu em seco, a maçã de Adão subindo e descendo visivelmente em sua garganta. "Você conhece Bergarosa, uma cidade comercial a oeste daqui, no cruzamento das três estradas principais que levam a Grenholme, Merica e Therissa?"
Gaspar assentiu lentamente.
Ele esteve lá uma vez, quando criança, com o pai. Era uma das melhores lembranças que tinha, anterior à Grande Morte, quando o mundo ainda vivia.
Lembrava-se de ruas pavimentadas com pedras lisas de rio, mal se sentia a junção entre elas ao caminhar.
Lojas com vitrines de vidro verdadeiro. O cheiro onipresente de pão fresco e carne assada vindo de uma dúzia de padarias e tavernas diferentes.
Mercadores gritando seus preços, crianças correndo entre as barracas, músicos tocando nas esquinas...
"Eles conseguiram expurgar os Flagelos completamente, todos que conseguiram encontrar, queimaram os corpos até virarem cinzas e depois queimaram as cinzas novamente só para garantir, mas..." O queixo de Renne tremulou quase imperceptivelmente, um micro movimento que provavelmente seria invisível para alguém que não o conhecesse tão bem. "Não foi sem custo... Perdemos dezessete soldados da Guarda Real, equipados com as melhores armaduras que se pode forjar. E perdemos três Oficiais da Ninfa..."
Gaspar sentiu um frio percorrer sua espinha, uma sensação desagradável como água gelada escorrendo pela coluna vertebral, espalhando-se para seus membros e fazendo os pelos de seus braços se eriçarem. Três Portadores. Três pessoas que carregavam Pragas dentro de si, que tinham sobrevivido ao processo brutal de inoculação, que eram treinadas especificamente para combater Flagelos usando seus próprios poderes contaminados.
Se três Portadores tinham morrido em um único confronto...
"Quantos Flagelos eram?" Gaspar perguntou, sua voz saindo mais rouca do que pretendia. Ele limpou a garganta e repetiu: "Quantos Flagelos havia em Bergarosa?"
"Trinta e dois que conseguimos contar, mas sei lá...," Renne hesitou, aceitando a xícara de chá que Magda lhe ofereceu com um aceno silencioso de agradecimento. Ele segurou a xícara com ambas as mãos, deixando o vapor subir e aquecer seu rosto. "Provavelmente havia mais. Sempre há mais do que conseguimos ver inicialmente. Eles se escondem. Ou pelo menos parecem se multiplicar, ninguém está completamente certo de como funciona exatamente." Renne cerrou os punhos e sua perna direita começou a tremular contra o chão.
Ele bebeu um gole cauteloso do chá quente, testando a temperatura antes de beber mais profundamente.
"Os estudiosos da Ninfa, alquimistas e médicos que estudam a natureza dos Flagelos, ainda estão debatendo a mecânica exata. Algumas teorias sugerem reprodução assexuada, como bactérias. Eles falam também de transmissão parasitária, onde um Flagelo pode infectar múltiplos hospedeiros simultaneamente através de fluidos corporais ou ar contaminado. E há teorias mais malucas envolvendo miasma e corrupção espiritual, mas essas são mais difíceis de testar..."
Magda serviu chá para Gaspar também, suas mãos ainda tremendo levemente e fazendo a porcelana rachada tilintar contra o pires igualmente rachado.
Era um conjunto que pertenceu à mãe deles.
Ela se serviu por último, pegando a terceira e última xícara, esta com uma rachadura longa correndo de cima a baixo que estava remendada com uma linha fina de resina.
"E aqui?" Renne virou o olhar para a janela remendada com papel oleado, onde através da superfície translúcida e manchada podia-se ver vagamente a silhueta do moinho abandonado se destacando contra o céu cor de ferrugem. "Como Thorne está lidando com tudo isso? A vila tem algum sistema de alerta? Planos de evacuação?"
"Tentando viver, eu acho," Gaspar deu de ombros, o movimento parecendo mais derrotado do que pretendia. Ele pegou sua xícara de chá e a segurou entre as mãos, absorvendo o calor que emanava da porcelana rachada. "O poço central da vila secou completamente. Um dia tinha água, turva e com gosto ruim mas ainda era água, no dia seguinte era só lama no fundo, e uma semana depois disso nem lama restava. Só pedras secas e rachaduras no solo." Ele soprou levemente na superfície do chá, dispersando o vapor em espirais que se dissiparam rapidamente no ar frio da cabana. "Agora temos que ir até o riacho três léguas ao norte toda vez que precisamos de água fresca. E mesmo essa água não é confiável, tem que ferver tudo antes de beber ou você passa três dias vomitando até não ter mais nada no estômago."
"Três léguas," Renne repetiu com voz cuidadosamente neutra, mas Gaspar podia ver a preocupação em seus olhos. Ele estava fazendo cálculos mentais, estimando distâncias e tempos. "Isso é... quanto? Hora e meia a pé só para ir?"
"Se você caminhar rápido e não carregar muito peso," Gaspar confirmou, bebendo um gole pequeno do chá. O líquido estava amargo, com gosto predominante de ervas secas e apenas um traço distante do que poderia ser chamado de sabor agradável, mas estava quente e isso era o que importava. "Duas horas, talvez duas horas e meia se estiver carregando baldes cheios na volta. Mais tempo ainda se o terreno estiver enlameado, não que isso aconteça com frequência ultimamente, já que mal chove. A última chuva de verdade foi há... quanto tempo, Magda? Dois meses? Três?"
"Quase quatro," Magda respondeu baixinho, sentando-se finalmente na terceira cadeira, a mais instável das três, que balançava e rangia sempre que ela se movia mesmo minimamente. Ela tinha que manter os pés firmes no chão e o corpo perfeitamente equilibrado para evitar que a cadeira tombasse. "Foi no início de setembro. Choveu por duas horas, forte o suficiente para encharcar tudo, e depois parou e nunca mais voltou."
Renne assentiu lentamente, como se estivesse anotando mentalmente essa informação para incluir em algum relatório futuro que submeteria aos seus superiores na Ninfa. Os Oficiais eram obrigados a preencher relatórios detalhados sobre as condições de cada região que visitavam, não apenas sobre atividade de Flagelos mas também sobre infraestrutura, moral da população, disponibilidade de recursos. Informação era o sangue vital da organização.
"A Ninfa poderia mandar um purificador de água," ele ofereceu depois de um momento de reflexão. Seus dedos tamborilavam novamente na mesa, aquele tique nervoso. "Não é muito, é basicamente só um frade ou alquimista treinado em técnicas de filtragem e purificação alquímica, mas seria significativamente melhor do que caminhar doze léguas todo dia. Eles usam uma combinação de areia, carvão ativado e certos minerais para remover contaminantes. Não é perfeito mas reduz doenças em oitenta, talvez noventa por cento."
"Isso exigiria que Thorne fosse importante o suficiente para a Ninfa prestar atenção," Gaspar disse sem amargura particular em sua voz, apenas declarando um fato óbvio e imutável. "Somos apenas mais uma vila morrendo lentamente num reino cheio de vilas morrendo lentamente. Há centenas, talvez milhares de lugares como nós espalhados por Vietta, por todo Hermes na verdade. Por que desperdiçar recursos conosco quando cidades maiores, lugares com mais pessoas, precisam de ajuda?"
"Milhares," Renne concordou baixinho, e havia uma tristeza profunda em sua voz que Gaspar nunca ouvira antes. Era a voz de alguém que tinha visto muito, que conhecia a escala verdadeira do problema e sabia que não havia solução fácil ou rápida. "Milhares de vilas. Milhões de pessoas. E nunca temos recursos suficientes. Nunca."
O silêncio que se seguiu foi pesado e opressivo, preenchido apenas pelos sons ambientes: o vento uivando lá fora, a chaleira fazendo pequenos ruídos metálicos enquanto esfriava, a madeira da cabana rangendo e se ajustando.
"Quantos ataques houve em Thorne até agora este ano?" Gaspar quebrou o silêncio eventualmente, colocando sua xícara vazia no pires rachado com um clique suave. "Ataques confirmados, casos onde sabemos com certeza que foram Flagelos e não apenas azar ou doença comum?"
"Três. Ou quatro, dependendo de como você conta," Magda respondeu antes que Renne pudesse perguntar. Ela estava enrolando e desenrolando uma ponta solta do avental entre os dedos nervosamente, torcendo o tecido até formar uma corda apertada e depois soltando, repetindo o movimento obsessivamente. "Em março, no início da primavera quando ainda tínhamos esperança de que talvez esse ano fosse melhor, a família Cordwain foi encontrada."
Sua voz ficou mais baixa, quase um sussurro. "Todos os quatro. Os dois filhos pequenos também"
Magda gesticulou vagamente com a mão livre, um movimento que abrangia tudo e nada simultaneamente. "Provavelmente foram Flagelos. Tudo é causado por essas maldições!"
"Existem alguns Flagelos nas imediações," Renne disse gravemente, sua expressão endurecendo para algo mais profissional, mais distante. Era a face que ele usava quando estava em modo de trabalho, quando deixava de ser Renne, o primo e amigo, e se tornava Renne, o Oficial Portador da Ninfa. "Vagando pelas áreas rurais, escondidos em celeiros abandonados ou grutas ou florestas, esperando. A prefeitura está fazendo algo?"
Gaspar soltou um riso curto, amargo e completamente desprovido de humor. O som saiu mais áspero do que pretendia, quase como um latido. "Com o quê? Temos talvez vinte homens em idade de luta em toda a vila, isso contando desde garotos de quinze anos até velhos de sessenta. E metade deles está velha ou fraca demais para ser útil em qualquer tipo de situação real..." Ele se inclinou para trás na cadeira, que rangeu perigosamente sob o movimento, e cruzou os braços sobre o peito. "Nosso 'arsenal' consiste em algumas foices enferrujadas que usamos para cortar o pouco de grama que ainda cresce, machados de lenhador e uma balesta velha que pertenceu ao avô de alguém e que provavelmente explode se alguém tentar realmente dispará-la. Ah, e temos algumas tochas, eu acho."
Renne esfregou a cicatriz na têmpora, aquele gesto novo que Gaspar notou antes.
Era uma cicatriz recente, talvez de seis ou sete meses, uma linha fina e branca que corria por cerca de cinco centímetros desde a linha do cabelo até a sobrancelha esquerda.
Parecia ter sido profunda quando aconteceu, provavelmente sangrara muito, mas fora tratada adequadamente por algum cirurgião habilidoso da Ninfa.
"Mês passado," ele disse, voltando ao assunto anterior como se não tivesse ouvido o desabafo sarcástico de Gaspar, ou talvez precisamente porque ouviu e não soube como responder adequadamente, "minha unidade expurgou oito Flagelos perto de Bergarosa. Foi depois do ataque principal, durante as operações de limpeza. Eles estavam se aglomerando em uma fazenda abandonada a algumas milhas fora da cidade, uma propriedade que pertencera a uma família de criadores de porcos que fugiu quando a Grande Morte chegou."
Ele pegou o último biscoito da sacola que trouxe e o examinou por um momento antes de mordê-lo. Mastigou pensativamente, engoliu, e continuou falando enquanto comia, pequenas migalhas escapando de seus lábios.
"Encontramos o que provavelmente era o hospedeiro original, o primeiro Flagelo, aquele que deu início a toda a infestação. Era um fazendeiro. E os outros sete eram receptáculos."
"Receptáculos?" Gaspar repetiu a palavra estranha.
"É como chamamos os Flagelos secundários que se formam quando um Flagelo primário, o hospedeiro original, permanece em um local por tempo suficiente sem ser expurgado," Renne explicou, terminando o biscoito e limpando as migalhas da mesa para dentro da palma da mão. Ele as comeu metodicamente, não desperdiçando absolutamente nada. "Eles... não sei se 'reproduzem' é a palavra tecnicamente correta, mas se espalham de alguma forma. É como mofo crescendo em pão úmido."
Magda estremeceu visivelmente, cruzando os braços sobre o peito.
"E como vocês os encontram? Como sabem onde procurar?"
"De diversas maneiras," Renne respondeu. "Primeiro, mantemos vigilância em pontos estratégicos. E também..." Renne apontou para o próprio nariz. "Flagelos exalam um forte odor de enxofre quando estão próximos. É um dos primeiros sinais que treinamos os recrutas a reconhecer."
Ele virou o pulso esquerdo, revelando uma marca circular queimada na pele. "É um teste final. Eles queimam diferentes substâncias até você poder nomear cada uma de olhos fechados apenas pelo cheiro."
Gaspar observou as mãos do primo. Eram mãos completamente diferentes. Calos e cicatrizes por todo lado. Uma particularmente feia atravessando a parte de trás da mão direita.
"E depois que encontram os Flagelos?" Gaspar perguntou.
Renne limpou os lábios. "Depende do do grau. Flagelos são divididos em quatro graus: . Alguns, os mais fracos, podem ser expurgados com fogo-fátuo."
"Fogo-fátuo?" Magda perguntou.
"É um tipo especial de fogo alquímico que queima extremamente quente mas não se espalha. Você joga numa pessoa infectada e ela queima de dentro para fora em segundos." Ele pausou, desconfortável. "Não é uma morte gentil. Mas é rápida, e mais misericordioso do que deixar a transformação acontecer."
O silêncio foi pesado.
"Outros Flagelos, mais avançados, exigem métodos mais... incisivos," Renne continuou, sua voz mais sombria. "É aí que entram pessoas como eu. Os Portadores."
"Você nunca explicou direito sobre isso," Gaspar disse lentamente. "Portadores. Soa como... portadores de doenças terminais."
Renne ficou completamente imóvel por um instante longo demais. Seus olhos verdes se tornaram opacos.
"E é exatamente isso que somos."
As palavras caíram na cabana como pedras em um lago quieto.
Gaspar parou no meio do movimento. Magda congelou.
"O que você quer dizer?" Gaspar perguntou lentamente.
Renne bebeu um gole longo de chá antes de continuar. "Os Portadores carregam a Praga dentro deles. Dentro de nós. Dentro de mim."
Ele se inclinou para trás. "Deixe-me explicar como funciona. Quando um Flagelo ataca alguém, a vasta maioria, talvez noventa e cinco por cento, simplesmente morre. Seus corpos não conseguem conter a contaminação."
Ele ergueu um dedo. "Uns poucos sobrevivem tempo suficiente para se tornarem Flagelos. Seus corpos não morrem mas também não conseguem conter a infecção. Ela se espalha, transforma seus tecidos, destrói sua consciência. Eles se tornam monstros."
Renne ergueu um segundo dedo. "E então há uma fração minúscula. Talvez uma em mil pessoas infectadas. Seus corpos conseguem conter a Praga. Não eliminá-la, mas aprisioná-la. Controlá-la. Essas pessoas são Portadores."
Ele olhou diretamente para Gaspar. "Nós carregamos a doença, mas mantemos nossa sanidade. E podemos usar os poderes que a Praga concede para combater outros Flagelos."
"Você está... infectado?" Magda sussurrou, a voz quebrando.
"Sim," Renne respondeu simplesmente. "Há três anos. Logo depois que me juntei à Ninfa. Foi parte do treinamento. Inoculação controlada."
Gaspar sentiu o mundo girar. "Eles te infectaram de propósito?"
"Não havia outra escolha," Renne disse calmamente. "Humanos normais não conseguem matar Flagelos avançados. Só Portadores podem. A Ninfa precisa de nós."
"Mas você vai... vai se transformar eventualmente?" Gaspar perguntou, a voz trêmula.
"Talvez. Provavelmente." Renne não desviou o olhar. "A maioria dos Portadores perde o controle depois de alguns anos. Cinco, dez anos se tiverem sorte. A Praga nunca para de tentar nos consumir. É uma batalha constante."
O silêncio era ensurdecedor.
"Por isso voltei," Renne disse finalmente. "Para vê-los. Enquanto ainda posso."
Gaspar sentiu lágrimas ardendo em seus olhos. "Renne..."
"Não." Renne levantou a mão. "Não precisa dizer nada. Eu escolhi isso. E faria de novo." Ele sorriu, aquele sorriso torto. "Alguém tem que lutar. Alguém tem que proteger lugares como Thorne. Pessoas como vocês."
Magda estava chorando silenciosamente.
"Mas chega de assuntos pesados," Renne disse, sua voz assumindo um tom mais leve forçadamente. "Vim trazer presentes, lembram? Vamos comer esses biscoitos antes que fiquem velhos."
Ele alcançou sua bolsa e começou a tirar pacotes. Farinha. Mel. Mais biscoitos. Um pequeno saco de maçãs secas.
Por uma hora, eles fingiram que tudo estava normal. Comeram, riram de histórias antigas, relembraram tempos melhores.
Mas quando o sol começou a se pôr, Renne se levantou.
"Preciso ir buscar água no riacho antes que escureça," Gaspar disse, notando a hora.
"Vou com você," Renne ofereceu imediatamente.
"Não precisa..."
"Eu insisto. É o mínimo que posso fazer antes de voltar para a capital."
Magda olhou entre os dois. "Tomem cuidado. Está escurecendo..."
Gaspar pegou dois baldes vazios. Renne vestiu seu manto e prendeu a espada ao cinto.
E juntos, saíram para a noite que se aproximava.
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Dia 15 de setembro de 1611, 17:48
1,5km de distância da cabana...
O caminho até o riacho serpenteava através de campos abandonados e pequenos bosques de árvores retorcidas.
O céu estava tingido de laranja e púrpura, as últimas cores do dia sangrando no horizonte enquanto o sol morria lentamente atrás das colinas distantes.
Gaspar carregava os dois baldes vazios, o metal batendo contra suas pernas a cada passo com um som metálico ritmado. Renne caminhava ao seu lado, uma mão descansando casualmente no cabo da espada presa ao cinto, os olhos constantemente vasculhando os arredores.
"Você se lembra quando costumávamos pescar aqui?" Renne quebrou o silêncio eventualmente, sua voz suave e nostálgica.
"Claro," Gaspar respondeu com um sorriso pequeno. "Você dizia que eu não pegava peixe porque eu não tinha paciência e ficava fazendo muito barulho."
"Você realmente fazia muito barulho," Renne riu baixinho. "Ficava jogando pedras na água toda vez que ficava entediado. Os peixes fugiam para o outro lado do rio!"
"Eu tinha oito anos!"
"E eu tinha dez, mas pelo menos sabia esperar!"
Por um momento breve e precioso, pareceu que tinham voltado no tempo.
Eles caminharam em silêncio confortável por alguns minutos, seguindo a trilha estreita que gerações de moradores de Thorne haviam desgastado no solo. A vegetação ao redor era escassa e doentia, arbustos ressecados e árvores com galhos nus que se estendiam para o céu.
"Você notou que Magda está mais magra?" Renne perguntou de repente, mudando completamente o tom. "Não de forma saudável... Me diga, Gaspar... Ela está dando comida para você, não está?"
Gaspar tropeçou levemente. "Uhm...?"
"Ga-san." A voz de Renne era firme agora. "Não minta para mim. Eu vi como ela te observava comer. Vi como ela mal tocou na comida que trouxe. Ela está se sacrificando por você."
"Ela é teimosa," Gaspar murmurou, olhando para o chão. "Eu já disse para ela parar, mas ela não escuta!"
"Então você precisa ser mais esperto que ela," Renne disse. "Esconda comida. Finja que já comeu. Faça o que for necessário. Porque se ela continuar assim..." Ele não terminou a frase.
O som do riacho ficou audível antes de vê-lo, fraco e irregular. Quando finalmente chegaram à margem, Gaspar ajoelhou e começou o longo processo de encher os baldes com uma caneca velha de metal.
Renne ficou de pé, observando os arredores. "Quanto tempo isso leva normalmente?"
"Vinte minutos. Talvez mais."
"E você faz isso sozinho? Duas vezes por dia?"
"Às vezes Magda vem comigo pela manhã."
Renne não disse nada, mas sua tornou-se sombria.
O céu escureceu rapidamente enquanto Gaspar enchia os baldes.
As estrelas começaram a aparecer.
Gaspar estava quase terminando de encher o segundo balde quando ouviram algo semelhante ao escorrimento de um líquido viscoso.
Na verdade, parecia gel caindo na terra.
Um barulho úmido, mas não muito afastado dum sólido.
"Renne? Tá ouvindo?" Gaspar disse baixinho.
"Fique atrás de mim," Renne respondeu, mas sua voz estava estranha. Tensa de uma forma que Gaspar nunca ouviu antes.
Então eles viram.
No começo, Gaspar pensou que era apenas uma sombra entre as árvores.
A criatura que emergiu da linha de árvores a cerca de vinte metros de distância era quadrípede.
Tinha uns 2,5m de altura e lembrava nitidamente uma cabra, mas qualquer um diria que enxerga diversas outras características animalescas, com longos chifres negros que se retorciam um pouco para dentro, com aros verdes em volta.
A lateral direita do abdome revelava as costelas por inteiro. O interior da criatura era completamente escuro, então órgãos não eram visíveis. Tinha a pelagem negra, com algumas marcas verdes que brilhavam levemente. Era difícil de ver por conta da coloração da pelagem, mas um líquido denso e também, completamente negro, escorria da costela da criatura.
A biologia atual com certeza classificaria aquela criatura como um Flagelo, mas de um tipo nunca antes catalogado.
O Flagelo parou, sua cabeça girando lentamente na direção deles. Não tinha olhos visíveis, mas Gaspar podia sentir que estava os observando.
"Não. Corra. Ainda," Renne sussurrou, a mão apertando o cabo da espada com tanta força que seus nós dos dedos ficaram brancos. "Aparentemente, ele é pouco sensciente, o que me faz pensar que é um de grau baixo. Flagelos de Primeiro Grau caçam por movimento. Se você correr, ele vai te perseguir."
"O que fazemos então?"
"Eu vou distraí-lo. Quando ele vier para mim, você corre. Não olha para trás. Não para por nada. Vai direto para casa, tranca a porta, e não sai até amanhecer. Entendeu?"
"Não! Eu não vou te deixar..."
"Entendeu ou não?!" Renne sibilou com intensidade.
"...Sim," Gaspar disse fracamente.
"Bom."
Renne deu um passo à frente, colocando-se entre Gaspar e a criatura.
Com movimentos lentos e deliberados, ele desembainhou a espada.
O metal cantou ao sair da bainha, um som claro e puro que cortou o silêncio.
O Flagelo reagiu instantaneamente.
Sua cabeça se ergueu com um movimento brusco e antinatural. Um som saiu dele, um guincho acompanhado de um gorgolejar molhado que fez Gaspar arrepiar-se.
Ele se moveu com velocidade muito rápida, quase como num pulo só. Um momento ele estava a vinte metros de distância, no próximo estava a cinco. Gaspar nem conseguiu acompanhar o movimento intermediário.
"Corre!" Renne gritou.
Mas Gaspar estava congelado, seus pés recusando-se a obedecer seus comandos. Terror puro o paralisava, transformando seus músculos em pedra.
O Flagelo investiu contra Renne, que girou lateralmente a espada descrevendo um arco prateado no ar do crepúsculo. A lâmina cortou através do braço esquerdo da criatura.
Não houve sangue. Ao invés disso, o líquido negro que pendia de suas costelas jorrou, gotejando no chão onde começou a borbulhar e ferver.
O Flagelo nem pareceu notar. Ele girou com aquele movimento antinatural e atacou novamente, desta vez com a boca se abrindo muito mais do que deveria ser possível, revelando fileiras de dentes irregulares.
Renne pulou para trás, mas não foi rápido o suficiente. As mandíbulas se fecharam em seu antebraço esquerdo.
O grito que Renne soltou finalmente quebrou a paralisia de Gaspar.
"Renne!"
Gaspar não pensou. Pegou uma pedra do tamanho de seu punho da margem do riacho e a arremessou com toda a força que conseguiu reunir. A pedra atingiu o Flagelo na lateral da cabeça com um impacto surdo.
A criatura soltou Renne e girou sua atenção para Gaspar.
"Não!" Renne rugiu, mas já era tarde demais.
O Flagelo começou a se mover em direção a Gaspar, aquela caminhada impossível e irregular que cobria distância muito mais rápido do que deveria. Gaspar tropeçou para trás, caiu no chão, começou a rastejar desesperadamente.
Renne se lançou nas costas da criatura, enfiando a espada profundamente entre o que deveria ser as omoplatas.
O Flagelo se arqueou, mas não caiu.
Ao invés disso, ele girou, golpeando Reno no estômago com o par de chifres e arremessando-o cerca de cinco metros, colidindo com uma árvore.
"Não, não, não," ele estava murmurando enquanto tentava se levantar, as pernas tremendo tão violentamente que mal conseguia ficar de pé.
O Flagelo voltou sua atenção de novo para Gaspar, começando aquela caminhada terrível novamente.
Renne estava no chão, tentando se levantar, sangue escorrendo de sua boca. "Ga-san... Foge..."
Mas Gaspar não podia se mover. Suas pernas finalmente haviam desistido completamente. Ele caiu de joelhos, os olhos fixos na criatura se aproximando.
O Flagelo ergueu aquele braço longo e deformado, as garras na ponta brilhando fracamente na luz das estrelas.
E então algo extraordinário aconteceu.
Renne estava de repente de pé, movendo-se mais rápido do que deveria ser humanamente possível. Mas algo estava diferente. Sua pele tinha uma luminescência estranha, veias negras se espalhando por seu pescoço e rosto como rachaduras em porcelana. Seus olhos estavam completamente negros.
"O qu...?!" Gaspar sussurrou, compreendendo.
Renne estava usando a Praga.
Ele colidiu com o Flagelo com a força de um touro enfurecido, as mãos nuas agarrando a cabeça da criatura. E então aquelas veias negras em seus braços começaram a brilhar com uma luz doentia, esverdeada.
O Flagelo começou a se contorcer violentamente, aquele som horrível ficando mais e mais alto. A pele que ondulava começou a se desfazer, literalmente se derretendo como cera sob chamas invisíveis.
Levou quinze segundos.
Quinze segundos de gritos horríveis da criatura, quinze segundos de Renne segurando firme enquanto a coisa se dissolvia em suas mãos. E então acabou. O Flagelo era apenas uma poça de líquido negro e fedorento fumegando no chão.
Renne cambaleou para trás, caindo de joelhos. As veias negras ainda estavam visíveis em sua pele, pulsando obscenamente. Seus olhos lentamente voltaram ao verde normal, mas levou tempo. Tempo demais.
"Renne!" Gaspar finalmente conseguiu se mover, rastejando até o primo. "Você está bem? Você está...?"
"Vivo," Renne conseguiu dizer, sua voz rouca e áspera. "Eu estou vivo."
Mas Gaspar podia ver o custo. Renne estava tremendo violentamente, suor escorrendo por seu rosto apesar do ar frio da noite. O braço que o Flagelo mordera estava um horror de carne rasgada e osso exposto.
"Você preci... Precisamos voltar! Precisamos tratar isso!" Gaspar exclamou, tentando ajudar Renne a se levantar.
"Espera," Renne disse, sua voz fraca. Ele enfiou a mão livre dentro do manto e puxou algo. Um frasco pequeno, do tamanho do polegar de Gaspar, preenchido com líquido vermelho escuro. "Toma isso."
"O que é?"
"Não importa. Só... só guarda. Se eu..." Renne tossiu, sangue salpicando de seus lábios. "Se eu não conseguir voltar para Grenholme, você bebe isso. Entende? Vo... Você bebe."
"Eu não entendo. O que vai acontecer?"
"Só prometa!" Renne agarrou a camisa de Gaspar com força surpreendente. "Promete!"
"Eu prometo," Gaspar disse, as lágrimas finalmente começando a cair. "Eu prometo."
Renne relaxou, soltando a camisa. "Obrigado, Ga-san."
Seus olhos reviraram e ele desmaiou nos braços de Gaspar.
E foi aí, ajoelhado na margem do riacho com seu primo morrendo em seus braços, que Gaspar percebeu.
As veias negras em Renne não estavam desaparecendo... Estavam se espalhando.