Éden, Território de Shefa, Cidade de Lumian
Shefa era uma palavra herdada dos povos ancestrais, hoje quase extintos, cujo eco antigo significava abundância. Era um termo austero, pesado de simbolismo, e nenhum lugar do Império o carregava com tanta legitimidade quanto a Cidade de Lumian. Ali, as construções pareciam sempre tocadas por um brilho dourado; as colheitas eram tão fartas que murmurava-se que continham traços da própria graça divina. Frutas e ervas cresciam impregnadas de energia vital, capazes de curar enfermidades, aliviar a fadiga e até prolongar a vida dos que delas se alimentavam.
Lumian erguia-se como um farol de virtude em meio ao vasto oceano de pecado que consumia o restante do mundo. Era o pilar silencioso dos Eclesiásticos, a expressão mais pura de sua fé e vigilância. Chamavam-na de Terra dos Fiéis, não por costume, mas porque seus habitantes caminhavam como se a própria luz celestial repousasse sobre seus ombros. Seus templos, seculares e imponentes, lançavam sombras longas que pareciam observar cada desvio antes mesmo que ele fosse cometido.
Conhecida como a Cidade Virtuosa das Bênçãos Divinas, Lumian era reverenciada não apenas por sua pureza, mas pelo que guardava com fervor absoluto: o Lar da Arca da Aliança, um dos presentes supremos concedidos pelo Criador à humanidade. Da Arca emanava uma energia antiga, silenciosa e irreprimível — um poder que se derramava sobre todo o território humano como um véu luminoso.
Era essa força que sustentava a Cúpula de Ferro, a barreira sagrada que envolvia a humanidade e a separava das criaturas profanas conhecidas como demônios e de seus servos hereges. Dentro desse domínio protegido, nenhum deles podia se materializar, romper o espaço ou forçar sua entrada. A energia da Arca distorcia o próprio tecido da realidade, criando um limiar impossível de atravessar, mantendo a humanidade isolada num refúgio impenetrável onde o toque do profano simplesmente não podia existir.
Pelo menos até agora..
Nas Zonas de Kibutz, os trabalhadores rurais moviam-se com a precisão de um relógio consagrado, dispersos pela vastidão das fazendas de Sheba onde quatorze propriedades interligadas por trilhas de solo fértil que se estendiam por mais de trinta e dois quilômetros de território abençoado.
Ali, a terra parecia respirar, pulsando sob o toque de cada enxada, cada semente lançada e cada oração murmurada ao amanhecer.
Os habitantes laboravam com devoção quase litúrgica, sem pudor e sem hesitação. Serviam ao Império de Éden, um domínio que proclamava ter abolido a pobreza, a doença e qualquer traço de miséria.
Naquele mundo moldado por doutrinas eclesiásticas e pela força invisível da fé, tudo das colheitas às engrenagens sociais funcionava por meio de rituais, idolatria e votos silenciosos.
Assim, dia após dia, cada homem e cada mulher oferecia seu suor como se fosse incenso, acreditando que, com isso, tornavam o Império ainda maior, mais próspero e mais glorioso aos olhos de Deus.
Entre esses trabalhadores rurais estava Efraim, um homem simples que conhecia cada palmo das fazendas de Sheba como se fossem extensões do próprio corpo. Ele caminhava pelos campos com passos firmes, não apenas por hábito, mas porque cada gesto carregava um significado quase sagrado. Ali, o trabalho não era visto como esforço físico, e sim como um ato de fé contínuo, parte de um grande mecanismo que sustentava o Império de Éden.
Nada era exigido além do necessário, nada era desperdiçado. O Império valorizava eficiência, não ostentação.
Na Fazenda 4, Efraim caminhava entre os campos enquanto revisava mentalmente a lista de tarefas do dia. O sol já estava alto e o cheiro de terra úmida preenchia o ar.
— Efraim! — chamou uma voz atrás dele.
Era Ruth, uma das jovens responsáveis pela irrigação. Sempre com o rosto sério, sempre prática. — As bombas da Zona Leste deram sinais de falha. Quer dar uma olhada antes que piore?
— Claro. Se quebrar de vez, vamos ter que rezar para a equipe de manutenção estar livre — respondeu ele, embora, no fundo, pensasse que a equipe nunca estava realmente livre. — Vamos antes que fique tarde.
Caminharam lado a lado. O som dos trabalhadores ao longe criava uma trilha sonora constante, ritmada, quase hipnótica.
— Seu irmão não veio hoje? — perguntou Ruth.
— O menino vive enfiado na Zona Norte, mexendo onde não deve — suspirou Efraim. — Vou acabar amarrando ele no celeiro.
Ruth riu.
— Ele só é curioso. Melhor que seja curioso do que preguiçoso.
Efraim concordou com um gesto tímido. A preocupação, porém, ficou presa na garganta como um espinho. O garoto tinha ido cedo demais para a Zona Norte hoje. E ele conhecia aquele canto da fazenda: velho, pouco usado, cheio de fileiras irregulares, com estufas que mal recebiam manutenção. Um lugar perfeito para acidentes.
A suspeita se confirmou quando, meia hora depois, um grito curto ecoou vindo exatamente de lá.
Ruth olhou para Efraim. — Isso foi…?
— Meu irmão. — Ele disparou antes mesmo que ela terminasse de perguntar.
Correram. A cada passo, a sensação de que algo estava errado se tornava mais concreta. Não era apenas o grito. Era o silêncio que se seguiu.
Chegaram às fileiras mais antigas com madeira estalando, plantas crescidas demais, sombras esquisitas entre os talhões. Foi Ruth quem o encontrou primeiro.
— Efraim… aqui.
O garoto estava ajoelhado, curvado para frente, a cabeça baixa entre as mãos. Parecia apenas desmaiado até que Efraim se aproximou e viu o detalhe com as pupilas imóveis demais e pele branca demais.
— Ei… Ei! Levanta! — Efraim sacudiu o irmão, e o corpo caiu para o lado como um saco vazio.
— Ele ainda…? — murmurou Ruth, mas a frase morreu no ar.
Porque a resposta veio de forma diferente: algo sob a pele do garoto se moveu.
Uma ondulação rápida, como um animal pequeno empurrando por dentro.
E então, pela boca, escorreu um fio preto. Espesso. Viscoso. Vivo.
— Para trás! — gritou Efraim.
Mas já era tarde.
O corpo do garoto espasmou, os olhos abriram — agora vidro fosco, sem luz alguma e a criatura, pequena como um inseto mas deformada como um tumor, deslizou pela garganta para dentro de novo… como se estivesse tomando controle.
— Isso não existe aqui… — sussurrou Ruth, aterrorizada.
Efraim sentiu o coração gelar.
Ele também sabia. Ninguém em Éden jamais deveria ver algo assim.
Parasitas. Pragas vivas. Matéria corrompida. Isso era coisa de Belzebu, das terras exteriores, dos inimigos profanos do Império.
E para estar ali… alguém precisou trazer.
— Ruth… — disse ele num fio de voz. — Isso é heresia. Isso veio de fora. Alguém em Lumian… alguém daqui… trouxe isso pra cá.
O garoto ou o que restava dele, se levantou com um movimento seco, antinatural.
Efraim recuou, tomado por uma vertigem súbita. Uma dormência correu pela sua perna, depois pelo braço. Ele olhou para baixo.
Um minúsculo ponto preto na pele.
Como se algo tivesse picado.
Não… não pode ser…
— Efraim? — Ruth deu um passo para ele, assustada.
Ele tentou responder, mas a fala embaralhou. Um calor queimou sua nuca, seguido de uma sensação pegajosa subindo pela espinha.
Antes de cair, teve apenas um pensamento claro
Se isso se espalhar… Éden não vai durar.
O resto veio em trevas e silêncio e então, não mais ele, mas algo usando seu corpo para con
tinuar.
A praga tinha encontrado dois novos hospedeiros.
E o Império de Éden ainda não fazia ideia