Caminhar pelas vastidões de Tróia era uma experiência paradoxal.
Por um lado, Silas não conseguia deixar de ficar maravilhado. As ruas eram largas, pavimentadas com pedra astral que refletia luz própria, como se a cidade inteira respirasse um brilho dourado e antigo. As torres colossais se erguiam como lanças contra um céu de constelações vivas, e cada muralha carregava runas que pulsava em padrões que ele não compreendia. Era uma utopia em ruínas com beleza demais para ser ignorada, triste demais para ser celebrada.
Mas… ao mesmo tempo, era sufocante.
Os olhares eram como facas. Cada Daímon que passava desviava o olhar só para pousá-lo novamente em Silas, analisando-o, julgando-o, condenando-o.
Alguns rosnavam baixo. Outros sussurravam algo em línguas antigas que, mesmo sem tradução, transmitiam intenção assassina.
E havia Nemeia.
A presença dele era… enorme.
Não física, embora ele fosse imponente mas espiritual. Era como caminhar ao lado de uma estrela viva. O ar ao redor dele parecia mais pesado, mais quente, mais consciente. Tudo naquela rua eram sombras, poeira astral, até as janelas parecia orbitar sua existência, como se ele fosse um sol e o resto do mundo tivesse esquecido que podia ser independente.
Silas tentou ignorar a sensação de que sua própria alma estava encolhendo.
Tentou puxar conversa.
— Então… — sua voz falhou, e ele limpou a garganta, forçando casualidade que definitivamente não sentia. — Como… isso aconteceu?
Nemeia não respondeu de imediato.
O príncipe apenas virou o rosto na direção dele em um gesto mínimo, mas que carregava mais ameaça do que um exército armado antes de continuar caminhando.
Silas tentou de novo.
— Digo… como a cidade acabou assim? — perguntou, olhando para os prédios quebrados, as pontes despedaçadas, as estátuas caídas. — O que aconteceu com Tróia?
Nemeia caminhou mais alguns passos em silêncio.
Silas estava quase desistindo quando, finalmente, o Daímon falou.
— Após a saída de meu pai para o mundo material… e daquela coisa que o acompanhava, Saul… o Olimpo decidiu agir.
Ele disse “Olimpo” com um veneno tão intenso que Silas quase tropeçou.
— Eles atacaram enquanto estávamos vulneráveis — continuou Neméia, a voz baixa, mas cheia de ecos de batalhas antigas. — Foi uma guerra sangrenta. Um massacre planejado. Usaram nossos próprios portões contra nós.
Os dedos de Nemeia se fecharam lentamente, como se segurassem uma memória quente e dolorosa.
— Meu irmão mais velho… o primogênito de meu pai…
A voz dele falhou por um instante.
Silas sentiu o mundo astral ao redor ficar mais frio.
— Ele foi arrastado por toda Tróia em uma carruagem. Acorrentado. Torturado. Humilhado diante do nosso povo.
Silas parou.
A imagem bateu nele como um soco.
— Por Cristo…
Nemeia virou a cabeça devagar.
— Não cite o nome de Cristo de sua boca…esse nome é grandioso demais para ser usado de maneira leviana — respondeu, seco. — Nenhum dos seus véio quando foi pedido ajuda. Nós enfrentamos deus após deus enquanto vocês…viviam no conforto graças às lutas de meu pai por vocês
Silas abriu a boca, mas não conseguiu dizer nada.
Nemeia voltou a caminhar.
— É isso — disse ele, gesticulando para a cidade devastada — é o resultado.
Torre quebrada. Templo em ruínas. E uma população que carregava cicatrizes visíveis e invisíveis. Tudo porque um rei confiou demais… e foi abandonado após não ser útil mais.
Silas sentiu o peso de tudo.
O peso dos olhares.
O peso da culpa.
O peso da expectativa.
O peso de estar pisando em um cemitério vivo.
Ele acelerou o passo para acompanhar o príncipe.
— Nemeia… — começou, com cuidado — sinto muito por tudo que vocês passaram. Eu realmente sinto. Mas juro… eu não vim aqui para repetir os erros do passado.
Nemeia não respondeu.
Apenas continuou caminhando.
E, pela primeira vez, Silas teve a impressão de que, talvez, muito profundamente enterrado sob camadas de fúria, orgulho e poder divino…
… o príncipe havia ouvido.
— Eu nunca gostei de humanos… — disse Nemeia de repente, sem aviso, enquanto caminhavam entre as colunas destruídas.
A frase caiu como uma pedra. Silas quase tropeçou no próprio pé astral.
Nemeia continuou, a voz calma demais para ser confortável
— Mesmo quando Saul chegou em nosso reino.
Silas piscou.
— O Imperador Saul… você o conheceu?
— Sim — respondeu o Daímon, sem qualquer hesitação. — Embora ele não era um imperador ainda. Era apenas um tolo que achou que roubar um anel do Papa seria uma ideia brilhante.
Silas parou.
— Ei! Isso não aconteceu!
Nemeia virou o rosto lentamente, os olhos dourados brilhando como lâminas no escuro.
— Está insinuando… que eu, Nemeia, minto?
Silas congelou tão rápido que quase virou uma estátua.
— Eeee… claro que não! — levantou as duas mãos, apressado. — Eu só interpretei mal, sabe? É que… nos registros… isso não está escrito.
O príncipe soltou uma risada curta.
Não era divertida. Era daquele tipo que animais fazem antes de atacar.
— Você realmente acha que um Imperador registraria coisas vergonhosas sobre si mesmo?
Silas abriu a boca… fechou… abriu de novo.
— Olhando por esse ponto…
— É o único ponto possível — disse Nemeia.
Eles seguiram andando, e o príncipe continuou como se estivesse contando uma história banal
— Eu não sei todos os detalhes, mas… há muito tempo, Saul era apenas um dos muitos discípulos do Papa. Curioso demais para seu próprio bem. Então decidiu roubar um dos anéis dele para “experimentar”.
Silas franziu o cenho.
— Isso é insanidade.
— Sim — concordou Nemeia. — Devo admitir que tenho certa admiração por tamanha estupidez. É quase… artística.
Silas tossiu.
— E o que aconteceu exatamente?
Nemeia gesticulou com uma das mãos.
— Ele tentou usar o anel. O anel respondeu. O véu rasgou como papel, e um buraco de minhoca surgiu, puxando o pobre mortal para o nosso plano. Ele quase morreu antes mesmo de chegar aqui. Quando o encontramos… — os lábios do príncipe se curvaram — estava fugindo de um bicho inofensivo, igual a um covarde.
Silas estreitou os olhos.
— Inofensivo?
Nemeia deu de ombros.
— Para nós. Para vocês, seria equivalente a uma besta primordial devoradora de estrelas. Mas para nós… um animal doméstico.
Silas ficou em silêncio.
Um longo silêncio.
Depois murmurou
— Bom… isso explica muita coisa sobre a personalidade do Imperador.
— De qualquer forma — continuou o Daímon — meu pai o salvou. O abrigou. E, por um tempo, o ensinou como se fosse seu pupilo. Saul era fraco, ignorante, incapaz de compreender metade do que via. Mas… empenhado. Teimoso. E meu pai respeitava teimosia mais do que força.
Silas absorveu a informação.
— Então… Typhoeus o treinou? De verdade?
— Sim — respondeu Nemeia, com um suspiro pesado. — E, em troca, Saul…
Ele não terminou a frase.
Não precisava.
O silêncio dizia tudo.
Os dois seguiram. O ar ficou mais denso.
As ruas mais largas. As construções maiores, mais antigas, mais solenes como se estivessem atravessando a espinha da própria cidade.
Até que finalmente pararam.
Diante deles erguia-se um castelo tão colossal e magnífico que Silas perdeu a respiração que nem tinha.
Torres como pilares celestiais.
Portões enormes feitos de ouro queimado.
Runas vivas circulando nos muros como serpentes luminosas.
E uma aura tão intensa que parecia tentar moldar a realidade ao redor.
Nemeia cravou o olhar no humano ao seu lado.
— Enfim… chegamos.
A voz dele ecoou como um trovão contido.
Silas encarou o castelo.
A sede do conselho. O centro político de Tróia. Onde os Daimons ancestrais se reuniam. Onde destinos eram decididos.
E onde ele seria julgado ou executado dependendo de como agisse.
Silas engoliu seco.
Meu Deus… o que eu estou fazendo?
Nemeia abriu um sorriso que não prometia nada bom.
— Bem-vindo… ao Castelo Régio de Tróia. A reunião imperial o aguarda.
E, do lado de dentro, Silas sentiu que o castelo inteiro observava sua entrada.