Adentrar o castelo foi como atravessar o limiar de um mito vivo. Silas sentiu o ar mudar mais denso, mais antigo, quase consciente. As colunas serpenteavam para cima como espirais petrificadas, e os vitrais filtravam a luz em tons que lembravam ecos de mundos esquecidos.
É… magnífico, pensou ele, incapaz de impedir o arrepio que subiu por sua nuca. Ou assustador. Talvez ambos.
Neméia caminhava à sua frente com a postura de quem carregava não apenas autoridade, mas sangue real. Seus passos ressoavam no mármore como batidas de um coração colossal oculto sob o castelo.
— Os membros da realeza e do conselho já foram avisados — disse ele, olhando rapidamente por cima do ombro. — Não fale até lhe dirigirem a palavra. Alguns têm… temperamento difícil.
Silas apenas assentiu.
Ele o deixou com dois guardas cujas iris reptiliana o avaliaram com inquietante intensidade. Quando retornou, alguns minutos depois, fez um gesto curto.
— Sigam-me.
O corredor final conduziu a uma porta ornamentada com símbolos que pareciam vibrar com vida própria. Assim que ela abriu, Silas quase recuou.
A sala de reunião era vasta. Uma mesa oval ocupava o centro, cercada por figuras cuja mera presença parecia dobrar a atmosfera. Olhos se voltaram para ele curiosos, desconfiados, predatórios.
Neméia tomou seu assento. Silas permaneceu de pé, sentindo o peso de cada olhar como lâminas pressionadas contra sua pele.
Calma. Respira. Não deixe eles sentirem medo. Ou melhor… tente não sentir.
A primeira figura a falar foi a mulher no centro da mesa. Bela e inquietante como uma serpente coroada, seus cabelos longos e negros escorriam como sombras líquidas. Os olhos, fendas esmeraldas de pupilas verticais, analisavam Silas com uma calma que era mais perigosa que qualquer raiva. Sua pele possuía um brilho escamoso, e dois chifres curvos emergiram de sua cabeça, emoldurando um rosto de realeza absoluta.
— Então este é o visitante de que Neméia falou? — A voz da Rainha Equidna era suave, mas cada sílaba parecia deslizar como seda sobre lâminas.
Silas inclinou levemente a cabeça.
— S-Sim, Majestade.
Equidna sorriu, e a expressão fez Silas desejar não ter falado.
À sua direita, um jovem de estatura baixa apoiou o queixo na mão, observando Silas com uma curiosidade quase infantil. O cabelo era negro no topo, descendo em mechas arroxeadas, e parte da pele lembrava discretamente escamas recém-formadas.
— Ele parece frágil demais para ser interessante… — murmurou o Príncipe Hidra, arqueando uma sobrancelha. — Tem certeza de que vale nosso tempo?
Silas abriu a boca para responder, mas Neméia lançou-lhe um olhar afiado. Ele fechou novamente.
Do outro lado da mesa, um homem corpulento riu alto com um som grave, quase bestial. Tinha cabelos longos e selvagens, vermelhos com mechas brancas, e grandes chifres taurinos. O peito nu exibe músculos capazes de partir pedra.
— Frágil, sim. Que importa? Já vi ratos derrubarem leões quando o destino decide brincar — disse o General Asterius, batendo uma das mãos enormes contra a mesa, fazendo-a tremer.
O ruivo desgrenhado ao seu lado o Príncipe Ladão inclinou-se para frente, os olhos dourados afiados como de um predador.
— Ou quando alguém mente bem o bastante — acrescentou ele, entre dentes.
Silas sentiu o estômago se contrair.
Maravilha. Já acham que sou um impostor. Um ótimo começo.
A figura seguinte, de pele bronzeada e cabelos volumosos em tons de laranja queimado, abriu um sorriso cheio de dentes afiados. Suas unhas negras tamborilava na mesa como garras impacientes.
— Ele não fede a mentira — disse o Príncipe Esfinge. — Mas fede a medo. Quase a mesma coisa.
— Ora, Esfinge, deixe o rapaz respirar — comentou uma mulher de cabelos esverdeados em ondas que desciam até o vestido longo e elegante. Seus olhos possuíam um brilho aquático. — Nem todos estão acostumados a enfrentar o conselho sem preparação. — A Princesa Scylla sorriu de maneira tranquilizadora. — Diga-nos, jovem humano fraco e impotente estás assustado?
Silas pensou por um instante. Mentir ali parecia perigoso.
— Um pouco — admitiu, sentindo as palavras escaparem antes que pudesse reconsiderar.
— Pelo menos é honesto — disse outra voz, leve e cortante.
A Princesa Quimera tinha cabelos brancos curtos e asas de águia dobradas atrás das costas. Observava Silas como alguém que tenta decidir se o objeto diante dela é fascinante… ou descartável.
Por último, um homem de cabelo curto alaranjado claro, com escamas brilhando discretamente na pele, inclinou a cabeça em saudação educada.
— Sou o Príncipe Cólquida. Não se preocupe — disse ele. — A… intensidade inicial deles é parte do protocolo.
Silas quase riu.
Se isso é protocolo, eu preferia não saber como é quando estão irritados.
Equidna cruzou as mãos sobre a mesa, seus olhos serpentinos-divinos brilhando.
— Muito bem, Silas. Você está diante da realeza e dos herdeiros das linhagens primordiais de Tróia. Diga-nos… por que veio até nosso castelo? E, mais importante, o que exatamente você busca?
O coração de Silas disparou.
Ali, naquele instante, ele percebeu que cada resposta que desse poderia selar seu destino para o bem ou para o abismo.
Silas respirou fundo.
— Eu… eu busco ajuda.
Um estalo abafado ecoou quando Hydra bateu a mão espalmada na mesa.
— Não me diga? — ele ergueu o queixo com desdém — Isso nós sabemos, pequeno verme.
Silas sentiu o rosto queimar, mas antes que pudesse pensar em responder, Ladão inclinou-se para frente, cruzando os dedos.
— Hydra. — A voz do príncipe era firme, carregada de autoridade fria. — Vamos pelo menos deixá-lo terminar.
Hydra bufou, mas recuou na cadeira.
Silas engoliu seco.
Calma. Respira. Não deixe a voz tremer. Eles farejam medo.
— Como eu… estava dizendo — retomou, tentando manter a compostura. — Uma parte do Império foi comprometida por uma praga de Belzebu. Ela infectou a região burlando a proteção da Arca. A cidade onde está a Arca e o alvo… nós perdemos todo o contato com o resto do Império.
O silêncio que se seguiu não foi de surpresa e sim de incredulidade agressiva, como a calma de predadores antes de estraçalhar uma presa.
Então Hydra explodiu
— Um momento! — ele se inclinou sobre a mesa, os olhos escamados estreitos. — Você está dizendo que mesmo COM a Arca… uma dádiva direta do Criador… vocês conseguiram, mesmo isolados, serem pegos de calças arriadas por Zebub?
— Zebub…? — Silas repetiu, confuso.
Neméia virou-se para ele, cruzando os braços.
— É o nome de Belzebu antes da queda… quando ele ainda caminhava no Mundo Astral.
Silas piscou. Uma sensação de frio percorreu sua espinha.
— Espere… o Senhor das Moscas era um de vocês? — perguntou, a descrença evidente.
Hydra soltou uma risada seca.
— Isso era meio óbvio, não?
Asterius rosnou algo em aprovação, enquanto Quimera mantinha os olhos fixos em Silas, avaliando cada microexpressão. Scylla levou uma das mãos à boca, pensativa, e Esfinge inclinou-se para estudar o jovem como se analisasse as camadas de uma charada viva.
Dentro do peito de Silas, algo latejou.
O quê? Belzebu… um deles? Então o Império todo é ainda mais ignorante sobre as origens dessas criaturas do que imaginávamos.
Equidna foi quem quebrou o murmúrio crescente.
— Zebub… — ela disse lentamente, saboreando o nome como se evocar memórias proibidas. — Não ouvimos esse título há… eras. — Seus olhos serpentinos pousaram em Silas. — Conte-nos mais sobre essa praga. Como ela se manifestou? E, principalmente… por que veio a NÓS em busca de ajuda?
Silas sentiu o peso de cada olhar. A pergunta pairou no ar como uma lâmina prestes a cair.
Silas umedeceu os lábios. Era como falar diante de um tribunal de criaturas que já haviam visto mundos nascerem e morrerem.
— A praga é uma infestação da Ordem Hymenoptera… — começou ele, organizando mentalmente os detalhes. — Ela surgiu nas fazendas de Shebaa. No começo parecia um surto isolado, mas… se espalhou rápido demais. Rápido demais para ser natural. Alguém, de dentro do Império, conseguiu colocá-la lá.
Um arrepio percorreu a espinha de Quimera onde suas asas se eriçaram.
Scylla franziu o cenho, inquieta.
Esfinge apenas sorriu, como se já tivesse previsto aquela conclusão.
Silas continuou:
— Com a situação saindo do controle, eu sugeri recorrer à ajuda de um Daemon. O antigo Imperador Saul sempre falou… bem deles. Falava com respeito, quase como reverência. Então… achei que—
— Um Daemon, hm? — Ladão estreitou os olhos, avaliando cada nuance da voz de Silas. — Uma decisão ousada para alguém do seu escalão.
“Alguém do meu escalão”… você nem sabe qual é o meu escalão. Silas pensou, mas engoliu o comentário.
Antes que ele pudesse responder, a temperatura da sala pareceu mudar. A Rainha Equidna se endireitou no assento, os olhos estreitando-se até virarem fendas venenosas.
Enquanto ela falava, um sutil chiado serpentino ecoou na sala
— Aquele desgraçado…
O silêncio despencou como uma muralha.
Hydra virou-se rapidamente para a mãe.
— Mãe…?
Asterius cerrou os punhos, músculos tensionando as cordas prestes a romper. Cólquida desviou o olhar, desconfortável, como quem já antecipava o peso daquela revelação. Neméia apenas fechou os olhos como se esperasse há muito tempo que esse nome voltasse à tona.
Silas sentiu o estômago afundar.
Eu… disse algo errado? O Antigo Imperador realmente fodeu tudo em?
Equidna fixou Silas com um olhar que parecia capaz de despir sua alma.
A sala vibrou não com som, mas com raiva antiga, densa, quase material, quando Equidna ergueu-se.
Seus olhos serpentinos queimam como brasas verdes.
— Saul falava bem de nós? — Sua voz deslizou como veneno fervente. — Mas é claro que sim. Porque fomos nós que fizemos a maior parte do trabalho sujo que o alavancou ao poder!
As palavras ecoaram como aço raspando em pedra. Silas instintivamente deu um passo para trás.
Equidna continuou, cada frase mais pesada que a anterior
— Ele copiou cada migalha de conhecimento que meu marido lhe ofereceu. E quando meu marido e os outros conquistaram terras, ergueram muralhas, subjugaram monstros e moldaram fronteiras…
— Ele mostrou os dentes.…assim que Saul finalmente alcançou seu poder definitivo, eles já não eram mais úteis.
Asterius rosnou, a raiva martelando no peito largo como um tambor de guerra.
Hydra apertou os punhos, escamas surgindo no dorso das mãos.
— E o que ele fez? — Equidna continuou. — Os mandou embora a pontapés como cães abandonados. E quando meu marido — ferido, exausto, leal ao aluno pediu ajuda a Saul… o Imperador simplesmente cuspiu na benevolência dele.
Silas sentiu o ar se tornar mais leve… ou não havia mais ar? Seus pulmões queimavam. A sala parecia dobrar-se, distorcer-se. A pressão espiritual deles o esmagava.
Esfinge sorriu, como se apreciasse o espetáculo.
Equidna inclinou-se para frente, seu olhar cortante como lâminas esterilizadas.
— Então me diga… patético humano… — A voz gotejava veneno. — O que você tem a dizer antes de simplesmente destruirmos você completamente?
Silas sentiu o desespero lançar garras ao redor de seu peito.
É agora. Ou morro aqui.
Ele ergueu o queixo não por coragem, mas porque não havia mais alternativa.
— Eu vim… — sua voz falhou por um instante, então voltou com firmeza — …oferecer a libertação de Typhoeus.
A temperatura da sala subitamente caiu.
Ou talvez tenha subido. Silas não conseguia discernir. Tudo girava.
A reação foi instantânea
— COMO OUSA! — Hydra bradou, levantando-se tão rápido que a cadeira tombou para trás. Seus olhos eram fendas de puro ódio ancestral.
Equidna bateu a mão na mesa com força suficiente para rachar a madeira.
— Está blefando! Ninguém, nem mesmo um imperador, tem meios para libertar o Titã Caído. Você é só mais um humano insolente!
Neméia se levantou devagar. Sua voz era baixa, mas afiada como gelo sob luz lunar.
— Você realmente é um suicida, Humano.
Silas sentiu o coração batendo dentro da garganta. Eles vão me matar. Agora.
Agora mesmo.
A única coisa que Silas pensou foi
Imperador Saul e um tremendo de um filho de uma puta!