Sempre funciona
— UNLIMITED POWAAAAHHHH!!!!!! — Verônica gritou histericamente, apontando uma pena que segurava com a mão direita e a palma da mão esquerda voltadas para garrafas de cerveja vazias em cima de caixas ou dependuradas em correntes. Um pequeno raio é disparado e a pena se desintegra.
Tomás, tirando as mãos dos ouvidos após o grito. — O que era aquela pena?
— Uma penugem do pássaro gigante lendário da cultura nativo-americana dos EUA, o thunderbird.
— E tu gastou de boa assim?
— Era de um filhote rejeitado do ninho, não custa muito caro, nem é muito poderoso. Tenho mais algumas no meu arsenal.
— E precisa gritar para usar?
— Esse é o ponto. Tem que colocar energia quando está usando teus poderes, cara.
— Não viaja. Faz 30 horas que hipoteticamente ganhei algum tipo de habilidade. É impossível tu saber como funciona, se nem eu sei.
— Eu lido diretamente com proto-humanos há mais tempo que tu. Pode crer que geralmente é assim com esse tipo de poder. O cara tem que botar para fora.
— Olha, eu espanquei um contêiner de aço, mas não saiu um raio sequer. Tá toda amassada aquela merda, só não saiu nada.
— Então sobre o contêiner… pelo menos já temos alguma ideia da tua nova força. E em breve, da velocidade. A gente pegou este armazém emprestado para um dia com a Carpe&Die, os contêineres não estavam no empréstimo. — Ela olha para Tomás que responde com uma cara de “Vish, fiz merda”.
O Cais do Porto de Porto Alegre fica na Avenida Mauá, no Centro Histórico, às margens do Rio Guaíba, que não está lá bem muito cuidado. A revitalização do Cais do Porto de Porto Alegre é um projeto antigo de décadas, com muitas opiniões e poderes diferentes disputando a pauta.
Nas últimas gestões, fizeram algumas reformas pensando na Estação do Cais lá do Pará e ficou horrível. Copia, mas não faz igual, um Ctrl+C Ctrl+V com dados corrompidos na área de transferência. E não precisava disso.
As universidades públicas locais já tentaram promover alguns projetos. De fato, não dá para dizer que todos são a melhor ideia do mundo, mas provavelmente seriam melhores do que se encontra atualmente. No meio dessa disputa, chegamos na situação atual: igual ao Guaíba, fede e sem uso.
E, assim como o Guaíba, os armazéns do Cais do Porto foram tomadas pela “sujeira”. A facção que os tiver sob controle acaba tendo uma boa vantagem logística. A conexão com outras cidades pela água permite transporte sem passar por outros territórios, sem esquecer do fato de que são grandes armazéns no centro da cidade.
Além de uso com depósito próprio, o armazém acaba sendo alugado para outras facções e empresas da superfície guardarem coisas e segredos ou ousarem para diversos fins, que incluem o de Tomás e Verônica: usar como um espaço para treino durante o dia sem romper o Véu.
Não é um cenário muito difícil de imaginar. É um espaço amplo, fechado por um teto meio cilíndrico, com contêineres de metal espalhados e, no momento, dois piás e umas garrafas de vidro. Ah, e isolamento acústico por via das dúvidas.
— Moh saco. Nem queria essa merda. Agora vai parecer que só venço todo mundo só porque tenho poder e não me garanto no soco, mesmo que o poder seja um soco reforçado, não é uma boa reputação.
— Há, e quem disse que tu vai ganhar de alguém? Vai tratando de aprender como funciona teus choquinho aí. Tu nunca sabe contra quem vai lutar.
— Eu venci logo na estreia.
— Empatou. E por quase um Deus Ex Machina, porque era pra tu ter morrido, mas não morreu, eu acho. Tua luta com o Ferroada acabou em empate porque os dois ficaram desacordados.
— Mas eu ainda estou invicto.
— Há, tá bom. Aliás, por ser um empate, não contou ponto a favor, nem contra. Inclusive, me parece um bom momento para te explicar como funciona o Circuito de Proto-Humanos e como eles afetam a disputa de territórios entre as facções. Nunca tivemos poder para disputar um território antes, mas agora isso pode mudar. — Verônica pega seu celular e abre um arquivo na tela. — Montei uma apresentação de slides para ver se tu consegue acompanhar:

Verônica continua a explicação:

— A cidade de Porto Alegre é dividida em 10 territórios, cada uma pertencendo a uma facção diferente. Por exemplo, o 1º território pega bairros como Centro e Cidade Baixa, onde fica o Roseiral, e pertence à Carpe&Die. O 2º território pega Moinhos e tal, é da GoWeb New Age. Podem ter outras facções agindo no território, como nós.
— Certo. E a velha paga umas taxas para a Carpe&Die, não é?
— Exato. Ter um território significa receber taxas, ter influência, se apossar de propriedades como esta aqui etc. Também significa algumas responsabilidades, como pagar os Homens de Preto para limpar tudo, organizar lutas ocorridas no local, e até mesmo organizar o torneio de disputa do próprio território.
— É agora que tu me explica o que importa. Vai lá.
— O Circuito de Proto-Humanos é dividido em duas etapas, cada uma em um semestre, além de lutas para resolver outros interesses. Assim:
— Luta várias vezes até ter 3 vitórias ou 3 derrotas. Venceu, tá dentro, perdeu, volta ano que vem. Quem tá dentro participa de disputa, mostra poder da facção, permite negociações de trabalhos…
— De quantas disputas de território eu posso participar?
— Geralmente ocorrem em datas próximas ou até junto. É um acordo velado para dificultar as coisas. Se alguém ainda estiver de pé e quiser, dá para arriscar em mais de uma, mas dificilmente é o caso. No máximo duas, com bom espaço de tempo.
— Entendi… E a minha luta terminou como empate, então… não valeu nada?
— Nada, não. Eliminou um concorrente. Mesmo que fosse a primeira luta dele também, o dano no Ferroada foi forte.
— O que aconteceu?
— Ah, a energia aumentou a temperatura e derreteu partes dos implantes de metal dele, além dos efeitos diretos da eletricidade no corpo. Se sair do coma e tratar as infecções, tá de pé já, já.
— Eu venço até quando eu não venço.
— Tomás, foi sorte. Sério. Ao menos uma vez na tua vida, tenta me ouvir e fazer o que eu estou sugerindo. A partir de agora, tenta pensar nesse poder como forma de extravasar emoções fortes. — Verônica guarda o celular no bolso e, em seguida, murmura. — Depois explico o resto…
— Bah, isso tá chato já, Verônica. Mas vamos lá, vou tentar do teu jeito.
Verônica vai até a frente de Tomás, abre as mãos dele e mira as palmas para as garrafas. Ela se posiciona atrás de Tomás e puxa uma das pernas dele para trás.
— Beleza, o que tu quer que eu faça agora? — Pergunta Tomás, bufando e revirando os olhos.
— Primeiro, me trata com respeito. Segundo, pensa em algo que te dá raiva.
— Descobrir maçã na salada de maionese.
— Ok, pior do que isso.
— Gente andando devagar nas ruas do Centro em horário de pico.
— Terrível, mas vamos além.
— Empresa de cobranças ligando SÁBADO DE MANHÃ há anos atrás da mesma pessoa QUE NÃO TENHO IDEIA DE QUEM SEJA! — O corpo de Tomás emite alguns raios, as lâmpadas piscam e as garrafas dependuradas balançam um pouco.
— Quase lá!
— O ASSASSINO DO MEU PAI! — Raios aparecem e desaparecem contornando o corpo de Tomás, seu cabelo fica um tanto espetado, algumas lâmpadas estouram e as garrafas balançam mais.
— Ok, escalou rápido, AGORA SOLTA!
— HAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA! — O corpo de Tomás brilha intensamente, seus olhos ficam vermelhos, o resto das lâmpadas estoura e objetos de metal são atraídos e depois repelidos quando uma esfera de energia vermelha se forma na palma da mão e é disparada em um feixe de luz vermelha. — AE, CARALHO, FOI.
— Muito bem, agora só troca de roupa, tu queimou tudo. Vamos precisar de algum tipo de uniforme para treino e combate, ou vai virar um lutador pelado.
— Talvez eu ganhe umas gorjetas assim…
— Só se tu cobrar para colocar a roupa de novo, daí vai ficar rico. Mas, por sorte tua, eu sou uma ótima profissional e já me adiantei desde ontem e encomendei um uniforme para ti, feito com material diferenciado e resistente a eletricidade, incluindo teia de aranha e células de enguias elétricas.
— Vish, uniforme?
— Sabia que tu ia torcer o nariz, então… Foi baseado no que tu usa normalmente. Moletom vermelho, camiseta preta, jeans azul, all-star vermelho, mas obviamente com corte e caimentos mais bacanas. Estamos planejando algum emblema para colocar nas costas, mas tu não tem nem um nome de proto-humano ainda.
— Que ágil.
— Claro, quanto mais rápido tu estiver estiloso, mais rápido vende bonequinhos depois no submundo. Ah, e o uniforme deve chegar daqui a pouco.
Quanto custa um músico?
— A chuva cai lá fora, eu espero até agora, por um beijo teu. Um sorriso teu… — Não muito longe da Avenida Mauá se encontra Ulisses. O jovem músico está na Rua da Praia, localizada na Praça da Alfândega, também no Centro Histórico de Porto Alegre.
— Meu jovem, tu costumas ter uma meta financeira quando vens tocar aqui no centro? — Uma senhora de uns 70 anos para na frente de Ulisses e interrompe a sua cantoria. Ela largou sua barraquinha de pipoca ali do lado para ir conversar com o homem.
— Olha, eu tenho uma meta financeira e uma meta moral artística. — Ulisses ficou incomodado de ser interrompido, mas entendeu que se tratava de uma fã e não poderia trata-la mal. Se ajeitou no “colo” de Mário Quintana, no banco onde a estátua do poeta conversa com a estátua de Carlos Drummond de Andrade. — Quando recebo bons e grandiosos elogios, atingi a meta moral artística. Quando recebo por volta de 200 reais, eu atingi a meta financeira. Daí eu paro e troco de ponto para espalhar minha arte por mais lugares.
— Quanto já tens?
— 155 e umas palmas.
— O senhor é um excelente artista! Torço para que lance teu disco de ouro logo! — A senhora pega um pequeno bolo de dinheiro, tira uma nota de 50 e deposita na capa do violão de Ulisses. — Parabéns, atingiu tua meta! — E a senhora voltou a vender pipoca.
— Uau, que ótimo! Já posso sair daqui. Que pena abandonar essa senhora gentil, mas preciso levar minha palavra para mais pessoas. — O celular logo começa a vibrar enquanto Ulisses arruma suas coisas para sair — Alô? Minha orquídea? — Era Bianca.
— Fêfê!
— IIh, usou meu primeiro nome, vai pedir algo, bicho, ahahaha. Que é?
— Pode passar na farmácia antes de vir? Preciso de um polivitamínico, o meu está acabando e estou sem dinheiro.
— Pra que isso? A gente tem comido vegetais e frutas, não precisa desse tipo de veneno da indústria farmacêutica. Como bióloga, deveria saber disso…
— Eu sei, mas eu realmente estou precisando. Fui na gineco e ela disse que nestes meses vou precisar bastante e não tenho como escapar de suplementar.
— Não entendo o porquê, e deve ter algo errado, mas vou tentar. É caro?
— Te mandei a marca por mensagem, é uns vinte pila.
— Bah, mas aí me quebra. Vou tocar mais um pouco e tentar. Agora to indo ali pra Orla.
— Ok, amor, você é sempre atencioso. Até mais tarde.
— Alô? — Outra pessoa ligou
— OH, Ulisses, seu pau no cu. Minha mão tá machucada até agora, seu merda.
— Irmão, já disse que foi mal, eu tava doidão.
— Ok, te perdôo com uma condição. Uma puta me falou outro dia que tá com uma flor boa pra caralho. Só que tá meio cara. Se tu pegar e trouxer pra baia, a gente fica de boa. Me confirma e pega com ela aí no Centro mesmo, no Mercado Público.
— Quanto tá? É pura mesmo? Camarãozão?
— É sim. 10 o grama. Pega 3g pra cada um, tenho mais umas paradas e a gente curte um teto.
— Dá 60, fechou. Onde eu encontro ela lá?
Experimenta aí
— Esse moletom é bem confortável e flexível. — Diz Tomás mexendo no casaco canguru vermelho. — E esta camiseta, é uma tech t-shirt que fala? — Pergunta enquanto abre a porta do amazém.
— Tenho cara de otária que cai em golpe? Bom, Tomás, são 16h e vamos no Mercado Público agora. Tem um evento para assistirmos e tu entender melhor as lutas entre Proto-Humanos. Vai ser a luta de estreia da Eva, da COSFAGRO-RS, que quer entrar no Circuito de Proto-Humanos também. — Responde Verônica passando atrás. — Ah, e mais tarde tu me ajuda num trabalho…
— Quem são esses? Não lembro de ter lutado contra gente dessa facção antes. — Os dois começam a se arrumar para sair.
— Yep, eles só participam do Circuito de Proto-Humanos mesmo. Cooperativa Sustentável Familiar de Agropecuária do Rio Grande do Sul. Olha só, eles dominam a Zona Rural de Porto Alegre. O 10º Território. Depois posso tentar investigar qual é a da Eva, mas geralmente o perfil do lutador só fica disponível na subnet depois que se entra no circuito.
— Subnet…
— Vivo esquecendo que tu é tão alienado que não usa a internet da superfície nem do submundo. Tem apps para tudo que é conveniência. Contratar serviços, marcar lutas, ver o ranking no torneio. Olha, depois que tu entrar no Circuito, vai ser obrigatório acessar a subnet viu?
— ARREP.. ÇÃO QUE JESUS… MÃOS, PORQUE… — No trajeto, um homem de terno com a Bíblia na mão acerta a proeza de berrar e parecer que murmura ao mesmo tempo. — VOLTARÁ…
— Vamos por aqui, vi o Ulisses lá no fundo. — Tenta falar Tomás no meio daquele gritedo, apontando em uma direção com o rosto perante uma bifurcação.
— …PENDAM-SE!
— Pode crer. Lembro daquela vez que a gente tava fazendo corre, ele te encontrou e ficou alugando. — Verônica pega o celular depois que ouve uma notificação. — Aqui, descobri quem é o outro combatente. Pata Queimada IV.
— Que tipo de criatura é essa?
— Sabe a história do rato que queimou as patinhas lá no Agito Lanches? Toda vez aparece um lutador novo dizendo que era o chapista que estava lá quando isso aconteceu e também dizendo ser o Pata Queimada original, mas como o nome já tá cadastrado, adiciona um número.
— Tu não teve um namorado que trabalhou lá?
— Ficava, mas… o cara não valia uma batata-doce.
— Isso foi bem específico, Verônica.
— Não, olha só. Quando se está tendo os primeiros encontros e formando intimidade, ainda nem namorando, a gente sempre quer causar a melhor impressão ou ao menos um mínimo viável. No primeiro encontro que tivemos, no mesmo dia, eu tinha recebido batata-doce da minha vizinha, uma laranja.
— A vizinha é laranja?
— Não, a batata-doce.
— Ah, bom.
— E, oh, muito boa. Comi depois.
— A batata-doce?
— Também, mas na hora, mesmo com muita vontade, não comi a batata-doce.
— Por?
— Gases, Tomás, gases! Eu deixei de comer batata-doce para encontrar o rapaz e, não foi ruim, foi um encontro sem graça e ponto final.
— Preferia ter ficado em casa se peidando?
— Basicamente. E foi igual nos dates seguintes. O cara não era gente ruim, só era chato mesmo.
— Olha quem tá aqui, o meu vizinho favoritooo!!! FAaaalaaa meu bruuuxo! WWAZAAUUPPP hahahah ahaha. — Ulisses grita e Tomás vira lentamente o rosto para o lado. Os dois amigos estavam na entrada principal do Mercado Público enquanto Ulisses vinha de trás, do Largo Glênio Peres, que dá acesso ao Mercado Público.
— Não, não sou eu não. Tchau. — Disse Tomás após virar o rosto.
— Que isso, Tomás. Estamos indo para o mesmo caminho? É Jah e o destino sorrindo para andarmos juntos. Oi, Vê, como tá? — Ulisses olha vidrado para a guria, com pupila arregalada e cheiro de mato mofado e queimado.
— Não me chame de Vê.
— Claaaro, hhhaha, sim. Vamos passear juntos pelo jeito.
O Mercado Público de Porto Alegre é uma grande estrutura cúbica que possui lojas em seus muros exteriores e, internamente, bancas espalhadas por quatro quadrantes, separadas em um cruzeiro aberto. Entre as lojas dos muros e as bancas, também há corredores. Cabe ainda apontar que o Mercado Público possui dois andares, sendo o segundo compost por lojas nos muros e um mezanino com passarelas.
— Nós estamos indo para o outro lado que não é o teu. — Diz Tomás enquanto ele e Verônica andam ligeiramente apressados, mas de fato Ulisses vai pelo mesmo caminho, em direção ao centro do Mercado Público.
— Não é o que parece, ahaha. — Ao passar pelo centro do Mercado, cada um dos três joga uma moeda e uma bala. Depois, dobram à esquerda e, então, à direita, onde encontram-se as peixarias.
— Ele por acaso…? — Verônica pergunta baixinho para Tomás, querendo saber se Ulisses saiu da Superfície já. A caminhada deles ia em direção a uma porta velha no final do corredor.
— Esperamos que não!
— Eu por acaso o quê? Ahahaha — A porta se abre assim que os três se aproximam. O grupo entra rapidamente e a porta fecha.
— Vocês estão aqui por motivos diferentes. — Diz uma moça de terno, negra, ruiva, de 1,70 e voz grave. Usa luvas brancas, de tecido leve, e uma gravata com enfeite de flor. O material e o recorte da roupa são fundamentais nesse calor de Forno Alegre.
— Cíntia, e o que tu tá fazendo aqui? — Tomás cerra os olhos desconfiado.
— Garantindo que ninguém se perca. — Ela pega um pacote de dentro do terno e entrega para Ulisses. — Para ti, é isso. Depois faz Pix para o número no papel dentro desse pacote, ou eu mesma vou cobrar.
— Hahaha, claro, moça. Fazendo agora mesmo, oh. Tomás, você vai pra república agora? Vamos juntos?
— Claro, vai na frente e em seguida eu vou.
— Ok! — Ulisses abre a porta, sai, e a porta se fecha sozinha. — Ah, é, na verdade, na verdade eu vou para… — Ulisses abre a porta novamente, mas não há ninguém mais lá. — Nossa, bateu forte mesmo, to bem devagar.
Ok, nos vemos depois, eu acho
— Não entendi nada, mas foda-se. — Ulisses dá de ombros, se vira e sai… — Hmm, agora, antes de ir lá pra casa do meu amigão, preciso comprar uma bebidinha para levar. Só pra garganta não ficar seca.
— E o licor que o senhor precisa é o de manga. — Diz a atendente da pequena taverna de bebidas assim que Ulisses chega perto. O cheiro de mato exalado na sua presença consegue ser forte e chamativo mesmo no meio de todo o fedor de peixe e todo o perfume dos temperos do Mercado Público. — O mirceno da manga interage com a substância de... plantas medicinais e tornam seus efeitos mais fortes.
— Entendi, maconha faz manga bater mais forte. E funciona com licor também? — Ulisses aponta para uma garrafa na mão da moça.
— Claro, senhor, claro. Não há dúvidas sobre isso. Se quiser, ainda leve essa cachaça de manga. — Diz a moça, mostrando uma garrafa de 1 litro.
— Quanto dá tudo?
— 50 a cachaça, 70 o licor. É importado.
— Vou querer só a aguardente. — Ulisses coloca a nota no balcão. Pega a garrafa de aguardente e a de licor. Esta última, de forma discreta, e ainda pega um martelinho da degustação. A bebida desce quente.
Se descer mais, chega no inferno
— Se descer mais, chega no inferno. — Responde Verônica, quando Tomás pergunta se tem mais andares no subterrâneo do que aquele em que chegaram. Estão em um elevador.
— Pelo calor, podemos dizer que inferno é onde estávamos. Aqui tem ar condicionado pelo menos. — Diz Cíntia liderando os dois na saída do elevador e, então, descendo a escada de uma arquibancada.
— Está cheio hoje. Nunca vi uma luta com tanta plateia. — Diz Verônica.
— Bom, a COSFAGRO não costuma lançar lutadores sem saber exatamente o que está fazendo. Não é à toa que, mesmo tendo parte dos melhores cientistas do país, estão a recém no terceiro Proto-Humano. Eles tomam muito cuidado para garantir que saiam apenas lutadores habilidosos e tudo seja seguro para os mesmos. — Responde Cíntia.
— É um cuidado muito diferente de outras facções pelo jeito. São famílias mesmo. — Comenta Verônica.
— Além disso, eles recebem bons salários, têm plano de saúde, alimentação saudável garantida por serem os próprios produtores, além de diversos outros benefícios, é uma facção bem diferente. — Continua Cíntia.
Os três se olham e baixam a cabeça frustrados. — É, bem diferente mesmo — Comenta Verônica.
— ELE PASSA DE MÃO EM MÃO, É SEU APRESENTADOR MAIS ESCORREGADIO, CHEIROSO E LINDOOOOOOSOO! AAAQUII ESTOU, SA-BO-NE-TE! — A arquibancada estava ao redor de uma arena em gaiola, quadrada e, no meio, um homem gritava. Dessa vez, não era Bombcorn, mas sim Sabonete. Um rapaz cheiroso que soltava bolhas pelas mãos.
— A Carpe&Die é dona do território, mas não consegue ter mãos para cuidar diretamente de todos os eventos. Hoje, só estão oferecendo a casa, a música e a limpeza. Aqui embaixo não tem necessidade de Homens de Preto, mesmo sendo durante o dia. A gravação, a transmissão e o Mestre de Cerimônias são da GoWeb New Age. — Explica Cíntia.
— E a segurança? — Perguntou Verônica.
— Roseiral.
— Mas não vi ning-... ok, entendi. Não sabia que estávamos a trabalho hoje.
— Como se tivéssemos folga.
— E, DO MEU LADO DIREITO, EM SUA ESTREIA, REPRESENTANDO A COSFAGRO, QUE TROUXE UNS LANCHINHOS PARA NOSSOS ESPECTADORES PRESENCIAIS: EEEEEEEEEVAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA, CONHECIDA TAMBÉM COMO CAMOATIIIM. ELA, QUE É BIÓLOGA, ENGENHEIRA GENÉTICA E APICULTORA. COMO PODE ISSO?
— O melhor mel está sempre atrás do pior veneno. Hoje eu to doce, mas não sou pro teu bico. — A moça de sardas, olhos castanhos e cabelo com base V bem pontudo dá um pequeno sorriso ao adversário. Ela usa um jaleco macacão amarelo queimado, um chapéu de palha e sapatos de bico fino.
— Há, há, há. Veneno? De tudo que já comi nos lugares que trabalhei, meu corpo aguenta qualquer coisa. Tu quem não vai nem ver quando te acertar a pica dura, ahaahah — Um homem de barba ralada, bermuda, tênis, camiseta branca, boné e avental dá uns passos à frente. Em uma mão, ele segura um facão, em outra, uma espátual.
— E COM OS COMENTÁRIOS UM TANTO DESNECESSÁRIOS, PAAAAAAAATA QUEIMAAAADA IV. REPRESENTANDO A AGITO LANCHES E PATROCINADO PELO SERVIÇO DE APOIO AO PEQUENO SUBMUNDO DO RIO GRANDE DO SUL, DO SISTEMA S, E QUE TAMBÉM PATROCINA A LUTA DE HOJE! — Diz Sabonete, enquanto a banda No, Sir! começava seus riffs de guitarra.
Esmurra, embola e joga fogo
— Cara, assim, só pega uma poltrona e fica de boa. — Com a mão enfaixada, o rapaz careca conhecido como Bigode aponta para Ulisses onde ele poderia sentar. — Daqui a pouco tá chegando a Maju e depois vou pedir uma pizza.
— Pode crer. Eu trouxe uma bebida, a erva, a seda.
— Que seda, vamo de vape, depois dá pra pegar a erva vaporizada e fazer negrinho, fazer brisadeiro. Tem umas parada na mesa aí também, tu pode pegá o que quiser. Tem refri também.
— Mano, e tu acha que não vai dar um esse cheirão no condomínio?
— O que mais tem é ladaia aqui no Jardim Américo.
— Boto fé. Pronto, só botar no vape. Cadê?
— Aqui, mas já vamo começá? A mina tá vindo ainda.
— Tem bastante, ué, até chegar, até ir embora.
— Há, tá certo. — Bigode coloca a erva no vape e se senta na poltrona. — Mano, por que tuas veias tão estranhas? Parecem se mexer de vez em quando.
— Sei lá. Peguei uma coisinha nova dum amigo meu, usei e, me dá uns troço esquisito.
— O Tomás, aquele?
— É.
— Não gosto. Moh vibe agressiva o rapaz. Meio energia ruim.
— Deixa, o cara é firmeza. Perdeu pai cedo na frente dele, não sei da mãe, mas é firmeza. É pedir e ele tá ali pra ti.
— Tem certeza?
— Ah, acho que sim. — Ulisses dá uma baforada. — Bah, agora tu veio. Esse troço é bom mesmo.
— Falei. Falei. Nunca tinha provado, mas a Ana sempre sabe e indicou isso daí. Que teto foi aquele com o cachorro?
— O cachorro? O Pablo, mano?
— Pablo?
— Sim, mano, eu vi esse cachorro de novo outro dia. O nome dele é Pablo, mano, vi o dono falar, mas ele mesmo já tinha me dito ment — — men — — men — — mental — — mentalmente
— Travou legal aí.
— Tá batendo forte.
— Tá, termina de contar do cachorro. — Uma voz feminina vindo de outra poltrona falou com Ulisses.
— Ué, quem é tu? — Perguntou Ulisses.
— Como assim, mano? kk Já tô aqui há meia hora, pelo menos. — Respondeu a Maju.
— Bah, tá forte mesmo, achei que tu tinha acabado de chegar. — Falou Bigode.
— Passa o vape pra cá então que eu termino. — Ulisses bota no prato à sua frente a fatia de pizza que está na sua mão, pega o vape de Maju e dá mais uma baforada. — Cara, coloca a música indiana aquela e a tua luminária de estrela.
— Tá, rapidinho. — Bigode arma o cenário. Músicas indianas, luz apagada e uma luminária de estrelas girando. Tudo isso em um minuto, ou uma hora.
— Então, tinha o cachorro, o Pablo. Ele quem falou o próprio nome, depois vi chamarem ele assim, confirmou. Cara, moh engraçado. Tava na feira da Epatur outro dia roubando tomate e as bolitas da gurizada, correndo atrás de bike.
— Acho que sei, um preto, com mancha branca? Orelha pela metade, manco? — Perguntou Maju.
— É. E, cara, grande, alto, um e trinta. — Tá trovando. — Duvida Bigode. — Mano, pior que parece um cavalo o bicho.
— Confirma Maju.
— Aí, botaram ele pra trabalhar e cuidar o portão da entrada da igreja outro dia. E aí tinha um poodle.
— Poodle?
— Poodle.
Pata Queimada V
— Vem cá, mosca do inferno, que vou te queimar! — Agora, Pata Queimada IV não era mais um homem estranho. Sua pele tinha virado pelo raso, seu rosto virou um focinho, e um longo rabo nojento saía pelas costas. Um homem rato completo. O facão e a espátula estavam vermelhos e incandescentes. Agora, Pata Queimada IV era um rato estranho.
— Como pode? Eu passei anos desenvolvendo esse veneno. — Sobrevoando a arena, uma mulher vespa atirava ferrões dos antebraços, de onde mais e mais ferrões surgiam. A maioria era desviada por Pata Queimada IV, mas mesmos os que pegavam, não pareciam surtir efeito.
— Essa Eva claramente não está dominando a situação, o que tenho a aprender com ela? — Pergunta Tomás.
— Olha, os poderes dela possuem algo em comum com os teus. Vieram de um XPTO avançado, mas no caso dela, desenvolvido minuciosamente para que obtivesse os poderes desejados ao se transformar. Ela tem controle total sobre as próprias habilidades, mesmo que esteja com dificuldades na luta. — Respondeu Verônica.
— Exatamente. Ela também está pagando por subestimar o oponente. Pata Queimada IV é um ser nojento, é verdade, mas isso não faz dele um lutador fraco. Ele está até mesmo invicto. Já teve duas batalhas e venceu as duas, esta é a última para se classificar. — Complementou Cíntia.
— Atira com a bunda também, otária. — Grita Pata Queimada IV para Camoatim, que além dos ferrões nos antebraços, tinha um terceiro, maior, localizado na região traseira.
— BLEH, BLEH! — Eva cospe uma substância pegajosa e grossa, uma mistura de mel com cera, nas mãos de Pata Queimada IV, e consegue acertar a espátula, desarmando o rato parcialmente.
— AHAHAHA! Esse que é teu plano? Vamos ver até onde isso vai, então. — Pata Queimada IV ri vigorosamente.
— Bom, se ela se livrar das armas dele, acabou. — Comenta Tomás.
— BLEH, BLEH, BLEH! — Eva cospe outras e consegue facilmente desarmar seu adversário. Em seguida, Camoatim dá um rasante com o braço estendido para perfurar Pata Queimada IV.
— Ahahaha! — Pata Queimada IV consegue ser mais ágil do que Camoatim e segura seu braço. — Meu nome não é espátula ou facão queimado. É PATA Queimada. — Sua mão começa a gerar um calor intenso, queimando Camoatim.
— AAAAH! — Ela grita de dor e tenta acertar com a outra mão, sendo interrompida no ar novamente. — Caceetee!
— Vou fazer um melado hoj… — UGH! — Pata Queimada IV toma uma ferroada no meio das pernas pelo ferrão traseiro de Camoatim e começa a escorrer sangue da região.
— Também, parou pra fazer piada bosta. — Resmunga Tomás.
O rato solta os braços da vespa e a segura pela cintura, transformando toda dor que sente em calor para queimá-la.
— PORRA, PORRA, PORRA. — Eva consegue acertar um pisão em Pata Queimada IV e jogá-lo para trás. Os dois caem de costas no chão.
— Acha que isso vai me parar? Não serviu nem para me deixar eunuco. — Pata Queimada se levanta e mostra que o jorro de sangue vem, na verdade, da virilha. Ele esquenta sua mão e queima os próprios machucados para cicatrizar.
— Tu estás louco? Vencendo ou perdendo, cauterizar isso daí assim só vai infeccionar. — Grita Eva incrédula enquanto se levanta. — Bom, não dá para esperar inteligência de homem vindo de um rato.
— Se os poderes dela vêm de XPTO Avançado, os dele vêm de onde? — Pergunta Tomás.
— Boa pergunta, mas isso não importa. O que importa é o que tu pode aprender com eles. Sobre o que fazer para não ficar com os braços queimados ou não ter teu estômago perfurado. — Responde Verônica.
— Ah, mas a lição está clara. — Diz Tomás, revirando os olhos. — Seja melhor, lute melhor, bata mais forte, bata mais rápido.
— Vamos ver o que acontece quando fica sem Pata, apenas o Queimada IV. — Eva, que ficou de pé antes, sai correndo mancando, agarra um dos braços do adversário e puxa, enquanto empurra sua cabeça para o outro lado. A Camoatim abre bem a mandíbula de vespa e morde o rato, arrancando seu braço.
— CARALHO! — Pata Queimada IV intensifica ainda mais o calor na mão que sobrou e pega Camoatim pelo pescoço.
— Ela foi meio lenta, na real. — Comenta Tomás.
— AAH, foi! — Camoatim desfere um gancho de direita no queixo de Pata Queimada, mas, por ter um ferrão, perfurou o crânio do rato.
— EEEEEEEEEEEEEE TEEEEEEEEMOS UMA VENCEDORA! CAMOOOATIIM, DA COSFAGRO-RS. — Grita sabonete, enquanto Camoatim cai sentada, ainda na forma de vespa.
— Pega, pega, pega, pega, pega, pega… — os Urubus, homens com roupa e máscara de médicos da Renascença, vêm correndo recolher o corpo de Pata Queimada IV, colocam em uma maca e saem dali, levando o homem rato.
— Depois dessa vitória, ela deve ficar um bom tempo se recuperando até a próxima luta. — Aponta Tomás.
— A COSFAGRO tem os seus curandeiros que agilizam o processo, mas de fato não deve ser da noite para o dia. — Responde Cíntia. — O importante é: aprendeu a lição?
— Gente morta não fala merda?
— Sério mesmo que foi isso? Cara, os dois lutadores ficaram o tempo todo completamente na ofensiva. Mal tentaram se esquivar ou bloquear ataques, foram arrogantes um com o outro, e se subestimaram. No final das contas, mesmo ganhando a luta, Camoatim pode ficar com sequelas permanentes aqui e não é por falta de força ou agilidade. É por arrogância. — Comenta Cíntia
— Desviar eu sei. Puta discurso chato. Cadê a comida que não passaram para a gente?
Boto fé
— Mano, como teu cabelo cresceu rápido do nada. — Bigode aponta para fios que se espalhavam pelo sofá, vindo de Ulisses. — Acho que não é cabelo, até, é pelo, não tá vindo da tua cabeça. Que doido. É fetiche da tua mulher? — Comenta Bigode.
— Bah, a droga tá passando pra mim, vou precisar de mais. Não to conseguindo te acompanhar, Bigode. — Fala Maju, em seguida olhando para Ulisses. — Mulher? Tu é casado?
— Sou, na Natureza, não fizemos pela igreja nem cartório, uma árvore celebrou.
— Ahahaha tá brincando? — Pergunta a guria.
— Verdade, não ri. A melhor benção é a da Natureza. Ela até nos presenteou com frutas aquele dia.
— E como ela é?
— Uma bergamoteira.
— Tua mulher?
— Não, a Bianca é gata. Olho puxado, meio índia, meio italiana. Cabelo liso. Gentil, carinhosa, meio doidinha, e boa pinta quando entende as coisas.
— E quando não entende?
— Pé no saco, na verdade.
— Cara, acho que os pelos tão se mexendo e crescendo mais. — Bigode vê fios esparramados pelo chão.
— Tá viajando, viaja direito, ahahaha. Para com essa trip doida. — Diz Maju para Bigode. — O que a Bianca faz da vida?
— Ela estuda biologia, licenciatura na PUC, mas é mais voltada pra pesquisa. Ela tá estudando uns bicho estranhos, porque a vó dela acredita que viu um bicho-pau gigante. O inseto aquele. Daí, foi internada pelo vô dela no São Pedro. Fez certo, sabe?
— Mas tu não acredita nessas parada de natureza e pá?
— Ah, não daquela mulher, e a Bianca herdou umas doidice assim, também. Tanto que ninguém a leva a sério na Universidade. Sabe, to tentando fazer melhor que o vô dela e apoiar. Se ela acha que pode encontrar o bicho-pau gigante, eu apoio, mesmo não sabendo que dá.
— Que doida, cara. Mulher assim é complicada. Por que tá com ela? — Pergunta Bigode, que logo volta a observar os fios balançando com o resto do cenário.
— Ela costumava me apoiar, sabe? Na faculdade de teatro, que to largando... ela gosta da minha música, dos meus desenhos. Só ela e, depois, o pessoal da república, me apoiou na arte, entende? Aí, a gente brigou agora.
— O que ela fez? — Perguntou Maju.
— Ah, mano… Eu disse que ia largar a faculdade para começar logo minha companhia de teatro… aqueles professores sabem de nada. Muito atrasados, nada que digo eles consideram. Sempre se acham espertinhos. Aí quero viver o teatro de verdade, da rua. Eu, alunos e a arte.
— Po, mas se a pinta é tua mulher, te ama, tem que te apoiar. Mas vai ver o problema não é tu, nem ela.
— Como assim?
— Ah, tu sabe como a cidade tá atrasada, né. Ninguém apoia o artista, ninguém apoia a arte, ainda mais alguém mais vanguardista e pá. Vai ver ela não duvida de ti, duvida de que vão te entender e tu te frustre, tá ligado? — Diz Maju.
— Tem razão, vou falar com ela.
— Vocês tão num papo muito sério. Bola mais um.
Bigode pega o litrão de cerveja, serve os três copos vazios e entrega dois para seus companheiros. Em seguida, Maju destaca três comprimidos de uma cartela e distribui também. Todos tomam e relaxam nos seus assentos enquanto Ulisses passa um fino que acabou de bolar.
Santa Casa
Tomás estava sentado à mesa com Verônica em um antigo café e lancheria de Porto Alegre chamado Haiti. Ao lado esquerdo da guria está sua mochila, sobre a cadeira. Verônica mexe no celular, lendo de forma concentrada as instruções do trabalho.
— Sabe, Verônica, eu estava pensando em uma coisa. Como a Camoatim tem ferrões saindo do braço? Os camoatins e as vespas no geral não tem isso não.
— Ah, a Cosfagro-RS tem muito conhecimento em biogenética e conseguiram manipular o XPTO Avançado para dar os poderes como queriam. Falando nisso, Tomás, tu sabe como essa merda aí funciona? Sei que tu não teve muita escolha sobre usar ou não, mas imagino que a Srta. Rosa te explicou o básico.
— Ela falou algo sobre cogumelos espaciais. Não prestei muita atenção.
— Não prestou mesmo. Não é bem isso. Saca só, sabe que uma vez a Nasa lançou uns foguetes em Rio Grande, né?
— Meu pai era de lá. Ele disse que viu vários OVNIs esse dia.
— Viagem dele, não tinha nenhum, mas tinha outra coisa interessante. Quando um dos foguetes voltou, tinha um fungo metálico acoplado nas placas externas. Ele tinha absorvido o metal para o próprio metabolismo.
— Isso é muito doido.
— De fato. Chamaram de Eclipsis cassinus a espécie. E descobriram que ela tinha a capacidade de se alimentar de qualquer coisa e absorver para própria estrutura a nível molecular.
— Ok, e como isso virou uma fonte de super poderes?
— Agora vamos a um pouco de biologia. Pega esta lógica: as mitocôndrias eram seres vivos à parte, mas foram absorvidas por algum ser unicelular há muito tempo na árvore taxonômica e que agora fazem parte das células de animais, plantas etc. Tá acompanhando?
— Acho que sim, continua.
— O XPTO e, principalmente, o XPTO Avançado, segue essa lógica. A gente alimenta o fungo com o tipo de propriedades que queremos dar para a pessoa que usará, mistura com um composto de suplementos para aumentar capacidades físicas, e uma substância que permitem o fungo ser absorvido pelo metabolismo e ser parte de ti.
— Peraí, então eu to com um parasita, tipo a formiga aquela e o fungo no cérebro?
— Nah, pode ficar bem tranquilo.O fungo morre nesse processo, teu corpo quem absorve e toma tudo para si. Inclusive, aquelas linhas que aparecem no teu corpo, brilhando, podem ser as hifas. Só é louco como essa criatura conseguiu comer eletricidade. Mas isso é discussão para outro dia, temos o que fazer agora.
— Qual o trabalho?
— Roubar túmulos.
— Tipo Angelina Jolie?
— Menos aventuresco. Vamos ao cemitério, desenterramos uns caixões de corpos de recém-morridos e pegamos algumas partes.
— Parece trabalhoso e nojento até.
— Exatamente por isso que tu vem junto. — Verônica levanta os olhos para Tomás. — Vamos bota esses músculos novos para funcionar. — Ela guarda o celular no bolso, pega a mochila e os dois saem em direção ao caixa.
— Pode ser qualquer um?
— Seria dois cafés e uma torrada? — Pergunta a moça do caixa.
— Isso, no crédito. — Verônica, então, passa o cartão. Depois, olha para Tomás. — Não… Eu tenho três nomes aqui. — Uma montanhista, um drogadito e um açougueiro. — Os dois saem pela escuridão da noite.
— Completamente aleatórios…
— Não tanto quanto parece. Na verdade, a Luciferina pediu por três partes de defuntos que morreram por congelamento. Quanto mais fresco, melhor, e esses foram os mais recentes a morrerem dessa forma.
— Luciferina não é a Sabrina, a moça daquele dia?
— Exatamente. Quase sempre que ela pede uma pelúcia, ela também faz um pedido desses.
— Por que não estou surpreso de que esses proto-humanos esquisitos tenham hobbies e fetiches esquisitos?
— Boa pergunta. Quais os teus, Tomás?
— Andar contigo é um hobby esquisito. Olha os rolês aleatórios em que tu me leva.
— Há, agora que tu virou proto-humano, só vai piorar. Falando em rolê aleatório, lembra aquela vez em que a gente pegou uma muda de candombá lá no Museu da PUC?
— Candomblé?
— Candombá. A flor lá do cerrado que pega fogo sozinha. Aquela muda era especial, porque gerava mais calor e chamas do que a variação comum da planta. A COSFRAGO que encomendou aquele trabalho para nós, mas parece que foi roubada. Talvez, a gente seja chamado para recuperar e… chegamos. — Verônica aponta para o outro lado da rua, onde um muro separa a calçada do cemitério.
Os dois olham ao redor e atravessam a rua. Observam que há alguns indivíduos vestidos de preto acendendo velas no portão do cemitério. Os grupos concordam em se ignorar e a dupla segue para mais adiante. Rapidamente, olham para os lados, arremessam a mochila por cima do muro, se dependuram, se puxam e pulam para o outro lado.
Verônica retira seu celular do bolso, mexe um pouco e olha para as câmeras. Uns dois segundos depois, as luzes vermelhas piscantes se apagam. Então, a menina abre sua mochila e pega dois estojos pretos. Um é retangular e o outro em formado de meia-lua. A menina entrega os objetos para Tomás.
Tomás abre o estojo retangular, retira um cilindro de metal lá de dentro e entrega o estojo vazio para Verônica. Em seguida, abre o outro estojo, retira a cabeça de uma pá e entrega este outro estojo vazio. Ele sacode o cilindro para a frente, que projeta outros cilindros menores, todos presos, formando um cabo. Tomás encaixa as peças, sua pá está pronta, e olha para Verônica para que aponte o caminho.
Verônica pega seu celular e abre uma tela onde possui um mapa bem simples do cemitério, sem muita precisão. A menina guarda o celular e começa a caminhar. Ambos olham ao redor, pouco falam, enquanto a brisa e o cheiro de terra passam. Não há mais ninguém, nem ao menos um visitante ou vigia.
Os dois passam por diferentes tipos de lápides e decorações. Anjos, santos, leões e outras figuras de mármore se projetam por cima das flores e túmulos. Muitas dessas estátuas talvez fossem admiráveis quando recém finalizadas. Hoje, no entanto, sujas e desgastadas, não parecem lamentar a perda dos mortos, mas sim projetar a angústia dos vivos.
— Chegamos, acho que é este aqui. Tem terra na volta, foi enterrado recentemente. — Diz Verônica, enquanto veste uma máscara médica e um par de luvas.
— Qual é esse? — Pergunta Tomás, enquanto pega com Verônica uma máscara e um par de luvas.
— Dra. Tamires, médica, naturalista e montanhista. Morreu escalando um morro em São José dos Ausentes. Pegou chuva imprevista, se acidentou e o frio inesperado de uma noite de verão também pegou. Foi encontrada dois ou três dias depois.
— Hoje em dia ainda dá para morrer se perdendo em trilha? Num lugar não tão isolado assim? — Tomás começa a escavar.
— Acidentes podem acontecer em qualquer lugar. Parece que ela não levou eletrônicos também. Queria se desconectar de tudo, acabou conseguindo.
— Falando em desconexão, a equipe de segurança daqui está bem desconectada, hein.
— Pode ser troca de turno, sei lá. Importante é a gente fazer nosso trabalho rápido de qualquer forma.
— De fato. — E os dois ficam em silêncio profundo.
— Hum… — Verônica murmura para si mesma ao ouvir a voz das pessoas do portão. — Que eco, chega até aqui.
Depois de alguns minutos, Tomás finalmente chega no caixão e abre a metade de baixo da tampa. Verônica joga uma serra e Tomás, fazendo caretas, começa a cortar o pé da defunta. Essa não é a primeira vez que Tomás lida com mortos, ainda mais quando ele mesmo já foi causa de alguns. Lidar com corpos frios, no entanto, sempre será diferente de “casualidades” decorrentes de sua atuação como lutador ou protegendo as meninas do Roseiral. De qualquer forma, trabalho é trabalho.
Verônica abre uma caixa térmica e Tomás joga o pé serrado lá dentro. Em seguida, fecha o caixão e segura na mão de Verônica, que o puxa para cima. Seus novos poderes talvez permitissem um pulo mais alto, mas melhor não arriscar fazer muito fiasco neste momento. A guria fecha e lacra a caixa.
— A próxima figura é Danilo Grah. Um filho de dono de posto que torrou toda a grana do pai com pó e outras coisas até perderem tudo. Foi expulso de casa e morreu durante uma overdose. Mesma frente fria dessa doutora, pelo jeito. Semana passada, isso tudo, Sabrina está com sorte.
— Faz sentido. Uma vez o Ulisses estava em uma overdose e teve uma enorme baixa de temperatura. Ah, que da ora. — Tomás em seguida aponta para um túmulo do lado do que escavou. Na frente da lápide apontada, há um buquê de flores de mármore de cores diferentes. Branco, preto, verde e rosa.
— Verdade. — Verônica tira uma foto com o celular. — Agora, vamos por aqui. — Ela segue caminhada com Tomás indo logo atrás.
— Tu não tem ideia alguma mesmo de por que ela usa algo assim?
— Curiosidade, eu tenho, mas se no submundo já não é bom perguntar sobre tudo, no meu trabalho é mais complicado ainda. Queria muito saber, mas a Sabrina sempre desconversa.
— Pelúcias e defuntos.
— É, ela faria sucesso no Tumblr.
Um barulho oco e, talvez, um pó branco voando com a brisa chamam a atenção de Tomás, que rapidamente olha para o lado. O anjo que aponta a espada em 85º graus e tem o rosto voltado ligeiramente para a direita parece encará-lo. Ele murmura.
— Essas estátuas parecem vivas. Posso jurar que esse aí estava com a espada apontada mais para cima.
— Neste escuro e neste clima, é fácil de se confundir. — Verônica dá mais alguns passos e aponta para um túmulo. — Próximo.
— Oh, já ouviu falar da roda dos enjeitados? — Pergunta Tomás, enquanto enfia a pá na terra.
— É algum reality show?
— Seria menos triste se fosse o caso. Era uma parada na Santa Casa. Lá no hospital, não aqui no cemitério. Era um mecanismo giratório onde as pessoas colocavam crianças para abandonar e serem adotadas pela igreja e instituições de caridade.
— Acho que eu teria sido colocada em uma se nascesse nessa época.
— Teus pais terem te abandonado num puteiro não faz sentido para mim até hoje, Verônica.
— A Srta. Rosa sempre nega que conhecia eles, mas… Tenho achado que ela mente, isso sim.
— Para te proteger, talvez?
— Nunca tem como saber o que tem naquela cabeça. Proteger, interesse próprio, vai saber.
— Hmm…
— Que foi?
— Acho que ouvi algo, vamos tentar focar em resolver este rápido.
— Eu já resolvi. — Tomás sacode um pé no ar. Verônica abre a caixa e ele joga o pé lá dentro. — O caixão não estava tão fundo e tão pouco bem lacrado. Devem ter dado um foda-se. Aí, os pés cheios de feridas também. Bizarro.
— Nosso último produto foi vítima de assassinato. — Diz Verônica ajudando Tomás a sai do buraco escavado.
— O açougueiro?
— Isso. Congelado no frigorífico. Ainda estão procurando o assassino, mas o chefe e a ex-namorada são os principais suspeitos.
— Muito doido isso. Ah, e vai dizer que morreu na mesma frente fria da semana passada?
— Não, esse morreu ontem. Quanto mais fresco, melhor, e a Sabrina paga mais.
— Tu sempre faz esse tipo de busca para ela?
— Se fizesse, teria te chamado antes, meu profissional escavador. Não sou a única marmota do submundo, muito menos do Roseiral, apenas a melhor. Antes eu terceirizava essa parte, mas contigo aqui, vai ser mais rápido e mais lucrativo.
— Lucrativo diz não me pagar.
— Amigos são para isso!
Os dois continuam a caminhada em busca do último túmulo. No caminho, notam que as luzes das câmeras ligam novamente. Verônica usa o celular para desativar os equipamentos e voltam a caminhar. Aproveita para dar uma olhada na foto das flores de mármore, mas está um pouco desfocada.
Ao passar na frente de uma estátua de leão, Verônica acha curioso como seus dentes parecem afiados e a criatura tem um olhar tão vivo, mesmo tendo mais de um século. O mármore envelhecido, no entanto, denuncia a sua antiguidade.
— Nos perdemos?
— Não, não, já vamos chegar lá. Esse mapa é meio estranho.
— Foi tu quem fez ele.
— Não sou cartógrafa, nem designer. Fiz o que deu com base no que peguei de informações.
— Sabe, espero conseguir passar logo por esse período de pré-ingresso no Circuito de Proto-Humanos. Posso demorar para dominar essas habilidades, mas vou conseguir e vai render uma boa grana.
— Dinheiro e socar pessoas. Essas são as tuas únicas motivações, Tomás? Tenta sonhar com algo, ter objetivos melhores. Fazer amigos, para variar.
— Eu tenho amigos.
— Não, eu sei que tu não considera teus vizinhos amigos. Fora eu, tem ninguém.
— Tem o Roseiral…
— Também, não. Tu tem proteção mútua por ser teu trabalho e por sermos da mesma facção. Tomás, nem com as putas daquele lugar que deram por e de graça para ti tu conseguiu criar vínculos.
— Eu não preciso disso, Verônica.
— Todo mundo precisa, Tomás, e, com o passar do tempo, amizades ficam mais difíceis de conseguir. Vamos desenterrar um amiguinho para ti, encontramos o túmulo certo.
Desta vez, sem muito assuntos, Tomás vai cavando. Verônica olha ao redor, mas após ter a impressão de algo se mexendo, prefere ignorar e pegar o celular para ficar scrollando na subnet.
Verônica fica completamente entretida com os vídeos de gatinhos e, distraidamente, senta no túmulo ao lado. O algoritmo vai entregando mais bichinhos em seguida. Animais supostamente extintos, um filhote de mamute encontrado no Pólo Norte, e algumas criaturas esquisitas que ninguém sabe a origem, mas são extremamente fofas.
Outro barulho se faz e Verônica sente um calafrio na espinha. Ela insiste em tentar ignorar. As brisas frescas e os cheiros estranhos, no entanto, não permitem. O silêncio ensurdecedor é interrompido apenas pelas folhas das árvores, possíveis ratos pelos cantos, e ruídos não identificáveis. Aí que ela percebe a falta de um som: o das escavadas.
Verônica levanta os olhos, guarda o celular no bolso estica um pouco a cabeça e, com o coração batendo forte, começa a murmurar o nome do amigo quando uma mão gelada é colocada no seu ombro ao mesmo tempo em que uma voz estridente sussurra “Não senta em mim!”
— AH! — Verônica dá um salto e fica pálida enquanto se vira e se depara com Tomás. — FILHO DA PUTA.
— AHAHAHAHAHAHAHAHA. Muito bom, muito bom.
— Tu pegou a mão do defunto só para isso? — Pergunta Verônica, extremamente irritada, enquanto coleta a parte do morto e coloca na última caixa.
— Não, porra. O cara não tinha pés e um pedaço da perna não ia dar certo, eu acho. Sei lá como funciona isso. Daí peguei a mão. Tapei a cara dele com terra enquanto isso, ficar encarando foi estranho.
— Essa vai ter volta. — Diz Verônica, guardando a caixa na mochila.
— Tinha que ver a tua cara! Foi mais ou menos assim… — Tomás começa a fazer careta, que é brutalmente interrompida por uma lápide de mármore arremessada em sua boca que o joga para longe junto com sangue e, se não fosse o XPTO, com alguns dentes arrancados também.
— TOMÁS! — Verônica olha para seu amigo, depois se vira para a origem daquela lápide arremessada, mas não consegue enxergar sua origem, porque uma segunda vem em sua direção.
A guria consegue se desviar rapidamente e acompanha a lápide arremessada como um frisbee bater na árvore ao seu lado e cair no chão. No mármore, está escrito seu nome e a data atual. Verônica fica catatônica.
— NÃO BAIXA A GUARDA! — Tomás, que já havia se levantado, puxa Verônica, tirando-a do caminho de outra lápide.
— Teus poderes seriam bem vindos agora, viu?
— Não sei se tu sabe, mas eletricidade não funciona com mármore. Além disso, tentei interceptar uma com um soco e… — Tomás mostra o punho machucado. Longe de uma fratura, mas definitivamente não daria certo com mais algumas.
— SE ABAIXA! — Verônica puxa Tomás para baixo e outra lápide passa por suas cabeças.
— Caralho, de onde está vindo?
— De todo lugar. Ainda não identifiquei a origem.
— Verônica…
— Que foi?
— Eu falei que aquele anjo tinha algo errado! — Tomás aponta para atrás de Verônica, de onde uma estátua de mármore de um anjo vem flutuando, brandando sua espada.
Tomás e Verônica se preparam para a chegada do golem angelical enquanto olham a volta para ver se não há mais lápides sendo arremessadas. Como não há, cada um se joga para um lado quando o anjo desfere seu golpe.
Verônica corre até sua mochila e começa a abrir desesperadamente, sem qualquer precisão, mas o anjo a alcança antes que ela saque qualquer objeto. Se uma espada de mármore pode ser afiada a ponto de cortar carne humana, Verônica não descobrirá desta vez, mas descobrirá que uma porrada de espada de mármore dói.
Um pouco antes da arma pegar em seu ombro, Tomás dá um encontrão no anjo de mármore, que é arremessado apenas alguns centímetros e até que cai no chão. Nesse momento, a espada acabou batendo com a folha no pescoço de Verônica, a deixando sem ar por alguns segundos e cuspindo sangue em seguida.
Tomás corre até a estátua e dá um pisão em sua espada, conseguindo quebrá-la, mas sentindo a dor em sua perna. O guri dá um pulo para trás enquanto o anjo se levanta rapidamente, com seus membros se mexendo contra qualquer lei de física ou regra de anatomia.
Ao se virar para correr, Tomás é pego pelo pescoço e levantado no ar. O anjo pega a espada quebrada para enfiar nas costas de Tomás, mas o braço que o segura é quebrado por uma bola de ferro eletrificada. A criatura olha para o lado, para a garota, virando a cabeça em 90 graus sem o pescoço acompanhar.
— CHUMBO TROCADO NÃO DÓI! — Verônica aponta para a bola e grita para Tomás, que está se levantando após cair no chão. — EU USEI A PENA PARA CARREGAR AQUELA BOLA E JOGAR. FAZ O MESMO COM TEUS PODERES!
— EU NÃO ACHO QUE DEU CERTO, NÃO!
O anjo abaixa o corpo, pega o braço caído e conecta novamente ao corpo, mas agora o braço está mais curto, pois os estilhaços continuam no chão. A criatura parte em direção a Verônica, que continua tentando catar algo para se defender.
Tomás corre novamente e tenta dar uma voadora na estátua. O lutador é o único a sentir o golpe dessa vez. Ele tenta desferir socos e chutes, mas o anjo apenas o ignora e continua se movendo. Rápido o suficiente para pegar quem correr, lento o suficiente para assustar quem ficar.
— SEU MERDA, TU SÓ SABE SOCAR E CHUTAR? Se tu acha que dar choque em mármore não vai dar certo, capoeira também não vai dar muito certo!
A estátua baixa a mão para pegar Verônica, que finalmente consegue sacar algo útil da mochila. A garota apara o braço de mármore com uma adaga de lâmina verde, feita de jadeíta. O anjo usa a outra mão para socar Verônica, que novamente apara o golpe.
No entanto, a cada aparada, Verônica vai cansando de usar a arma, bastante pesada, e que começa a soltar lascas junto com o mármore do anjo.
— Concentra tua raiva, teu medo, tudo o que está sentindo! — Grita Verônica.
— Dar choque em mármore não vai adiantar nada! Só golpes físi… — Tomás para um pouco. — Já sei!
— Se tu teve uma ideia, faz logo! AI…! — Um fragmento da pedra voa na pálpebra de Verônica, ferindo.
A guria começa a fraquejar e tomar alguns golpes. Manter o olho fechado dificultava para desviar dos golpes, ainda mais com o braço cansando. Tomás coloca o braço esquerdo à frente do corpo e puxa o direito para trás, enquanto fecha a mão em punho.
Tomás ajeita as pernas para correr a qualquer momento. Em vez de fechar os olhos e meditar sua ira, começa a alimentar mais e mais sua cólera. Uma energia vermelha começa a passar levemente pelo seu corpo.
— MAIS RÁPIDO! — Grita Verônica, desesperada.
Finalmente, Tomás começa a correr, com seu corpo envolto em uma energia vermelha. Seus passos deixam faíscas para trás. Uma esfera envolve seu punho direito e Tomás salta, com seus pés disparando plasma para o outro lado, propulsionando seu pulo. O soco acerta o meio da lombar do anjo e, carregado em eletricidade vermelha, superaquece o mármore, e a temperatura, seguida do impacto, estilhaça a estátua.
Os fragmentos são disparados para todos os lados, ferindo Verônica e Tomás. Uma névoa branca se levanta do anjo caído e segue em nuvem em direção diferente à da brisa que passa. Tomás, extremamente cansado, ajuda Verônica a se levantar.
— Cacete, não sei o que acabou de acontecer, mas já fizemos o que tínhamos que fazer aqui. — Diz Verônica, limpando o sangue do rosto com um lenço do bolso.
— Sim. Vamos pegar nossas coisas e ir embora. — Tomás dá uma batida na roupa. — Usar esses poderes me exauriu mais até mesmo do que trocar soco com esse anjo do inferno. — Tomás anda lentamente procurando pela pá.
— Ok, aqui tá a mochila. Cara, essa adaga era muito boa, não queria ter usado. Ia ficar na entrada da parte de armas da minha coleção. — Verônica vai arrumando a bagagem. — Viu a pá?
— Tá aqui. — Tomás, uns metros à frente, tenta levantar a pá no ar, mas o braço cai de exaustão.
— Eu sei, Tomás, que não sou uma lutadora, mas justamente por isso já vi muita coisa. Eu ando pelo submundo sem necessidade de confrontos diretos, então, confia em mim, eu sempre sei do que tô falando.
— Ah, é? E a senhora experiente já lutou contra um leão antes?
— Já fugi de uma onça, mas o que tem a ver?
Tomás, com pouca energia, corre em direção a Verônica, a joga para o lado e enfia a ponta da pá na boca de um leão de mármore que havia pulado na direção da garota. Ele joga o leão para o lado com a pá e uma disparada de energia, para a seguir cair no chão.
— Puta que pariu, não acaba nunca! — Verônica começa a tremer. Ela olha para Tomás caído, olha para o leão de mármore, olha para as próprias pernas e braços, machucados e tremendo.
— ROAR! — O leão solta um rugido forte, mas metálico, com ruídos. — ROARR, ROARR! — A cada roar, alguns sons de chiado, que apenas Verônica nota, pois Tomás está preocupado demais tentando se levantar. — ROA…— PFFT! Uma meleca, aparentemente marrom pela pouca luz que há, é jogada na boca do leão, interrompendo seu som enquanto gruda a mandíbula de mármore.
A estátua tenta balançar sua cabeça para retirar a gosma, mas seus movimentos são muito vagarosos, então não funciona muito bem. Ele levanta a pata esquerda para tentar raspar o focinho, mas logo tem que coloca-la no chão novamente para não cair quando outra meleca é jogada na pata direita, a prendendo no piso de pedra em que se apoia.
— Ruaahh! — Um rugido fraco, infantil, pode ser ouvido.
A fonte é um pequeno ursinho de pelúcia na frente do leão que parece testar sua bravura. Ele segura um pote de mel e arremessa algumas bolas a mais no felino de mármore. No entanto, nada acontece para além da estátua demonstrar ainda mais ferocidade. O urso dá um pulo, dá um tapa na boca do leão e quebra o focinho.
O leão consegue desprender a pata grudada e quase acerta o boneco, que é salvo por uma ave que pousa, o agarra e o leva para uma direção atrás de Verônica e Tomás, já de pé, e a dupla de amigos se vira.
Uma menina de pele pálida, vestido negro de renda com joias verdes que brilham como vaga-lumes, sombra e batom escuros, vem caminhando em sua direção. Seu braço direito tem uma corrente enrolada que na ponta há uma garra de aço em formato daquelas de máquinas de bichinho de pelúcia. A ave deixa o urso ao lado das sapatilhas pretas.
A sensação de encontrar Sabrina dessa forma é descrita no submundo como “Ver um demônio de gelo comendo algodão-doce. A vontade é de rir, mas o instinto de sobrevivência avisa que é melhor não fazer isso. A garota está há apenas um ano agindo como Proto-Humana, mas já possui uma reputação forte.
— Sabrina? — Pergunta Tomás.
— Sim e não. Com essa roupa, seu nome de Proto-Humana é…
— Luciferina. — Apesar do tempo estar apenas fresco, o tom de Luciferina parece invocar o inverno. Uma presença forte, mas, ao mesmo tempo, feminina e delicada. Sua voz é suave. — Mandei mensagem para pedir antecipação da entrega para hoje. Não tive resposta, vim te encontrar aqui.
— Ainda bem. Esse inútil aqui…
— Vai à merda! — Tomás interrompe Verônica.
— ...não sabe usar os próprios poderes. Já derrubamos um anjo e agora apareceu um leão. Inclusive, ele tá parado por quê? — Logo notam que a estátua do felino está com a cabeça baixa, regenerando aos poucos sua boca quebrada.
— Me digam o que vocês ainda conseguem fazer. — Luciferina fala de forma calma, sóbria, conseguindo murmurar e ao mesmo tempo ser ouvida pelos dois.
— Acho que consigo disparar mais um raio, mas ainda não dominei totalmente.
— Esta adaga ainda consegue dar mais uns golpes.
— Certo, vamos fazer o seguinte…
Enquanto Luciferina conta seu plano, a estátua de leão termina de se regenerar e parte em disparada em direção da garota gótica. Durante a corrida, Luciferina vai em sua direção. No momento que o leão salta para frente, Luciferina pula por cima e joga sua garra de aço, que segura a estátua com força.
Em seguida, Luciferina segura as correntes com as duas mãos e o arremessa em direção de Tomás. O guri empurra o ar com as mãos abertas, disparando eletricidade enquanto joga o leão em diagonal para cima e para frente, formando um arco na direção de Verônica.
— LEVANTA, E…
— CORTA! — Verônica pula e acerta o leão no ar com a sua adaga, que mais parte a estátua ao meio do que realmente a corta.
A criatura cai no chão em dois pedaços, sem soltar nenhum rugido de dor. Verônica dá um sorriso e levanta o polegar diagonalmente a Luciferina e a Tomás.
— VALEU, TIME! — grita Verônica.
Tomás, mantendo um olhar sério, mas, ao mesmo tempo, abrindo um pequeno sorriso, responde o sinal. Luciferina olha para os dois com olhar enigmático, sem qualquer emoção. Do outro lado, uma voz fraca e infantil dispara um “uhul”. Os dois amigos giram seus braços em direção ao ursinho de pelúcia que, com pose de herói, também levanta o polegar.
— Esse é o purserino, meu ursinho. A harpia é o harperino. Obedecem aos meus comandos, mas possuem vida própria.
— Oh, ele parece muito gente boa. Toca aqui, carinha! — Verônica chega perto e dá um high-five na pata do urso.
— Ahaha, e esse mel, é de verdade? Posso pegar um pouco? — Tomás pergunta ao urso, que reage com uma expressão que deixa claro que é melhor não chegar perto de seu pote.
— Vocês estão bastante machucados. Estou com meu carro ali na frente, eu deixo vocês em casa e já levo minhas encomendas para a minha.
— Oh, certo, mas no Roseiral, por favor. É onde podemos tratar os ferimentos.
— Hiiiiaa! — O som estridente de um pássaro vem rasgando o ar com a harpia de pelúcia.
— Gente, tem mais vindo! — Luciferina aponta alguns vultos ao longe.
As estátuas ao longe começam a se mexer e o grupo se prepara para correr, mas são interrompidos quando se vêm cercados. As estátuas ao redor também criam vida e caminham de forma bastante lenta e retiforme em suas direções. Os cinco ficam encurralados.
Se forma um perímetro de criaturas, mas nenhuma avança para atacar, até que elas abrem caminho para duas figuras. Uma estátua com movimentos bastante naturais como, de fato, de um ser humano, se aproxima. Ao seu lado, caminha uma mulher de mármore negro extremamente bela, detalhada, brilhante.
— Continuar essa luta por mais tempo só causaria problemas entre nossas facções. — O homem mostra-se, de fato, um humano, mas cuja pele estava coberta por um mármore extremamente branco.
O homem é extremamente belo, assim como a mulher que o acompanha, que, em silêncio, parece participar da conversa com expressões de corpo e rosto. A voz do jovem homem consegue competir nos calafrios com Luciferina.
— Galateu… Eu devia imaginar. — Responde Luciferina e o clima que se forma é como se duas frentes frias se chocassem.
— Esse nem eu conheço. — Comenta Verônica.
— Ele entrou no submundo no ano em que virou Proto-Humano, entrou para o Circuito e passou a trabalhar apenas em missões diretas para o CFO da GoWeb New Age. — Responde Luciferina.
— No teu estado, desmaiaria sozinho com o próximo golpe que desse.— Galateu olha profundamente nos olhos de Tomás, que paralisa. — Espero ao menos que tenham aprendido a lição.
— Lição? Tá viajando? A gente tava só trabalhando, cara. Roubo de túmulo não é atividade para todo dia, mas, né, comum para qualquer marmota.
De repente, o clima esquenta. O rosto frio, sem emoções, que parece uma estátua mais do que as próprias estátuas do cemitério, dá lugar a uma expressão que levemente sobe a temperatura. O suor derrama por sua máscara de mármore, vindo da margem do seu couro cabeludo. As estátuas começam a se mexer novamente, mas param de repente. Galateu se acalma assim que o golem feminino de mármore negro o abraça.
— Minha noiva não quer ver mais sangue hoje, por isso, vou perdoá-los desta vez. Abrir os caixões não foi o problema. A começo de conversa, ao desenterrar o primeiro, vocês jogaram terra por cima do túmulo e das flores de Amanda. — Galateu olha para a estátua de mármore ao seu lado e, depois, novamente para os interlocutores. — Depois, vocês não fecharam as covas e deixaram uma sujeira enorme por todo o cemitério.
— Vish, isso a gente fez mesmo. — Verônica comenta, baixando a cabeça enquanto Luciferina olha para ela com reprovação.
— Agora, vão embora, eu já arrumei a bagunça de vocês. — Galateu aponta para um espaço que as estátuas abrem em direção ao portão.
— Desculpa, tá? Prometemos não fazer mais isso. Vamos, gente. — Verônica toma a frente, seguida por Luciferina e suas pelúcias, mas percebe que Tomás ficou parado.
Ela olha para o garoto e percebe o campo de eletricidade subindo, de forma fraca, mas ainda presente. Tomás está encarando Galateu com fúria e ódio, que responde com sentimentos parecidos, mas misturados com desprezo. A temperatura começa a subir novamente.
— Tomás! — Diz Verônica rapidamente. Ele olha para ela e seu campo elétrico vermelho se dissipa no ar. — Sei que tu não tá acostumado a perder, mas entende: as coisas mudaram. Tu não está mais no topo da cadeia alimentar, na verdade, está bem longe dela.
Ressaca
— Mano, vocês tão bem quietos, né? — Ulisses pergunta, enquanto olha para o teto. O ventilador gira em frames lentos, parece uma apresentação de slides. Ao mesmo tempo, as baforadas de Ulisses fazem o ventilador adquirir outras cores. — O gnomo mordeu suas línguas? Ahaha.
— Hahaha… — Bigode dá uma risada abafada que aumenta o tom no meio e se dissipa, como uma música de cinco segundos que entra com fade in e vai embora com fade out.
— HA, HA, HAaaa…!— Maju, ao mesmo tempo, solta uma risada histérica, que morre em um gemido.
— Mano… puta que pariu… — Uma raiva psicodélica toma a garganta de Ulisses. Como se um cogumelo “mágico” estivesse sentindo ódio. Uma ira que não queima, mas invade seus sentidos e fazem os planetas de sua mente colidirem. — Não acredito que de manhã vou ter que encarar aquela puta.
— Arg…
— Huh… — Os dois respondem com gritos abafados de ira, de raiva, de ódio.
— Mas talvez eu só tenha que dar uma dura nela.
— Eh…
— E ela tende a ser razoável, às vezes. — Ulisses dá de ombros, chegando a uma conclusão que entende ser satisfatória.
— Aahh.
— Haa…— Bigode e Maju concordam em alívio.
— Uma conversinha, acender unzinho, mas não deste, que vou guardar para mim mais tarde… E talvez a gente se entenda e consiga conversar de mais pertinho. — Ulisses baixa a mão pela barriga, até chegar na própria coxa, e dá uma pequena apertada.
— Hahaha. — Maju se empolga junto, Bigode dá apenas um suspiro em sincronia.
— Uma jantinha, uns beijos. — Ulisses passa a mão na virilha.
— Aahmmm… — Bigode solta um pequeno gemido.
— Acender um bongzinho, fazer uma massagem. — Os dois companheiros continuam a soltar gemidos, às vezes mais longos, às vezes mais fortes, intensificando aos poucos. — Quero deslizar a língua por toda aquela ceda até deixá-la pingando. Aceder o seu fogo com as mãos, absorve-la em fumaça em cada centímetro do seu corpo. Depois do teto bater lá em cima, tocar as pétalas com as mãos de forma delicada no começo, mas firme.
— Aaaaaahhhhh… — Maju e Bigode soltam gemidos ainda mais fortes, finalizados com um som oco de batida.
— Mano, nem cheguei na melhor parte, já acabou para vocês? — Ulisses baixa a cabeça em direção aos outros dois. — Cara, por que vocês estão comendo cabelo?
Ulisses ri em tom debochado da cena, apesar de não entender nada do que está acontecendo. Bigode está caído no chão, virado para baixo, e Maju jogada na poltrona, com o olhar paralisado e soltando pequenos gemidos, cada um com uma emoção diferente. Há múltiplos filamentos pela sala, partindo do corpo de Ulisses.
Alguns estão mergulhados nas garrafas de cervejas, outros abraçam pós e pílulas desmanchadas na mesa, vão para várias direções. Parte desses fios chegam nos corpos de seus companheiros e entram por diversos orifícios. Boca, nariz, ouvidos… Todos os filamentos pulsam em ondas que vão até Ulisses provocando risos, prazer, euforia e outras sensações no músico.
— Que teto estranho, cara.