— Espera! Eu posso explicar! — Silas ergueu as mãos, a voz quebrando na borda do desespero.
Hydra gargalhou em um som seco, escamoso, quase infantil na crueldade.
— Jura? Então explica rápido para que possamos matar você!
Silas engoliu o medo que lhe subia como fel.
— Bem… eu poderia libertar Typhoeus de sua prisão.
Por um instante, a sala ficou em silêncio absoluto.
Então, como se alguém tivesse contado uma piada grotesca, metade dos presentes caiu na risada. A outra metade permaneceu séria e quando digo sério é sério até demais. Como se aquela frase fosse perigosa demais até para ser levada na brincadeira.
Hydra limpou uma lágrima de tanto rir.
— Claro, claro… você com certeza vai atravessar o Submundo de Hades, entrar no Tártaro e libertar Typhoeus! — ele gesticulou dramaticamente. — Um humano. Sofrivelmente comum. Fantástico! Quer que eu bata palmas?
— Vamos matar logo — grunhiu Asterius, os chifres brilhando sob a luz.
Ele deu o primeiro passo, pesado como um martelo divino prestes a cair.
Silas tentou correr.
Era inútil.
Neméia o capturou com uma mão, como se segurasse um gato irritado. Ele o ergueu no ar, seus dedos apertando o suficiente para lembrá-lo de que poderia parti-lo ao meio sem esforço algum.
— Vão rápido — disse Hydra, já preparando a mão, cuja energia astral se condensava em uma lança de pura intenção letal. — Quero ver o rosto dele quando—
— ESPEREM!
A voz ecoou, reverberando pela sala.
Não era um grito comum.
Soou como terra rompendo a superfície, como raízes antigas despertando.
No centro da mesa, o chão abriu-se em pétalas, como se a pedra fosse apenas casca frágil cobrindo algo vivo.
Um broto emergiu, crescendo em segundos, transformando-se num caule robusto que se desdobrou e revelou uma mulher de beleza avassaladora.
Seu corpo era voluptuoso, marcado por curvas que pareciam esculpidas pela própria natureza. Os cabelos verdes longos caíam como uma cascata de folhas frescas, e seu olhar tinha a profundidade de florestas primordiais.
A presença dela sozinha fez o ar mudar, mais pesado, mais antigo, mais inevitável.
Equidna arregalou os olhos.
— G–Gaia…
Neméia quase deixou Silas cair ao ouvi-la.
— A-avó Gaia…? — murmurou, olhando para a matriarca primordial com reverência pura.
Hydra congelou no movimento de avançar, a mão ainda a poucos centímetros do peito astral de Silas.
— Vovó…? — Hydra engoliu seco — Eu não sabia que estava… hum… presente.
Gaia caminhou, pés descalços percorrendo a pedra como se pisasse grama viva.
Silas, ainda pendurado no ar pela mão de Neméia, piscou algumas vezes.
Mas o que diabos…? Isso é uma deusa? Um espírito ancestral? Por que tudo isso acabou acontecendo COMIGO?
— Salvo pelo gongo… — ele murmurou, num sussurro que só ele deveria ouvir. — …embora eu não saiba que porra é uma Gaia.
Gaia virou-se para ele com um sorriso maternal e perigosamente consciente.
— Eu ouvi isso, criança. — Sua voz era suave, mas antiga como montanhas. — E eu lhe direi em breve… quem sou. Mas antes…
Ela olhou para a família monstruosa reunida, e cada um deles de Equidna, Hydra, Ladão, Scylla, Esfinge, Quimera, Cólquida e até Asterius.
— …temos assuntos urgentes a tratar. E nenhuma morte precipitada acontecerá hoje.
O silêncio que se seguiu não era apenas respeito. Era temor.
Porque Gaia não era uma visitante. Ela era uma autoridade que nenhum deles ousaria desafiar.
Silas sentiu um calafrio subir por sua espinha.
— Mas por quê? — Hydra foi o primeiro a romper o silêncio, a frustração escorrendo de cada palavra.
Gaia virou-se para ele com um olhar paciente, quase indulgente.
— Porque este frágil humano… — ela disse, apontando suavemente para Silas, ainda nas mãos de Neméia — …e seu blefe terrivelmente mal formulado… não está necessariamente errado.
A sala inteira explodiu em um único som:
— O quê?! — dezenas de vozes, choque unânime.
Hydra piscou, atônito.
— Mas como isso é possível?!
Gaia suspirou, como alguém prestes a explicar algo óbvio a crianças teimosas.
— Os humanos eram originalmente moradores do Mundo Espiritual — disse ela, e cada palavra parecia ressoar como sino em catedral. — Viveram por eras em camadas muito acima até mesmo deste Mundo Astral. Mas então… caíram. E agora vivem como moscas inferiores, muito,muito,muito e quando digo muito longe de sua antiga grandiosidade.
Hydra cruzou os braços e lançou um olhar torto para Silas.
— Sim, isso nós sabemos. — O desprezo quase pingava de sua voz.
Silas revirou os olhos interiormente.
Ótimo. Maravilha. Por causa de uma maldita fruta… eu não sou um deus mas sim um inseto incompetente. Excelente autoestima, obrigado.
Gaia, ignorando a hostilidade de Hydra, prosseguiu.
— Contudo… — ela ergueu um dedo, como uma professora abrindo uma exceção importante — …atualmente, as inibições naturais dele não o limitam tanto, agora que ele está aqui.
Equidna franziu o cenho.
Neméia estreitou os olhos.
Asterius moveu um pé para trás, instintivamente.
— O que está querendo dizer? — Ladão perguntou, voz baixa.
Gaia sorriu de leve.
— Que é perfeitamente possível que, com o poder latente dele… nós consigamos romper as correntes que prendem meu filho Typhoeus.
O impacto foi imediato
— Isso é possível?! — Hydra quase ficou de queixo caído.
Silas, por outro lado, sentiu o coração parar.
— Eu posso fazer isso? — ele murmurou, mais para si do que para qualquer um ali.
Gaia assentiu, com a naturalidade de quem afirma que o sol nascerá amanhã.
— Quanto mais tempo ele permanecer no Mundo Astral… ele poderá compreender sua verdadeira natureza. — Seus olhos pousaram diretamente nos de Silas. — No momento, ele é inútil. — Uma declaração tão calma quanto cruel. — Mas com o tempo… tornar-se capaz de grandes coisas.
Silas quase engasgou.
— Eu não possuo tempo! — sua voz tremeu entre desespero e raiva. — Eu preciso de ajuda rápido! O mundo material precisa de ajuda agora!
Gaia o observou. Havia compaixão ali… mas também algo mais profundo, insondável.
— Então vamos ver — ela disse — como ele está agora.
Silas piscou, confuso.
— O quê? É possível avaliar isso… assim? Agora?
Gaia sorriu, e o ar pareceu cintilar ao redor dela.
— Claro, criança. Afinal… estamos em um plano superior.
A luz ao redor se alterou. As sombras ondularam como água. E Silas sentiu algo dentro de si com algo antigo, soterrado e coberto de poeira cósmica lentamente despertar.
— Solte-o, Neméia — Gaia ordenou.
Neméia obedeceu imediatamente, depositando Silas suavemente no chão um contraste bizarro com o fato de que, segundos antes, pretendia esmagá-lo.
Gaia estendeu uma mão para Silas.
— Venha. Deixe-me ver o que restou da verdadeira centelha humana dentro de você.
Silas respirou fundo.
Eu realmente vou fazer isso?…Seja o que for… já não posso voltar atrás.
Ele tocou a mão dela.
E o Mundo Astral… abriu-se.