A intervenção de Hermes, por mais sutil que tenha sido, alterou o delicado e pútrido ecossistema da mina. Ele, que por meses se esforçara para ser invisível, para se tornar apenas mais um vulto cinzento em meio a tantos outros, agora tinha um nome e um rosto aos olhos de pelo menos duas pessoas.
Agouri, com sua energia indomável, passou a orbitá-lo com uma curiosidade barulhenta, fazendo perguntas que Hermes não tinha intenção de responder e oferecendo-lhe parte de sua ração com um sorriso cúmplice, um gesto que o ex-deus recusava com um aceno seco.
Teseu, por outro lado, demonstrava gratidão silenciosa, expressa em um olhar de entendimento que era quase mais perturbador. Seus olhos jovens por vezes pareciam conter um peso e compreensão não naturais para a sua idade.
Hermes tentava ignorá-los, focando-se na monotonia anestesiante do trabalho. Ele se apegava à sua rotina com Sêneca e Ágatha, um pequeno e sombrio simulacro de família forjado na miséria. Mas o fio havia sido tecido. Inevitavelmente, durante as parcas refeições ou no trajeto para os túneis, os cinco acabavam próximos.
A tensão instigada pela visita de Gérion intensificou-se. Rumores começaram a correr pelos túneis, sussurrados entre os golpes de picareta e as tosses secas dos doentes. Alguém muito importante estava para chegar. O dono de tudo. O Lorde daquelas terras e de suas vidas. Um tal Arconte.
A confirmação veio na forma de uma crueldade ainda mais metódica. Os guardas, antes brutais por sadismo, tornaram-se brutais por eficiência. As chicotadas buscavam acelerar.
Enquanto trabalhava, Hermes ouviu dois escravos mais velhos sussurrando em um túnel próximo.
— Eles ainda estão com raiva por causa de Theo — a voz soou temerosa.
— Claro que estão — respondeu o outro. — Ele fez um dos homens de confiança de Gérion parecer um tolo na frente de todos. Ninguém nunca ousou revidar daquele jeito.
— Mas quem poderia culpá-lo? O guarda estava prestes a quebrar o braço da velha Eleni por derrubar um balde de água.
— E agora está apodrecendo na solitária por isso. Se já não estiver morto.
Hermes processou a informação em silêncio. Um ato de desafio, nobre em sua intenção, mas fútil em seu resultado. Apenas mais uma prova de que, naquele inferno, qualquer centelha de honra era rapidamente extinta pela bota dos opressores.
A violência dos guardas, agora, fazia mais sentido. Eles estavam “limpando a casa” para a visita do Lorde.
— Ei — chamou Agouri. — Você nunca diz de onde veio.
O homem de cabelos brancos estava sentado no canto, limpando a sujeira das unhas. Sêneca dormia. Ágatha costurava a túnica de Teseu.
— Qual é? — insistiu o garoto. — Todo mundo aqui tem uma história. O Sêneca, a Ágatha… até a minha e a do Teseu você sabe. E você? Caiu do céu?
— Agouri, chega — disse Teseu. Sua voz estava fraca. Ele tossiu. — Deixe ele.
— Mas é estranho, Teseu! — retrucou Agouri, gesticulando. — Olhe para ele. Ele não anda como nós, não fala como nós. Até quando apanha, ele olha para os guardas como se eles fossem os escravos. Eu só quero saber se ele era um nobre que perdeu a fortuna ou um ladrão que foi pego.
Hermes parou o que estava fazendo. Ele levantou a cabeça. Seus olhos dourados brilharam na penumbra.
— Quer uma história? — A voz de Hermes saiu seca, rouca.
Todos pararam, exceto Sêneca que ainda dormia. Agouri se ajeitou, interessado.
Hermes recostou a cabeça na parede fria e e olhou para o teto do túnel.
— Havia um bebê — começou Hermes.
Agouri franziu a testa. Esperava algo sobre guerras.
— Ele nasceu numa caverna, escondido. No primeiro dia de vida, ele sentiu fome. E tédio. Então ele saiu do berço e foi passear.
Ágatha pareceu se interessar. O início da história lhe era familiar.
— Ele encontrou um rebanho de vacas. Eram vacas lindas, brancas e gordas. Pertenciam ao irmão dele. O irmão mais velho e brilhante, que tinha tudo. O bebê queria aquelas vacas. Então ele as roubou.
Hermes olhou para o fogo.
— Ele foi esperto. Fez as vacas andarem de costas para confundir as pegadas. Escondeu os animais e voltou para o berço, fingindo ser inocente.
— Gostei desse bebê — comentou Agouri, sorrindo.
— Mas o irmão descobriu. Ele ficou furioso e invadiu a caverna, gritando e ameaçando jogar o bebê no abismo. Ele queria justiça. Ele queria punir o ladrão.
Teseu observava Hermes com atenção. O rosto de Hermes não mostrava emoção, mas suas mãos estavam fechadas.
— O bebê teve medo? — perguntou Ágatha.
— Talvez — disse Hermes. — Mas ele tinha algo para dar em troca. Ele pegou o casco de uma tartaruga e tripas de boi. Fez um instrumento. Uma lira. Quando o irmão veio com sua fúria, o bebê tocou.
— E isso colou? O irmão mais velho deixou deixou mesmo essa passar? — Questionou Agouri quase pulando de ansiedade.
— A música era bonita. Era a coisa mais bonita que o irmão já tinha ouvido. A raiva dele sumiu. Ele sorriu. Ele pegou a lira e deu as vacas para o bebê. Eles se abraçaram.
O rapaz parou de repente e por um momento, deixou escapar um mínimo sorriso. Teseu franziu o cenho.
— Tornaram-se inseparáveis naquele dia. O crime virou uma piada entre eles. O irmão deu ao bebê um bastão dourado para pastorear o gado e prometeu que nunca mais brigariam.
O silêncio voltou ao túnel. A história terminava bem, mas Hermes não parecia feliz. Ele parecia cansado.
— Que história besta — disse Agouri, quebrando o clima. — Um bebê roubando vacas? Você inventou isso. Devia ter contado uma de verdade.
Ágatha olhou para Hermes.
— Essa é a lenda do deus Hermes e de Apolo — disse ela baixinho. — Minha avó contava. Eles eram irmãos.
Hermes se levantou, chamando a atenção dos três. Seu olhar estava fixo no fogo, mas parecia enxergar algo além dele.
— O bebê cresceu… — a voz se tornou mais grave, mais fria — E se tornou um viajante. Sem casa, pois o mundo era o seu lar, sem pesos, pois era mais rápido que o vento.
Agouri franziu o cenho.
— Vivia entre o pico das montanhas mais altas e os vales mais profundos — continuou Hermes de olhos fechados deixando a memória invadir sua mente, trazendo o gosto do néctar e o toque das nuvens. — Conectava reis e mendigos, o céu e a terra. Ele podia ver o sol nascer em Atenas e se pôr em Esparta no mesmo dia. Ele amava a liberdade mais do que amava a si mesmo.
— Mas onde as vacas entram nessa história? — Agouri implicou, inquieto.
— Cale-se Agouri! — rebateu Teseu com um empurrão no ombro do irmão.
Hermes fechou os olhos. A dor em seu peito, na marca do caduceu, pulsou, mas ele a ignorou.
— Mas esse viajante cometeu um erro. Ele achou que, por ser rápido, jamais poderia ser alcançado. Ele achou que, por ser livre, jamais poderia ser preso. — seu tom se tornou sombrio.
Os três tinham olhos tensos, percebendo a intensidade com a qual Hermes compartilhava aquele mito.
— Ele brigou com a família, o irmão tentou impedir, mas acabou sendo pego no meio e…
Agouri se inclinou para a frente com olhos arregalados.
— E a Lira nunca mais tocou. O viajante foi punido por uma tempestade, ela tirou suas asas. Tirou seu nome. E o atirou num buraco, onde o céu é apenas uma memória e o vento nunca sopra.
— Que tipo de final é esse? — resmungou Agouri, desconfortável, chutando uma pedrinha para longe. — Estragou tudo.
— Lendas são só histórias bonitas com finais feios. — respondeu Hermes após um suspiro profundo.
Sem esperar resposta, ele caminhou até sua rede no fundo escuro do túnel. Deitou-se e virou para a parede de rocha, encerrando a conversa com suas costas.
O tempo passou. A fogueira diminuiu até virar apenas brasas alaranjadas, e a respiração pesada de Sêneca e Agouri preencheu o ambiente.
Hermes estava acordado, os olhos abertos encarando a pedra bruta a centímetros de seu rosto. Ouviu passos arrastados se aproximando e tencionou os músculos, mas relaxou ao reconhecer a respiração sibilante. Era Teseu. O garoto parou ao lado da rede.
— Hermes… — sussurrou Teseu. — Me desculpe pelo Agouri. Ele não faz por mal. Ele só… tenta não levar nada a sério para não enlouquecer.
Hermes não respondeu, mas não fingiu estar dormindo.
— Eu gostei da história — continuou Teseu, a voz terna. — Foi triste. Mas foi bonita.
Houve uma pausa. Teseu parecia buscar as palavras certas.
— Sabe… para alguém que perdeu as asas e o céu… você é muito forte. Suportar tudo isso, depois de ter tido tanto… — A voz do garoto falhou levemente, cheia de uma admiração sincera. — Acho que você é até mais forte do que aquele bebê viajante da história. Suportar esse lugar, depois de perder a família não é qualquer bebê que consegue.
Ele riu com a própria afirmação. Era ainda uma criança, afinal, mesmo com a postura costumeiramente madura para compensar a irrequieta do irmão.
Com um suspiro leve, ele se afastou, voltando para sua esteira ao lado do irmão.
Na escuridão do canto, Hermes permaneceu imóvel. A rocha fria contra seu rosto era a única e dura realidade.
Ele fechou os olhos. E ali, no silêncio da terra, onde ninguém podia ver, uma única lágrima quente escapou, traçando um caminho limpo através da sujeira em seu rosto antes de cair na poeira da mina, desaparecendo como se nunca tivesse existido.