Kiki aprendeu cedo que o mundo não é gentil com tudo o que é delicado.
Ela não sabe exatamente quando começou. Não houve um dia específico, nem um grande acontecimento que pudesse ser apontado como origem. Foi algo gradual, quase invisível. Uma soma de olhares impacientes, comentários atravessados, expectativas silenciosas que surgiam sempre que ela ria alto demais ou se encantava por coisas consideradas pequenas.
Kiki percebeu, aos poucos, que crescer parecia significar endurecer.
E isso a assustou.
Enquanto o tempo avançava, ela sentia que algo estava sendo exigido dela — menos cor, menos exagero, menos sensibilidade. O mundo parecia funcionar melhor quando as pessoas eram práticas, objetivas, rápidas. Mas Kiki nunca foi feita de linhas retas. Ela era excesso, detalhe, pausa. Era emoção espalhada em pequenos gestos.
Por muito tempo, tentou se adaptar.
Tentou falar menos, sentir menos, se mover menos. Tentou guardar para si o que achava bonito, como se gostar demais fosse um erro. Mas toda vez que tentava caber, algo dentro dela diminuía junto. E Kiki entendeu que havia uma diferença entre amadurecer e desaparecer.
Foi então que ela escolheu a doçura.
Não como ingenuidade, mas como resistência.
Kiki decidiu que não abriria mão do que era suave só porque o mundo era áspero. Que não abandonaria a leveza apenas para parecer mais aceitável. Cada coisa que manteve — os objetos pequenos, os detalhes afetivos, o cuidado exagerado com lembranças — virou uma forma de dizer eu ainda estou aqui.
A doçura de Kiki nunca foi frágil.
Foi construída.
Ela aprendeu a proteger aquilo que sentia, mesmo quando diziam que era demais. Aprendeu que gentileza não é submissão e que sensibilidade não é falta de força. Pelo contrário: sentir exige coragem. Continuar sendo gentil em um mundo que machuca exige ainda mais.
Houve momentos difíceis. Momentos em que ser doce parecia sinônimo de ser ignorada. Em que seu jeito foi confundido com infantilidade, imaturidade ou fuga. Kiki ouviu tudo isso. Sentiu o peso dessas palavras. Duvidou de si mesma.
Mas não desistiu.
Ela caiu algumas vezes — literal e simbolicamente. Caiu porque andava rápido demais, porque se empolgava demais, porque acreditava demais. E cada queda deixou marcas. Algumas visíveis, outras não. Ainda assim, Kiki nunca passou a andar olhando apenas para o chão. Continuou olhando para frente, mesmo sabendo que poderia cair outra vez.
Porque a doçura dela não vinha da ausência de dor.
Vinha da escolha de não deixar que a dor a transformasse em algo amargo.
Kiki descobriu, com o tempo, que ser doce não é negar o mundo como ele é. É responder a ele de outra forma. Onde o mundo exige dureza, ela oferece cuidado. Onde o mundo acelera, ela observa. Onde o mundo julga, ela acolhe.
Pra ela, existir não só ocupar um lugar qualquer. É ocupar mais do que espaço. Corações.
Não se tornar alguém diferente para sobreviver.
Mas sustentar quem era, apesar de tudo.
Ela representa a vida que transborda em nós. porque ela ensina que delicadeza também é uma linguagem válida. Que suavidade não é fraqueza. Que a chance de um novo recomeço existe. E que crescer não precisa significar abandonar aquilo que nos torna humanos.
Ela não resolve conflitos com imposição. Resolve com presença. Não reage de forma Cínica. Reage com empatia. Não se fecha para não sentir. Continua aberta, mesmo sabendo o risco.
Em Quatro Formas de Existir, Kiki é a prova de uma nova chance porque a doçura é, muitas vezes, o primeiro instinto que o mundo tenta apagar. E também porque lembrar que essa chance existe é essencial antes de apresentar qualquer outra forma de ser.
Ela não ensina a vencer.
Ensina a permanecer.
Ela é a prova de que existir de forma doce e muitas vezes agradável, em um mundo que machuca, não é fraqueza —
é uma escolha radical.
E talvez, a mais difícil de todas.