Olímpia. A Cidade-Estado conhecida por ser a mais próxima da morada dos deuses, o Monte Olimpo.
Fora construída aqui, há muito tempo, quando ainda se acreditava que pela proximidade ao grande monte sagrado, estariam protegidos pelos deuses.
Hoje, já não se crê mais nisso, e a cidade antes um ponto de adoração em especial, é agora apenas mais uma dentre tantas pólis. Talvez um ponto de visita para sacerdotes e peregrinos excêntricos.
Uma enorme cidade circundada de uma muralha de pedra se erguia na vasta planície, circundada por poucas fazendas que jaziam entre os campos sem florestas.
Esta noite parecia tranquila, e o céu lindo, realçava a brilhosidade das constelações em contraste à escuridão absoluta do universo. Poucas nuvens, nenhum barulho. A via Láctea, obra prima de Hércules, ornamentava o firmamento para o deguste dos admiradores de estrelas mais uma vez.
A guarda da cidade caminhava por entre os casarões da parte alta e nobre, a Acrópole, enquanto alguns poucos corajosso desafiavam o toque de recolher e vagavam pelos becos da cidade. Outros poucos guardas se concentravam nas muralhas.
Em cima de um dos postos sobre os grandes muros, dois guardas curtiam a brisa noturna de maneira relaxada. Um recruta de aparentemente dezessete anos, e um guarda mais velho nos seus quarenta e poucos.
— É, parece que não vamos ter nada para fazer hoje de novo — o jovem tinha o queixo apoiado na mão e o olhar perdido nas estrelas.
— Que os deuses te ouçam, garoto — respondeu rispidamente o guarda mais velho, sem tirar a atenção de um pedaço de madeira que esculpia com uma faca afiada.
— O senhor acredita mesmo neles, Argus? — o rapaz se virou para ele, surpreso.
— É só um jeito de falar — retrucou o velho. — Uma praga que a gente pega dos nossos pais.
O jovem suspirou, um pouco desapontado.
— Meu avô jurava ter visto um ciclope perto de Neméia uma vez. Contava-me histórias de heróis e monstros...
— E o único monstro que eu vi este mês foi o cobrador de impostos do Arconte — o velho Argus cortou rudemente e forçou a faca na madeira. — Acredite, Adonis, os deuses estão ocupados demais para se importarem conosco. Que existam, que não existam, que se fodam se quer saber.
O jovem voltou a encarar o céu, seus ombros estavam pesados pelo tédio. A reação do sargento era a mais comum. As grandes histórias dos heróis agora eram apenas isso: histórias.
Perdido nas estrelas, o Adonis piscou, seus olhos captavam algo estranho. Um feixe de luz cortou o céu noturno numa velocidade maior que qualquer meteoro. Ele estreitou os olhos e viu, mesmo à distância, o feixe mudar de direção, subindo às nuvens e desafiando a gravidade. Arregalou os olhos.
— SEN-SENHOR! OLHE! É O MENSAGEIRO! É HERMES! — apontou para o rastro dourado com um entusiasmo que não sentia há muito tempo.
— Pare de baboseira e fique quieto — Argus resmungou, sem se dar ao trabalho de olhar.
— Não, é sério! O senhor precisa ver! Veja! Veja!
Desesperado para provar sua crença, correu e segurou os ombros do velho, e o puxou. O movimento brusco fez a faca do homem deslizar, abrindo um corte em sua mão.
— Argh! Seu filho de uma- — Argus se levantou com uma careta de dor.
O velho rugiu e lançou um soco com uma fúria que compensava a força perdida pela idade. O punho encontrou o plexo de Adonis protegido por uma couraça de couro, e o lançou contra o parapeito da muralha.
— NÃO QUERO SABER DE DEUSES MORTOS! — gritou com o rosto vermelho de raiva. — Se tem tanto tempo para olhar para o céu, então pegue um esfregão e vá limpar a latrina! E NÃO VOLTE ANTES DE DEIXÁ-LA BRILHANDO!
— S-sim, senhor! Sinto muito! — O rapaz se levantou de maneira desajeitada e correu para as escadas.
O sargento observou-o sumir entre resmungos e procurou um pano para estancar o corte. Quando se virou, sentiu uma corrente de vento passar por ele, um arrepio percorreu sua espinha. Ele se virou, assustado.
Não havia nada. Apenas o mesmo céu quieto e estrelado.
— Rum. Hermes. Tch! — Ele resmungou com zombaria, voltando a se sentar.
Longe da muralha, o rastro dourado cortava o céu noturno. Para os poucos mortais que o avistavam, era uma estrela cadente, um presságio. Para ele, era apenas o caminho de casa.
Hermes, o deus dos mensageiros, corria pelo ar com leveza e elegância. O vento esvoaçava suas vestes brancas violentamente.
Abaixo, o mundo dos homens era um tapete escuro, pontilhado pelas luzes fracas de fogueiras e cidades distantes. Daquela altitude, ele via as rotas comerciais como veias brilhantes na terra, sentia as mudanças de pressão no ar que anunciavam tempestades a dias de distância. Era seu ofício, mas também sua diversão.
Em sua mão direita, o Caduceu repousava, inerte. A esquerda, vazia, estava aberta e se movendo rapidamente, acompanhando o movimento de suas pernas como um vulto.
Ele acelerou, o rastro dourado se tornou mais longo no céu. A convocação de Zeus ecoava em sua mente. "Urgente". Era uma palavra que seu pai não usava levianamente.
Ele não costumava se preocupar, no entanto, havia um silêncio perturbador em torno do chamado. Ele havia entregue a mensagem a todos, de Ares em seus campos de treinamento a Afrodite em seu templo. Nenhum deles sabia o motivo. Nem mesmo Poseidon, seu tio, cujo conhecimento das profundezas rivalizava com o dos céus.
Isso o incomodava. Hermes era o deus dos segredos, das informações que corriam entre mundos, do esclarecimento, mas dessa vez estava no escuro.
Sua mente viajou para a última vez que sentira essa mesma tensão no ar do Olimpo. A Titanomaquia era história antiga, mas a guerra contra Tifão era uma cicatriz recente. Ele ainda se lembrava do terror nos olhos dos outros deuses, da fúria exasperada de Zeus, da visão do colosso cuja cabeça tocava as estrelas. Lembrava-se do cheiro de caos.
O ar desta noite tinha um quê daquele mesmo cheiro.
Absorto em seus pensamentos sombrios, demorou a perceber o brilho familiar do Monte Olimpo se aproximando. Com uma capacidade surpreendente de controle, parou sem diminuir a velocidade, e pousou suavemente no topo do monte, no centro de um enorme altar de mármore e pedras negras marcadas por runas antigas. O vento soprava no topo, frio e rarefeito.
A noite assobiava para ele, mas ele não respondia. Para um ser feito de movimento, a quietude era uma forma de tortura. Pendurou o Caduceu na cintura e juntou as mãos, fechando os olhos. Era proibido subir ao Olimpo sem ser convidado, mas não era proibido apressar o anfitrião.
De repente, o céu, antes limpo, respondeu. Um raio desceu, violento, e envolveu seu corpo em uma luz ofuscante. Houve um estrondo que ecoou pelas montanhas e, quando a fumaça se dissipou, o altar estava vazio.
Acima do Monte Olimpo, numa ilha flutuante, reside o Olimpo. A morada dos deuses.
Coliseus, grandes prédios, anfiteatros, alojamentos, campos de treino e até mesmo jardins enormes. O marmore branco reluz sobre as bençãos de Selune, mais que qualquer tocha abaixo das nuvens, mais que qualquer pedra preciosa dentro dos mares.
Aqui vive a realeza. A realeza dos Deuses.
Abaixo de um arco enorme e esculpido perfeitamente em mármore, Hermes surgiu silenciosamente. Ajeitou a túnica como um ator se preparando para entrar no palco, compôs o rosto e forçou o vinco de preocupação a se transformar em seu sorriso habitual, a máscara de irreverência que todos esperavam dele.
No instante seguinte, percebeu uma figura metros à frente, sentado na base quebrada de um pilar, tocando uma lira com as costas para ele.
Um rapaz de cabelos loiros que chegavam ao pescoço e porte atlético e esbelto. Era Apolo. A melodia que flutuava no ar era uma canção baixa, melancólica, que em alguns instantes deixava escapar notas dissonantes nada usuais nas composições do Deus da Música.
Hermes se aproximou em silêncio com o cenho crivado e pousou a mão suavemente sobre as cordas da lira, abafando o som triste.
Apolo se sobressaltou, virando-se com os olhos dourados arregalados. Ao ver o irmão, sua expressão mudou para um alívio tenso. Ele suspirou.
— Hermes...
— Que melodia fúnebre, irmão — disse Hermes com um sorriso sacana que não alcançava totalmente os olhos. — Alguém morreu e esqueceram de me avisar?
— Hoje não, Hermes. Por favor — Apolo respondeu em voz baixa e preocupada. — O ar está pesado. Sinto algo errado.
— Errado? — Hermes ergueu uma sobrancelha, pegando a lira da mão de um Apolo surpreso demais para reagir. — Você sempre foi o mais dramático de nós. O que te aflige? O pai finalmente proibiu suas poesias medíocres?
Ele segurou a lira como se fosse tocá-la em um gesto de provocação para forçar uma reação genuína.
— Não é brincadeira! — Apolo se levantou angustiado — Ninguém sabe o motivo da reunião. Ninguém. Nem mesmo Atena. Meu pai... ele está diferente. Há uma fúria nele que não sinto desde a guerra contra os Titãs. E você chega atrasado, como sempre.
— Ele tem razão em se preocupar. E você, se tivesse um pouco de senso, se preocuparia também. — Antes que Hermes pudesse retrucar, uma terceira voz, fria e graciosa como o mármore aos seus pés, cortou o ar.
Os dois se viraram. Hera estava parada ali, seus olhos púrpuras os avaliavam com desgosto evidente. Sua presença era imponente, e a atmosfera, que já era tensa, tornou-se gélida.
— He-Hera... — Apolo gaguejou, inclinando a cabeça em um gesto de respeito.
Hermes, por sua vez, ofereceu um sorriso charmoso que contrastava com o calafrio que sentira ao vê-la.
— Que bom tê-la conosco, madrasta. Sempre radiante.
Hera estalou a língua.
— Apressem-se. Seu pai os espera. E ele não está com humor para as suas insolências.
Virou-se e se afastou, sua túnica deslizava silenciosamente como a cauda de uma serpente.
Apolo se virou para Hermes em pânico.
— Viu? Eu te disse. Algo muito sério está para acontecer.
Hermes devolveu a lira para o irmão e seu sorriso finalmente desapareceu. Seus olhos semicerrados pareciam pensativos. Ele deu um tapinha no ombro de Apolo.
— Então é melhor não o deixarmos esperando mais — a leveza em sua voz agora soava forçada até para si mesmo.
Diferente das outras reuniões, marcadas por conversas e música, esta parecia dominada por um silêncio pesado e opressivo. Os deuses estavam parados como estátuas em seus lugares designados.
Todos os olhos estavam firmes nos tronos de mármore ao centro, a tensão era palpável. À esquerda, estava o trono vazio de Hades, à direita, sentava Poseidon, o deus dos mares, cujos dedos inquietos se chocavam ritmicamente contra a haste de seu tridente. Seus cabelos negros já salpicados de cinza caíam sobre os ombros e seus olhos azuis profundos mostravam impaciência. A grande cicatriz que cruzava seu peitoral parecia se contrair a cada segundo de espera.
Hera, com seus longos cabelos negros e olhos púrpuras e afiados, permanecia de pé ao lado do trono central, a mão repousava no ombro do marido.
Hermes adentrou o salão dourado, e sentiu o peso de dezenas de olhares divinos sobre si. Ele e Apolo tomaram seus lugares na lateral, e um silêncio ainda mais profundo se instalou.
Zeus se levantou. Sua figura era imponente, a longa barba branca caía sobre um peito forte e definido. Seus olhos, sem pupilas, varreram a assembleia.

— Chamei-os aqui para tratar do mundo mortal. — a voz ressoou no salão, grave, anciã — A fé dos homens, a fonte de nossa influência, diminui a cada dia.
— De novo essa conversa… — Poseidon resmungou, deixando a impaciência vencer a prudência.
Zeus fingiu não ouvir, e continuou.
— A humanidade nos esquece, mas não se enganem. A fé deles não desaparece por acaso. Ela está sendo... corroída.
Fez uma pausa para que o peso de suas palavras se assentasse.
— Sinto uma energia que não sentia desde a guerra contra Tifão. Uma energia profana, do próprio Tártaro, tem vazado para o mundo dos mortais.
Murmúrios de choque e descrença preencheram o salão.
— Impossível! — bradou Poseidon, levantando-se de seu trono. — Os portões do Tártaro estão selados! Hades os guarda. — Ele afirmou o braço erguido na direção do trono vazio de seu irmão.
— Não é uma fuga, Tio. É uma fissura. Uma influência — a voz de Atena soou, calma e analítica. De pé, com seu escudo ao lado e a lança firme na mão, seus olhos castanhos pareciam dissecar o próprio ar, buscando a lógica na crise. — Alguém, ou algo, está criando uma ponte.
— Então devemos esmagar essa ponte antes que mais alguma coisa a atravesse! — rosnou Ares.
O deus da guerra, cujos olhos vermelhos queimavam com a promessa de violência, deu um passo à frente, seus longos cabelos ruivos balançavam sobre o peitoral coberto de cicatrizes.
— Que travessura... — uma risada úmida e abafada veio de um canto.
Dionísio, barrigudo e com o rosto corado, ergueu sua taça de vinho, uma coroa de uvas escuras pendendo sobre seus cabelos. — Talvez eles nunca tenham estado totalmente presos...
Apolo, pálido, ignorou o comentário do bêbado e se virou para o pai. — Quem ousaria agir contra o Olimpo, pai? Quem nos trairia?
O olhar branco semicerrado de Zeus varreu o saguão.
— Um oráculo me trouxe um aviso. Um fragmento de uma profecia antiga, quase esquecida. — como se pronunciasse uma profanidade, sussurrou. — Ela diz: "A nota do armagedom anunciará sua chegada quando o arauto tiver, finalmente, sua última mensagem enviada."
Ártemis cochichou algo para si mesma com um rosto incomodado, a mecha branca de seu curto cabelo negro caiu um pouco sobre os olhos. Afrodite enrolava uma mecha de seu cabelo ruivo com os dedos, seus olhos verdes estavam tensos.
Receoso, Apolo quase engoliu a pergunta que se entalava em sua garganta.
— Ma-mas quem? Qual arauto? — sussurrou o músico.
O deus dos raios fechou os olhos por um instante. Então, rangeu os dentes, e de olhos abertos, frios e pesados, proferiu:
— Um arauto — bradou. — Um que viaja livremente entre os reinos. Um que conhece os segredos do Olimpo e do submundo. Um que poderia, sob o disfarce de seu ofício, entregar uma mensagem aos nossos inimigos acorrentados, abrindo a fissura que nos ameaça.
O silêncio que se seguiu foi absoluto. Todos os olhares se viraram para Hermes, o deus de quíton branco e feições elegantes. Apolo o encarou, a boca entreaberta em horror.
— Hermes é o traidor! — Trovões resvalaram com a fúria do rei vindos de um céu limpo de nuvens.
Hermes, alvo de todo o panteão, encontrou o olhar furioso de seu pai. E, para o completo espanto de todos, sorriu.
Um sorriso que não continha alegria, mas a descrença jocosa de que realmente havia escutado aquilo.