— Incrível… — A palavra escapou de Silas quase como um soluço, abafada pela reverberação densa do Mundo Astral. Ele piscou ou executou o equivalente astral de piscar enquanto sua consciência tentava, em vão, abarcar a vastidão diante de si.
A primeira impressão foi de perfeição absoluta… e silêncio. Um silêncio cheio, denso, quase sólido. Como se a própria luz respirasse com cautela dentro daquele reino.
O horizonte se espalhava como um quadro pintado pela aurora primordial, com tons impossíveis de se reproduzir no mundo material. Torres translúcidas subiam ao infinito, curvas e espirais formadas de cristal orgânico, unidas por pontes de luz líquida que pulsava como veias vivas. Algumas cintilavam em dourado, outras carregavam tons azulados ou arroxeados, como se vários céus se sobrepusessem ali.
Cada estrutura irradiava um esplendor tão antigo e tão perfeito que fazia as maiores maravilhas arquitetônicas do Império de Éden parecerem brinquedos frágeis como castelos de areia esquecidos numa praia mortal.
Silas levou alguns segundos para recuperar o fôlego astral.
Como… como algo assim ainda existe?
A pergunta ecoou em sua mente como um sussurro tomado de reverência e medo.
Ele desceu pelo arco de entrada, atravessando uma fronteira que parecia feita de vidro e vento. A cidade astral abriu-se diante dele com ruas amplas, pavimentadas em mosaicos luminosos que formam símbolos desconhecidos como sigilos complexos que se organizavam levemente sempre que alguém passava.
Cada passo fazia o solo emitir um brilho suave sob seus pés, como se o reino reconhecesse sua presença… e, pior, sua intrusão.
Só preciso observar, entender, e sair vivo. Fácil… teoricamente.
Silas puxou o capuz simbólico que moldava sua forma espiritual, tentando esconder as feições humanas. Manteve os ombros baixos, o olhar neutro. Caminhava como um viajante apressado, tentando parecer familiar às ruas que jamais pisara.
Mas até respirar ali parecia perigoso. Os sons dos poucos que existiam ecoavam com uma nitidez anormal. Uma conversa distante parecia ocorrer ao lado de sua orelha onde o ronronar de energia espiritual vibrava como uma corda tensa sob seus pés.
E então ele viu os habitantes.
Seres caminhavam entre os arcos luminosos. Alguns eram humanóides, belos demais, perfeitos demais, com olhos brilhantes e peles que refletiam a luz como metais polidos. Outros eram tão distantes de qualquer forma mortal que pareciam pertencer a mitos jamais registrados pela humanidade.
Havia figuras com chifres curvados como os de carneiros divinos, outras ostentavam cabeças de animais como falcões, leões, cervos, lobos e cada uma exalava uma aura que oscilava entre tranquilidade e ameaça. Havia também formas etéreas, compostas de fumaça colorida, e entidades que pareciam carregar estrelas presas dentro de seus corpos.
Os Daímon.
Silas sentiu o estômago astral se contrair quando viu um deles virar o rosto em sua direção: uma figura alta e esguia, pele azul profunda salpicada por padrões dourados que lembram constelações. Seus olhos eram como astros afogados que eram brilhantes, mas insondáveis.
Silas engoliu seco.
— Então… esses são os Daímon… — murmurou sem perceber.
Lembranças de leituras antigas brotaram como flashes. Os estudiosos sempre afirmaram que os Daímon eram criações do Criador que não falharam. Seres primordiais, feitos à imagem de sua própria ideia de ordem.
Seres que jamais foram expulsos….
Perfeições que sobreviveram ao colapso das Eras…Um arrepio gelado percorreu seu corpo astral.
Eram divididos em dois extremos
Os Mortais eram semelhantes aos humanos, mas infinitamente mais próximos da essência do Criador. Portadores de dons naturais, ligados às leis primordiais.
Os Elohim eram Daímon tão antigos, tão ordenados, tão próximos do núcleo espiritual original que seus nomes causavam medo até mesmo nos demônios mais infames. Para alguns, eram considerados deuses. Para outros… eram terrores do passado.
Silas tentou ignorar o tremor em suas mãos. Continuou caminhando. Entrou mais fundo nas ruas da cidade, cruzando mercados silenciosos, praças adornadas por estátuas vivas e corredores suspensos que conectam torres distantes.
Mas enquanto caminhava, um incômodo crescente se espalhava por sua consciência, uma sensação de fios invisíveis roçando sua mente, examinando-o, testando sua composição espiritual.
Eles conseguem sentir… consegue me ler… não vai dar certo.
— Eu realmente… não deveria estar aqui — sussurrou, quase rindo de nervoso.
Mas a verdadeira pergunta era outra
Se este é apenas o reino… como deve ser aquele que reina?
Ele tentou manter o disfarce até o último momento. Ajustou sua postura, baixou ainda mais o olhar. Evitava fixar atenção por mais de um segundo em qualquer ser. Caminhava como quem já conhece seus caminhos.
Foi inútil.
A vibração do ar mudou abruptamente, como uma corda rompendo.
Vários Daímon interromperam o que estavam fazendo e se viraram para ele. Primeiro um. Depois dois. Depois uma dúzia. Seus olhos eram de dourados, rubros, ocos como estrelas mortas fixos em Silas com intensidade predatória.
Um silêncio sepulcral tomou o ambiente.
— Ele… — murmurou uma voz gutural, soando como pedra arranhando pedra.
— É um humano, não é? — sibilou outra, carregada de incredulidade.
O espanto transformou-se em murmúrios agressivos.
— Um humano aqui?
— Como ousa pisar neste reino?
— Tróia caiu por causa deles!
— Ele deve ser destruído!
Silas ergueu as mãos imediatamente, o desespero transparecendo na voz.
— Ei, calma! Eu não vim como inimigo! Eu só—
Mas ninguém o escutava.
Eles não ouviam e apenas reagiam.
A multidão se aproximou, formando um círculo cada vez mais apertado. Garras se estendiam. Presenças pesadas sufocavam o ar. Línguas desconhecidas entoavam ameaças vibrantes, quase litúrgicas.
O coração astral de Silas pulsava tão rápido que parecia prestes a se dissipar.
Não tenho como enfrentar todos eles… Droga, isso vai dar muito, muito errado…
E então, antes que o primeiro golpe fosse desferido, o mundo congelou.
Um rugido cortou o ar.
Não um som, mas um impacto.
Imenso. Ancestral. Tão poderoso que os vitrais vivos das torres distantes tremeram como água em tempestade. A força do rugido pressionou cada alma presente, afundando em seus espíritos como uma ordem gravada a fogo.
Silas perdeu o fôlego.
Os Daímon recuaram imediatamente, olhos arregalados, tomados por um medo reverente.
Ao longe, no horizonte, muito além das ruas luminosas, uma figura colossal ergueu-se diante de um castelo astral em forma de um palácio dourado com muralhas flamejantes e torres que pareciam lanças voltadas para o céu.
Um leão dourado.
Gigantesco. Majestoso. Terrível.
Sua juba brilhava como ouro líquido, ondulando como uma tempestade solar. Seus olhos eram dois sóis minúsculos, luminosos e ferozes.
Silas nem conseguia respirar de tamanha grandiosidade como se um ser divino tivesse em sua frente.
— Aquele é…
O leão inclinou-se. Reuniu forças.
E saltou.
O salto rasgou a própria distância como se o espaço não passasse de uma cortina frágil. Em um único movimento, atravessou o reino astral inteiro. A aura que o acompanhava era tão brutal, tão majestosa, que o chão tremeu antes mesmo de ele aterrissar.
A criatura caiu no epicentro do círculo.
A explosão de luz astral obrigou Silas a fechar os olhos. Quando a claridade se dissipou, a forma bestial não estava mais ali.
No centro, erguendo-se entre rachaduras recém-formadas no solo luminoso, estava um homem.
Alto. Imenso. De ombros largos como os de um guerreiro mítico. Sua pele tinha um brilho dourado, e seu cabelo curto, loiro e desalinhado lembrava uma juba contida. As unhas negras e longas pareciam garras, e suas vestes nobres, pesadas, moviam-se como se respirassem.
Ele ergueu a cabeça e encarou Silas.
Aquele olhar tinha o peso de uma lei natural.
Os Daímon imediatamente se curvaram, em absoluto temor.
Silas sentiu o estômago astral afundar.
Esse homem… essa presença… ele poderia me destruir com um pensamento.
A voz dele ecoou como trovão contido
— O humano… está sob minha proteção.
Ninguém ousou mover um músculo.
O homem cruzou os braços, seus olhos dourados varrendo a multidão.
— Alguém pretende contestar isso?
Silêncio total.
Então ele voltou-se para Silas, observando-o como se enxergasse camadas ocultas de sua alma.
— Eu sou Nemeia, Príncipe do Reino de Tróia.
Um meio-sorriso surgiu em seus lábios algo entre curiosidade e desafio.
— E você, pequeno humano… vai me explicar o que está fazendo no meu reino.