Era madrugada quando a polícia chegou à periferia.
Não havia pressa nas viaturas, nem gritos, nem curiosos excessivamente exaltados. Apenas o barulho constante dos motores desligando um a um, e o som distante de um cachorro latindo em algum quintal invisível.
A Cidade de Sangue não se assustava mais facilmente, ela apenas observava.
A chuva havia cessado há poucos minutos, deixando o chão encharcado e o ar pesado, saturado de um cheiro metálico que não vinha apenas da água acumulada nos bueiros.
Sangue sempre tinha cheiro próprio.
O beco era estreito demais para conforto. Paredes de concreto cru, marcadas por pichações antigas e cartazes rasgados, comprimiam o espaço como se quisessem esconder o que havia no centro. Um único poste de luz iluminava a cena, falhando em intervalos irregulares, lançando sombras que se moviam como se respirassem.
O corpo estava ali.
Ou melhor… o que restara dele.
— Jesus Cristo… — murmurou um policial jovem, dando meio passo para trás.
O investigador Adriano não disse nada.
Ele apenas ficou parado por alguns segundos, observando.
Não era a primeira vez que via alguém morto. Nem a décima. Nem a centésima. Porém, havia algo naquela cena que fazia seu estômago se contrair de um jeito específico não nojo, mas estranhamento.
O cadáver estava de costas, parcialmente inclinado para o lado, como se tivesse sido jogado sem cuidado após perder toda a utilidade.
As roupas estavam rasgadas, não por lâminas, mas por impacto. O tecido havia cedido em pontos específicos, estourado contra a carne.
O rosto… não havia rosto.
Havia apenas uma massa disforme, afundada, como argila esmagada por mãos impiedosas. O crânio não estava aberto, mas deformado. Os ossos pareciam ter cedido sob uma pressão brutal, espalhando o impacto de forma irregular.
— Isola tudo. — disse Adriano finalmente. — Quero ninguém passando dessa fita.
Os policiais se moveram rápido. O perímetro foi fechado, não por eficiência exemplar, mas por hábito. Aquilo fazia parte da rotina da cidade sempre um corpo a mais, um relatório a mais.
Ainda assim, alguns olhares demoravam demais na cena.
— Perito já chegou? — perguntou Adriano.
— A caminho. — respondeu o sargento. — Mas… isso aqui não tá normal.
Adriano assentiu levemente.
Não está.
Ele se aproximou do corpo, ignorando o barro que sujava seus sapatos. Agachou-se com cuidado, observando cada detalhe como se estivesse lendo um texto escrito em uma língua imperfeita.
Não havia perfurações.
Nenhuma.
Nenhuma faca. Nenhuma bala. Nenhuma lâmina improvisada.
O tórax estava afundado em vários pontos, como se algo tivesse atingido repetidas vezes o mesmo local com força absurda. As costelas haviam cedido para dentro, mas a pele, em muitos lugares, permanecia intacta estando apenas escurecida, marcada por hematomas profundos.
— Pancada. — murmurou Adriano.
— Como? — perguntou um policial atrás dele.
— Pancada seca. — Ele apontou. — Vê isso? Não tem corte. Não tem entrada. Só impacto.
As mãos da vítima chamaram sua atenção.
Ou melhor… os dedos.
As unhas haviam sido arrancadas.
Não quebradas.
Arrancadas com precisão.
As falanges estavam inchadas, a carne ao redor rasgada de forma uniforme demais para ser fruto de uma briga descontrolada.
— Isso aqui não foi luta. — disse Adriano em voz baixa.
Ele se levantou lentamente, respirando fundo.
Na Cidade de Sangue, brigas eram comuns. Espancamentos também. Mas espancamentos deixavam sinais claros como marcas irregulares, tentativa de defesa, ferimentos nos braços, nos antebraços.
Ali, não.
Os braços da vítima estavam praticamente intactos.
Nenhum sinal de resistência.
— Ele não reagiu. — comentou Adriano. — Ou não conseguiu.
O sargento franziu a testa.
— Sedaram ele?
— Talvez. — Adriano não parecia convencido. — Ou talvez ele tenha entendido rápido demais que reagir não adiantaria.
O vento soprou pelo beco, trazendo consigo o som distante de uma sirene em outro bairro. A cidade nunca dormia de verdade.
— Nome da vítima? — perguntou Adriano.
— Carlos Rodrigues. — respondeu o policial com o tablet. — Vida comum. Ajudante de depósito. Nada com facção, nada com sindicato. Duas ocorrências leves no histórico.
Adriano fechou os olhos por um segundo.
Então por quê?
Serial killers escolhiam vítimas. Tinham padrões. Necessidades psicológicas claras. Queriam ser vistos, estudados, temidos.
O Sindicato do Crime escolhia alvos estratégicos como dívidas, traições, mensagens claras.
Carlos Henrique não se encaixava em nada disso.
— E testemunhas? — perguntou.
— Nenhuma. — respondeu o sargento. — Ninguém ouviu grito. Ninguém ouviu luta.
Adriano riu, sem humor.
— Um homem morre espancado desse jeito… e ninguém ouve nada?
Ele voltou a se agachar, agora focando no chão.
O sangue estava espalhado, mas não em excesso caótico. Não havia respingos longos, nem marcas de arrasto. Tudo parecia concentrado ao redor do corpo, como se a violência tivesse acontecido em um espaço extremamente controlado.
— Ele não correu. — pensou em voz alta. — Não tentou fugir.
Ou não teve tempo.
O perito finalmente chegou, trazendo consigo o cheiro forte de luvas de látex e café velho. Ajoelhou-se ao lado do corpo, examinando com atenção crescente.
— Pancadas múltiplas. — disse após alguns minutos. — Muitas.
— Com o quê? — perguntou Adriano.
O perito hesitou.
— Não sei dizer ainda. — Ele apontou para o tórax. — Não parece objeto rígido comum. Não tem padrão de lâmina, não tem marca de barra, não tem formato de bastão.
— E os ossos?
— Afundados. — O perito franziu a testa. — Como se algo tivesse comprimido com força extrema… repetidas vezes.
Adriano sentiu um leve arrepio.
— Algo como…?
— Como punhos. — respondeu o perito lentamente. — Mas isso não faz sentido.
— Por quê?
— Porque a força necessária pra causar isso… — Ele balançou a cabeça. — Um humano comum quebraria os próprios ossos antes de fazer isso.
O silêncio caiu pesado entre os presentes.
Adriano manteve o rosto neutro, mas por dentro sua mente trabalhava rápido demais.
Punhos.
Nenhuma arma. Nenhuma ferramenta.
Apenas impacto direto.
— Escreva que foi espancamento. — disse Adriano após alguns segundos. — Força extrema. A gente resolve o resto depois.
O perito assentiu, ainda claramente desconfortável.
Adriano se afastou alguns passos, encarando o beco novamente.
Aquilo não era um crime comum.
Não era exibicionismo. Não era mensagem explícita. Não era descontrole emocional.
Era eficiência.
— Um crime perfeito… — murmurou.
Na Cidade de Sangue, isso era quase impossível.
Sempre havia um erro. Um detalhe fora do lugar. Um excesso de brutalidade que denunciava o autor.
Aqui, a brutalidade era calculada.
— Quem fez isso… — pensou Adriano — não queria ser achado.
E isso, por si só, já era estranho.
Porque assassinos normalmente queriam algo.
Reconhecimento. Medo. Poder.
Mas aquele…
Aquele parecia estar irritando alguém.
Provocando.
Testando limites.
Adriano sentiu um peso estranho no peito, uma intuição antiga que ele aprendera a respeitar com os anos.
Essa morte não era o fim de nada.
Era apenas o começo.
E, na Cidade de Sangue, começos raramente terminavam bem.