Splash
A água gelada e podre invadiu o nariz e a boca de Hermes, arrancando-o da inconsciência para o desconhecido.
— ACORDA MALDITO!
Ele engasgou e seu o corpo reagiu antes da mente. Debateu-se contra o chão de madeira úmida. O ar parecia uma pasta densa de suor, excrementos e sangue seco. Ao redor, na penumbra, dezenas de olhos vazios o encaravam. Homens, mulheres, crianças. Espectros de miséria.
Hermes tentou se erguer, impor sua presença, mas o metal frio mordeu seus pulsos e tornozelos. Correntes.
— Levanta daí, branquelo! — rosnou um guarda na entrada da gaiola munido do ranger do couro de sua armadura.
Hermes ergueu o queixo sentindo o orgulho divino ainda intacto sob a sujeira.
— Você ousa falar assim comi…
SCHLAP
— Que ousa que nada!
O estalo foi seco. A dor, imediata e alucinante. Hermes tocou o rosto, sentindo o calor do sangue escorrer pela bochecha. Seus olhos se arregalaram.
“Dor? Um verme mortal me feriu?”
O guarda não esperou. O braço se ergueu novamente.
SCHLAP. SCHLAP. SCHLAP.
Hermes ergueu os braços para se proteger, mas os golpes choviam e rasgavam a pele. Fechou os olhos e buscou a chama dentro de si. A velocidade. O poder. A divindade. Ele ordenou que seu corpo explodisse em luz, que o tempo parasse. Nada.
“O que… o que fizeram comigo?”
O desespero o paralisou mais do que a dor. Ele se encolheu no chão, reduzido, impotente, enquanto o couro estalava contra suas costas, abrindo a pele, misturando sangue novo com a água suja do balde.
— Humpf… Hah… — O guarda ofegava, deliciando-se com a tortura.
Alguém invadiu a carroça. A luz foi bloqueada por uma silhueta maciça.
PUMP
O chicote parou. O guarda voou contra a grade oposta com um único soco, caindo atordoado. Íxion, o capitão da guarda, estava parado sobre Hermes, limpando os nós dos dedos. Sua voz rouca denunciava o apreço pelo fumo.
— Você quer morrer, imbecil? — Ele chutou o guarda caído. — Tem dinheiro pra pagar o Lorde por esse escravo?
Sem esperar resposta, Íxion agarrou o subordinado pelo colarinho e o arremessou para fora da carroça como um saco de lixo. Então, seus olhos frios caíram sobre Hermes no canto, encolhido e sangrando.
— Está vivo — constatou, sem emoção. Agachou-se e agarrou Hermes pelo braço, puxando-o com brutalidade. — Levante. Se não andar, eu te arrasto.
Hermes tentou firmar as pernas, mas elas tremiam. Íxion não teve paciência. Puxou-o pelo pescoço e o jogou para fora. O impacto com o chão lamacento tirou o ar de seus pulmões. Hermes cuspiu lama e sangue, forçando-se a erguer a cabeça.
A visão era desoladora. Uma colina nua sob o crepúsculo, filas de escravos sendo organizadas como gado. E no topo, observando tudo, os compradores.
— Vai, para a fila. — Íxion o empurrou enviando um choque pelas feridas de Hermes.
Hermes cambaleou até a formação sentindo as costas queimarem. Sua mente era um labirinto de confusão e ódio.
Surpreso e ao mesmo tempo confuso, ele estava. Eram muitos acorrentados.
— Isso é uma caravana de escravos!? — seus olhos estavam arregalados.
“Eu estava no Olimpo… o raio… Zeus…” A memória vinha fragmentada, dolorosa.
A tentativa de forçar a passagem pela névoa em sua mente foi um erro. Um clarão de olhos amarelos arregalados em choque e traição. O som agudo e dissonante de uma corda de lira se partindo. A sensação doentia e macia de seu Caduceu perfurando algo que não deveria.
— Garghh!
Ele levou as mãos à cabeça ao sentir a dor excruciante penetrar seu crânio como uma agulha de gelo. Em meio a respirações ofegantes, sentiu a dor recuar lentamente, arrastando consigo os fragmentos de memória..
No topo da colina, pouco acima de onde todos estavam, havia uma espécie de muros de madeira em formato circular cercando todo o local.
Em pouco, um grupo descia de lá, trajados em panos velhos e tendo presos em um lado da cintura, uma espada e noutro um chicote.
Gérion, maior que todos os outros tanto em altura quanto em largura, se aproximou de Íxion com um sorriso sujo. Possuía cabelo apenas aos lados e uma falha enorme no topo de sua cabeça, além de uma farta barba e um olho aparentemente cego, marcado por uma cicatriz que ia de sua testa até sua bochecha.
Eles se aproximaram lentamente das fileiras e, quando estavam perto o suficiente, Hermes pôde ouvir parte de sua conversa.
— Não se preocupe, o lorde me deixou responsável pelas vendas hoje. — Íxion tinha um sorriso vanglorioso.
— Não pense que vai conseguir me enganar, imbecil! — Gérion resmungou— Seu chefe já tentou e não conseguiu.
— Te enganar, Gérion? — O capitão questionou com um sorriso malicioso. — Eu jamais tentaria algo assim.
Gérion não pareceu notar, fungou e seguiu.
Todos olhavam para o chão, com medo de encarar de volta o ogro à frente. Seus subalternos acompanhavam de longe a sua caminhada.
— Este aqui. — Gérion apontou para um rapaz de aparência forte com um olhar vazio.
Seus homens se aproximaram e soltaram as correntes do homem, levando-o para longe. Não houve resistência.
— Este.
Seguiu sua seleção até um homem de expressão perturbada físico estranhamente polido.
Seu rosto se tornou pálido e sua expressão desesperada.
— Nã-Não! Por favor, eu não! — ele caiu de joelhos.
Os homens de Gérion se aproximaram novamente enquanto o ogro seguia sem se abalar.
O escravo esperneou, lutando contra seus captores que o arrastavam para longe. Clamou por Íxion, chamando-o de chefe, que o ignorou em um bocejo entediado.
Hermes sentiu um calafrio quando percebeu que Gérion se aproximava.
Um garoto cruzou a multidão desesperado em direção a Gérion que havia agarrado uma jovem moça.
— Solte ela! — O menino se jogou contra a perna do gigante.
O grito rompeu a monotonia da seleção.
SCHLAP
Gérion nem se virou. Apenas moveu o braço, e as costas de sua mão, pesada como uma pedra, atingiram o menino, jogando-o na lama.
— Dante! — A garota gritou, tentando se soltar.
Gérion riu, puxando-a para perto, cheirando seu cabelo com uma inspiração profunda e nojenta.
— Não se preocupe, pequeno. Vamos cuidar muito bem dela.
Ele fez um sinal, e seus homens arrastaram o menino chorando para longe, enquanto jogavam a garota junto com os outros selecionados.
— NÃO! Não machuquem ele, por favor! — A menina implorou enquanto tentava correr na direção do garoto.
Gérion a segurou no lugar, e então a puxou pelo queixo, forçando-a a olhar diretamente para ele.
— Eu me preocuparia mais comigo, se fosse você.
Hermes sentia o sangue ferver. Gérion continuou sua caminhada até parar na frente dele. O olho bom do ogro percorreu o corpo de Hermes, das pernas até o cabelo branco sujo de lama. Ele fez uma careta.
— Este aqui está todo arrebentado — Gérion reclamou, chutando a canela de Hermes. — Carne estragada. Eu vou querer desconto.
— Ele aguenta o trabalho — Íxion disse, sem interesse.
— Trabalho? — Gérion soltou uma gargalhada úmida, revelando dentes podres.
Ele se aproximou, o hálito de cebola e vinho azedo batendo no rosto de Hermes.
— Ele vai servir para aquecer minha cama.
“O que esse verme disse?”, Hermes rangeu os dentes.
Gérion sorriu e se virou para seguir sua caminhada.
No momento em que os homens de Gérion soltaram suas correntes para transferi-lo, Hermes saltou nas costas do ogro. Ele envolveu o pescoço de touro de Gérion com as correntes soltas em suas mãos e puxou.
— KUHAAK! — Gérion engasgou, cambaleando para trás com as mãos a arranhar o metal que cortava sua respiração. — SEU FILHO DA…
Os guardas congelaram por um segundo, chocados. Hermes apertou mais os punhos e seus dentes, com olhos fixos no nada. Morra. Apenas morra.
Hermes torceu os grilhões contra o pescoço de Gérion, cruzando os braços com as correntes.
