A Primeira Época, chamada pelos poucos iluminados de Época do Apogeu, foi o alvorecer absoluto, um tempo em que a humanidade caminhava pelo Mundo Espiritual não como intrusa, mas como herdeira legítima. Os corpos dos homens eram tecelagens de luz; suas vozes moldavam a substância da alma; e cada pensamento podia inclinar o curso do destino. O Criador falava, e eles respondiam sem temor. Naquela aurora imaculada, as fronteiras entre vontade, milagre e realidade eram tão tênues quanto o hálito que se desfaz sobre um espelho frio. Era a época em que tudo ainda podia ser perfeito.
A Segunda Época, lembrada com horror velado como Época da Decadência, começou com um gesto quase trivial: uma mordida simples demais para o peso da eternidade que destruía.
Ao provarem o fruto proibido, os humanos foram expulsos da radiância divina e precipitados no Mundo Material, um véu grosseiro fabricado por entidades demoníacas para conter e distorcer a alma. A luz tornou-se sombra; a razão, ferocidade; e a alma, um espelho fraturado refletindo fragmentos profanos do antigo sagrado. Foi a era dos primeiros gritos, dos pecados sem nome, dos homens que esqueceram o céu ao qual pertenciam.
A Terceira Época, chamada pelos teólogos de Época da Salvação, ergueu-se como uma chama vacilante no abismo. Alguns poucos foram tocados pela graça escolhidos para lembrar. Eles atravessavam aldeias, desertos e impérios como mensageiros frágeis, carregando fagulhas do que restava da antiga luz. O céu, ainda distante, ousou voltar o rosto para a Terra.
A Quarta Época, temida e reverenciada como Época do Renascimento, irrompeu com o sacrifício de Cristo a morte que abriu uma fenda luminosa entre o divino e o mundano. Depois vieram os apóstolos e, por fim, Pedro, o Último Mensageiro, que moldou a Igreja como um farol, permitindo que a humanidade enfim erguesse os olhos para fora da própria caverna, tal qual na parábola de Platão.
Sob seu cajado, um exército de fé avançou contra impérios profanos, reacendendo a centelha do que fora perdido.
Agora, a humanidade sobrevive na Época do Armagedom, uma era partida, moldada pelas convulsões que antecederam a fundação do Império e pelas ruínas que se seguiram. Tudo permanece suspenso como uma lâmina trêmula prestes a despencar.
Foi nesse intervalo fraturado que surgiram os Daímon. Ninguém sabe ao certo de onde vieram apenas que Saul, destinado a se tornar o Primeiro Imperador de Éden, os trouxe consigo. Com eles, o campo de batalha mudou. Onde antes reinava o desespero, surgiram vitórias tão vastas que parecem violar as leis do mundo.
Não há consenso sobre o que são os Daímon se eram anjos, demônios ou algo que transcende ambas as categorias. Seu poder bruto não se ajusta a nenhuma forma conhecida.
Em um manuscrito imperial guardado a ferro e oração pela Igreja, Saul relata que os Daímon são existências de um plano superior, muito além do tempo e do espaço concebidos pelos estudiosos.
Em uma de suas tentativas de usar os anéis dados por Deus, ele teria rasgado o véu entre o Mundo Material e o Mundo Astral, onde encontrou tais seres.
Saul descreveu esse domínio como uma esfera além das onze dimensões: um lugar onde entidades brincam com conceitos e manipulam leis como poeira tão poderosas quanto os demônios antigos, tão indiferentes quanto eles.
Ainda assim, trouxe apenas sete Daímon, que se tornaram os primeiros generais da Corte Imperial, início de uma linhagem que perdura até hoje.
Para reencontrar tais entidades, forjou-se a Pedra Astral, um mecanismo capaz de transportar a alma ao Mundo Astral por rotas seguras previamente traçadas pontos específicos onde repousavam os sete generais da Era Gênesis.
Com esse propósito, os Cardeais reuniam-se agora ao redor de Silas, sentado em uma cadeira metálica, o corpo atravessado por cabos, tubos e runas vivas. A sala cheirava a incenso queimado e ozônio. Os mecanismos pulsava como corações estrangeiros.
O Cardeal Morian examinava os aparelhos com expressão pétrea.
— Os estabilizadores estão prontos? — perguntou, sem desviar o olhar das runas.
O Mestre-Médico ajustou uma válvula que exalou um sopro de vapor azul.
— Prontos e selados. Quando a Pedra Astral for ativada, o corpo dele entrará em suspensão absoluta.
Silas engoliu seco. A voz não conseguiu acompanhá-lo. Suspendido… como um cadáver que respira?
O médico continuou. — A alma viajará sozinha. O corpo ficará aqui, protegido. Pelo menos… é o que esperamos.
Silas fechou os olhos por um instante.
Eles dizem “protegido”. Não dizem “preservado”. Não dizem “inteiro”.
É como se eu estivesse indo para uma guerra que ninguém pode acompanhar.
Morian então pousou uma mão enluvada em seu ombro. — Silas, você sabe o que está em jogo. Há sete rotas possíveis. Sete locais marcados na Pedra Astral. Cada um leva a um dos antigos generais.
— E se eu escolher errado? — a pergunta escapou antes que pudesse contê-la.
Um silêncio breve. Depois, a sentença
— Então não haverá retorno.
O peso das palavras pareceu maior do que todos os cabos presos ao seu corpo.
Sete caminhos… sete Daímon… e talvez nenhum seja o certo. Talvez eu esteja apenas caminhando para o esquecimento.
O médico selou o último mecanismo.
— Estamos prontos. A ativação ocorrerá ao seu comando.
A Pedra Astral pulsou. A luz expandiu-se como um coração despertando.
Silas respirou fundo.
— Vamos começar.
E enquanto a luz o engolia, restou apenas o pensamento que ele não ousou pronunciar
Se eu voltar… serei o mesmo?
A ativação não se revelou como um clarão nem como um rugido. Foi uma convulsão.
Silas ouviu um estalo seco dentro do crânio, como se uma porta antiga tivesse sido arrombada. Depois, veio a vertigem não uma tontura, mas a sensação de que sua alma era arrancada pelas raízes, puxada pela nuca como um fio de luz sendo desenrolado.
Ele tentou gritar, mas o corpo já não existia.
Um solavanco. Um rasgo. E então… a separação.
Sete luzes surgiram ao redor. Não eram estrelas nem chamas, eram presenças, cada uma pulsando em um ritmo indecifrável, como se conversassem em frequências que nenhum cérebro humano poderia suportar.
Sete caminhos… sete destinos… A voz distante de Morian ecoou como lembrança de um sonho prestes a morrer.
Silas estendeu a mão ou o que restava dela, um contorno translúcido feito de intenção. Ao tocar uma das luzes, o universo desabou.
Ele foi lançado à frente em uma velocidade que não pertencia à existência.
Não era ultrapassar a luz, era atravessar as camadas que a luz não alcançava.
A Arca Imperial ficou para trás como faísca. O sistema solar dissolveu-se num fio dourado. O universo tornou-se um ponto. Depois, nada.
Silas foi esticado, comprimido, torcido. A própria alma rangia como metal dobrado além do limite.
E então vieram as visões.
Formas ciclópicas flutuavam no abismo criaturas sem forma definida, compostas de escuridão líquida e olhos que se abriam em lugares impossíveis. Algumas tinham bocas demais; outras, nenhuma.
Algumas viraram-se lentamente para Silas, como se percebendo nele algo familiar… ou comestível.
Não olhe. Pelo amor de Deus, não olhe.
Mas ele não tinha pálpebras.
Um titã sussurrou algo ao longe e as constelações se partiram como vidro fino.
Silas atravessou véus, camadas, mundos descartáveis.
E então tocou o último véu, que parecia feito de sangue e vidro.
Ele foi expulso, cuspido como anomalia.
Caiu. Não fisicamente, mas a sensação era idêntica à de despencar de uma torre infinita.
O impacto veio na forma de revelação
Um oceano de estrelas quebradas.
Montanhas flutuantes com rachaduras incandescentes. Correntes de luz serpenteando como rios vivos.
E então algo uma força suave tocou-o e guiou-o como quem segura o pulso de um cego.
Diante dele, o espaço se reorganizou.
Formas surgiram como espectros ancestrais. E um reino dilacerado se revelou um império morto, abandonado, o que um dia fora chamado de Tróia.
Ruínas levitavam sobre abismos de luz escura. Torres partidas flutuavam como ossos arrancados de um colosso. As fronteiras do reino latejava, como se ainda sangrasse.
Silas sentiu um arrepio que uma alma não deveria ser capaz de sentir.
Algo aqui estava esperando por ele. Algo antigo. Algo despertou.