Silas contou mentalmente até três.
Um.
— Respira, Silas… respira. Quer dizer… tenta? — pensou, percebendo o quão ridículo era tentar controlar um corpo que, tecnicamente, nem corpo era.
Dois.
— Se você morre aqui… morre de vez mesmo? Ou só evapora? Ninguém do Império explica isso direito… Cardinais idiotas…
Três.
Ele reuniu cada fragmento de coragem, cada estilhaço de sanidade que ainda não havia derretido no terror puro daquele cerco, e deixou a voz escapar.
Fraca.
Tremida.
E bem cagada a propósito
Mas escapou.
— Eu… eu busco ajuda… — sua voz falhou, então engoliu seco e tentou outra vez. — Os humanos precisam de ajuda.
O silêncio que se seguiu não foi um silêncio.
A reação foi uma completa negação com um misto de descrença. Foi como se todo o plano astral tivesse prendido a respiração.
E então, como uma represa antiga se partindo.
— ISSO É UM ULTRAJE! — rugiu um Daímon gigantesco de pele de obsidiana, batendo o punho no chão e fazendo a poeira espiritual vibrar.
— Atrevimento! Insolência! — rosnou outro, com garras curvas que tilintavam como lâminas vivas.
— Ajuda? De humanos? — zombou uma Daímon de pele azulada, os olhos estilhaçados de brilho rúnico. — Depois do que fizeram conosco?
Outros Daímon começaram a avançar, criando um semicírculo de puro ódio.
— Expulsem-no!
— Despedacem-no!
— Mandem-no de volta para as cinzas do mundo material!
— Que sua alma seja devorada pela própria culpa!
Aquela não era apenas raiva.
Era muita dor. Dor de um lar destruído.
Dor de um povo traído. Dor que Silas conseguia sentir no ar bastante palpável em forma de uma mágoa tão densa que parecia pesar sobre sua própria forma astral.
Ele ergueu as mãos, instintivamente.
— E-ei! Pera, pera, pera—
— CALADO! — berrou um Daímon atrás dele, a boca se abrindo de forma antinatural, revelando presas longas como dedos.
Silas engoliu.
— Maravilha… vão me desintegrar antes mesmo de eu explicar — pensou, já imaginando seu espírito sendo partido como vidro.
Mas antes que a multidão fizesse o primeiro movimento, antes que o caos se tornasse inevitável, uma única voz rasgou o espaço.
Não era grito.
Não era ordem.
Era… lei.
— Silêncio.
A palavra saiu da boca de Nemeia.
E tudo parou.
A temperatura caiu.
O ar tremeu.
O próprio solo astral vibrou como se estivesse prestes a implodir.
Até Silas sentiu que sua alma havia sido prensada por uma mão invisível.
Os Daímon se calaram imediatamente, como se as gargantas tivessem sido lacradas por um comando divino.
Nemeia deu um passo à frente.
Um único passo e o chão rachou a baixo de seus pés.
Ele se inclinou para Silas, aproximando-se o bastante para que o humano sentisse ou imaginasse sentir algo como um calor predatório que emanava de seu corpo.
Os olhos dourados do príncipe eram um abismo queimando em fúria contida.
— Ajuda? — repetiu Nemeia, saboreando a palavra com nojo puro.
Silas tentou não tremer e falhou completamente.
— S-sim…
Nemeia franziu o cenho levemente.
— Os humanos… pedem ajuda. Vocês, mortais frágeis… que mal conseguem manter uma forma no plano astral por alguns minutos… pedem ajuda ao meu povo?
Ele ergueu uma garra e apontou diretamente para o peito de Silas.
— Depois de cuspirem na mão estendida de meu pai… e de destruírem tudo o que construímos juntos?
Silas abriu a boca, preparando a explicação mas–
— Eu não destruí nada! Eu vim em busca de Typ—!
— NÃO FALE O NOME DELE.
A explosão não veio da multidão.
Veio de Nemeia.
A aura do príncipe se expandiu como um furacão dourado, esmagando Silas contra o próprio ar. Sua forma astral se distorceu, tremendo como uma chama prestes a apagar.
Era como estar diante de uma montanha viva decidida a esmagá-lo.
Nemeia avançou mais um passo.
— Você não tem o direito de pronunciar o nome do meu pai.
A mente de Silas congelou.
— Pai? Typhoeus é… o pai dele?! Isso não estava em nenhum relatório…ninguém sabia disso…mas espera e o príncipe certo? E natural isso que idiota eu fui
— E-eu não sabia… — tentou Silas.
— Cale-se.
A palavra o golpeou como um martelo espiritual.
Um Daímon da multidão ousou dar um passo à frente.
— Príncipe! Permita que o punamos! Ele ousou profanar o nome do—
Nemeia levantou um único dedo.
E o Daímon congelou. Literalmente. Como se a realidade tivesse decidido segurá-lo no lugar.
Sem desviar o olhar de Silas, o príncipe continuou com a imponência de um verdadeiro rei da selva.
— Você vem ao meu reino… caminha sobre as ruínas do meu povo… menciona meu pai com essa boca imunda… e ainda ousa pedir ajuda?
Silas sentiu sua coragem ruir… mas se recusou a deixar que caísse.
Porque se caísse agora, a missão morria junto dele. É com ela muito provavelmente o próprio Império também.
Ele respirou fundo ou simulou respirar e respondeu
— Sim… eu ouso.
A multidão enlouqueceu.
— EXECUÇÃO!
— QUEBRA-O!
— FAÇA-O PAGAR!
Mas Nemeia ficou parado, imóvel, com uma expressão impossível de ler.
Até que, lentamente…
Ele sorriu.
Um sorriso que não tinha nada de humano. Era o sorriso de um predador diante de uma presa que… surpreendentemente… ainda não havia fugido.
— Muito bem — disse o príncipe. — Explique, humano.
Silas sentiu o estômago cair, como se estivesse à beira de despencar de um penhasco.
— Certo… é agora… Se eu errar, acabou…
Ele reuniu toda sua lucidez restante e falou:
— Uma parte do Império foi comprometida pela praga. A contaminação se infiltrou mesmo com a proteção da Arca… as comunicações estão falhando… e não conseguimos reunir um exército antes que tudo se espalhe em larga escala.
Nemeia soltou um riso baixo.
Um riso amargo.
— Então vocês decidiram recorrer àquilo… de novo. As ogivas nucleares que um dia ajudaram o Império. Sempre tão previsíveis.
Silas manteve o olhar firme ou tentou.
— Sim.
— Pelo menos é honesto — disse Nemeia. — Pois bem… me acompanhe.
Silas franziu o cenho.
— Acompanhar para onde?
Nemeia virou-se de costas, o manto dourado ondulando como labaredas.
— Para a reunião imperial.
Ele olhou por cima do ombro.
— Onde decidiremos se ajudamos vocês… ou deixamos o povo te esfolar vivo.
Silas sentiu o mundo girar.
— Ótimo… perfeito… minha vida agora depende da votação de criaturas que querem arrancar minha alma do corpo…
E, mesmo assim, ele deu o primeiro passo atrás do príncipe.
Porque fugir não era mais uma opção.
Ass do Autor: Vá General Divino Silas Mahoraga se adapte ao enredo!