O objetivo de Silas era algo bastante simples… certo? Pelo menos no papel, era. Encontrar Typhoeus. Só isso. Uma busca direta, lógica, quase burocrática como se atravessar um reino astral governado por criaturas que olhavam humanos como se fossem pragas fosse a parte trivial da coisa.
— Simples… é. — Ele quase riu sozinho. Quase.
No fundo de sua alma se aquilo que ele projetava ali ainda podia ser chamado de alma havia uma certeza desconfortável nada daquilo era simples. E menos ainda razoável. Ele era um humano tentando caminhar em um plano onde até a poeira viva poderia esmagá-lo se quisesse.
Silas fazia parte da elite dos melhores dos melhores entre os humanos, treinado a ponto de ser capaz de duelar com espectros e caminhar no Mundo Espiritual sem perder a razão. Mas a diferença entre ele e um verdadeiro Daímon…Bom.
Era a diferença entre uma formiga e um sol.
Ele sabia disso. Admitiu isso. Mas, surpreendentemente, isso não o paralisava. Sua mente insistia em repetir, como um mantra teimoso
— Eu consigo. Eu vou conseguir. Não cheguei até aqui para falhar.
A confiança era quase cômica, mas era o que o mantinha inteiro. Se deixasse o medo assumir, evaporaria.
E talvez fosse por isso que a beleza daquele mundo quase o distraiu do propósito.
As ruas de Tróia Astral se estendiam como rios de ouro lapidado. As paredes brilhavam com inscrições vivas, que se moviam como serpentes de luz. Cada sombra parecia respirar. Cada som soava como metáfora. Era tão deslumbrante que Silas, por um momento, esqueceu que estava em missão.
Esqueceu que estava… fodido.
Ah, sim. Onde estávamos? Silas lembrou no mesmo instante que ele estava muito, muito fodido.
Porque diante dele, fechando o círculo, estavam dezenas ou talvez centenas de Daímon. Até aqueles que mantinham expressão neutra exalavam algo como… fúria contida. E o preconceito. Um desprezo que penetrava sua forma astral como lâminas frias.
Os olhos eram os piores. Olhos de cabra, de serpente, de falcão, de bestas cujo nome ele nem conhecia. Todos voltados para ele. Todos julgando.
Silas ergueu as mãos devagar, tentando não parecer ameaçador.
— Calma, calma… eu sou só um turista perdido. Olhem só pra mim, eu nem tenho garras, nem dentes, nem—
— Humano. — rosnou um Daímon de pele azulada, interrompendo seu pensamento. — Um humano ousa pisar aqui.
— Isso deve ser uma piada. — disse outro, com voz que parecia feita de metais raspando. — Eles voltaram? Depois de tudo?
Depois de tudo. A expressão ecoou na mente de Silas.
Ele não entendia completamente o que havia acontecido com aquele reino, mas não era burro. Ele juntou pedaços das informações cruas que recebera antes de sua chegada. E, com uma lógica gélida, ele reconstruiu a tragédia em sua mente
Typhoeus deixou Tróia em uma jornada heróica, para cumprir um acordo com o império e ajudar os oprimidos. Em sua ausência… o reino havia caído? Ruínas. Mortes. Perseguições. E quando ele finalmente retorna, trazendo vitórias… fora aprisionado. Desonrado. Traído.
— Então é isso… — Silas tragou em seco enquanto mais Daímon se aproximavam.
— Eles culpam os humanos. Culpam o Império. Culpar qualquer um que se pareça remotamente com a causa da queda… e adivinha? Hoje é meu dia de sorte.
Mas isso tudo ainda era o de menos.
Porque o maior problema, o verdadeiro terror não era o cerco, nem as lâminas espirituais, nem os rugidos.
Era ele.
Nemeia.
O ser que acabara de saltar do alto do castelo distante, transformando-se de leão dourado colossal para uma figura humanoide que rasgou o ar com sua simples presença. Ele agora estava a poucos metros de Silas sendo alto como uma muralha, ombros largos, cabelos dourados que lembravam uma juba em miniatura. Unhas pretas, longas, afiadas como garras tremulavam na ponta de seus dedos. As vestes eram largas, nobres, pesadas, com algo que lembrava a pele de fera ancestral.
E os olhos…
Ah. Os olhos eram o pior.
Amarelos. Profundos. Selvagens. Mas inteligentes. Muito inteligentes.
Silas sentiu como se todo o universo tivesse virado o rosto para observá-lo naquele instante. Medo ancestral, primitivo. Não medo psicológico, mas algo que vinha de eras anteriores à razão, antes do fogo, antes do nome.
— Meu Deus…
— Eu… eu acho que estou me borrando. Se eu tivesse um corpo aqui, eu estaria me borrando. Definitivamente.
Um Daímon atrás dele rosnou
— Príncipe Nemeia… quer que acabemos com essa criatura?
“CRIATURA?! Sou eu o bicho exótico aqui? Ah, tecnicamente sim. Humano no zoológico astral. Perfeito.”
— Príncipe Nemeia! — sua voz tremia, mesmo sendo imensa. — O que deseja que façamos com… isso?
“Isso?! Sou ‘isso’ agora?! Maravilha. Já fui chamado de coisa, criatura, inseto e agora isso. Promoção
Nemeia não respondeu de imediato.
Apenas deu um passo à frente.
E Silas sentiu que literalmente sentiu seu ser tremer.
Nemeia o observou como se examinasse uma anomalia, um erro de cálculo, um inseto curioso que aparecerá no lugar errado.
— Humano. — sua voz reverberou como trovão abafado. — O que você é? Um emissário? Um espião? Ou apenas um tolo que assinou sua própria morte?
Silas sentiu seus joelhos astralinos quase dobrarem. Cada sílaba parecia pesar toneladas Silas abriu a boca… e nada saiu.
Sua mente gritava
—Eu devia falar. Eu devia MESMO falar. Qualquer coisa. Uma brincadeirinha? Não. NÃO. Nada de piadas. Humor mata. Ou melhor, o humor me mata. Pensa, Silas. Pensa. Algo diplomático. Algo inteligente. Algo—
Nemeia inclinou a cabeça.
— Fale. Agora.
Silas engoliu o equivalente astral de saliva.
— Beleza. É oficial. Eu tô ferrado.
Porque naquele momento, encarando aquele titã dourado, Silas sentiu o mundo espiritual mudar ao redor como se cada pedra, cada brisa, cada sombra estivesse esperando sua resposta.
E ele soube
Uma palavra errada poderia significar ser estraçalhado por garras capazes de dividir montanhas.
Mas silêncio…Silêncio também matava.
E enquanto dezenas de Daímon se aproximavam mais, rosnando, ansiosos pelo veredito…
Silas pensou, com amargura
— Typhoeus… onde quer que você esteja, espero que valha a pena. Porque eu estou prestes a virar tapete de leão.
E foi ali, naquele instante, naquele círculo apertado, naquela pressão esmagadora da presença divina do Príncipe de Tróia, que Silas percebeu
Uma palavra errada significaria o fim.
Uma palavra certa…Talvez prolongasse sua vida por alguns segundos.
Mas o que quer que acontecesse depois disso…Ainda seria um pesadelo.
Porque Nemeia continuava olhando para ele como se avaliasse qual parte dele deveria devorar primeiro.
E Silas sabia
Ele estava no limite.
E não tinha para onde correr.