Silas rompeu o foco da projeção como alguém que despertava de um pesadelo ou de uma revelação.
O suor escorria por sua têmpora astral, algo que nem deveria ser possível naquele estado, o que só reforçava o quanto sua mente estava sendo puxada até o limite.
— Não possuo tempo! — ele explodiu, dando um passo à frente. — Vocês podem eliminar a praga, certo? Então por que não vão agora?!
Hydra riu com um som úmido e arrastado, reverberando como se viesse de múltiplas gargantas que não pertenciam ao mesmo corpo.
— Você não conhece o básico da negociação? — disse ele, apoiando o queixo nas mãos membranosas. — Temos os nossos próprios problemas, sabe?
— Mas— — Silas tentou retrucar.
Neméia ergueu a mão. O gesto foi silencioso, mas firme como uma lâmina ritual descendo em um altar.
— Meu irmão está certo. — Seus olhos dourados brilharam como tochas antigas, pesando Silas como se avaliassem até a composição de sua alma. — Nós podemos, mas isso não significa que iremos ajudar.
Silas cerrou os dentes, sentindo o desespero ferver como ácido sob a pele astral.
— Certo! Então… que tal pelo menos me levarem aos demais generais que foram junto de seu pai? Como por exemplo Sun Wukong?
Um silêncio espesso caiu.
Hydra arqueou a sobrancelha, incrédulo.
Cólquida soltou um riso curto não de deboche, mas de alguém que não consegue acreditar no que acabou de ouvir.
Neméia balançou a cabeça, cruzando os braços.
— Muito distante. — Sua voz carregava um peso ancestral. — E nenhum de nós pode sair do subsolo… ou seríamos caçados imediatamente.
A frase afundou no ar como uma pedra lançada em águas profundas.
— Então… isso quer dizer que não tem o que fazer? — Silas perguntou. Sua voz hesitou e quebrou.
Não era só frustração.
Era medo.
Medo real.
Gaia, observando tudo com serenidade tectônica, inclinou-se levemente.
— Não exatamente.
Silas virou-se como se agarrasse a última esperança.
— O que quer dizer?
Gaia aproximou-se. Seus passos pareciam alterar o relevo do próprio chão astral, como ondas de uma terra viva.
— O mundo material funciona de maneira diferente no Reino Astral, como você já percebeu.
— Isso eu sei — respondeu Silas, impaciente, quase suplicante.
Gaia sorriu, mas não em escárnio, e sim com uma compaixão de alguém tão antigo que já presenciou a ascensão e queda de civilizações sem nome.
— Pois bem… o tempo que passou aqui foi mais de uma oitos horas.
— Mas no mundo material… — ela estendeu a mão, e o ar ao redor fraturou-se em pequenos cristais de temporalidade cintilante. — Mal se passaram uma hora.
O impacto da revelação ressoou como um sino fúnebre na consciência de Silas.
Hydra estalou a língua.
— Viu? Nem tudo está perdido.
Cólquida ajeitou o manto sobre os ombros, olhando Silas como um jogador experiente que acabara de ver uma peça chave cair em suas mãos.
— O que você acha? O tempo não é mais um problema né?… Você tem tempo nescessário para mudar um destino e salvar o seu povo.
Neméia assentiu, lento e grave.
— Silas. Respire. Enquanto você estiver aqui… ainda tem margem para agir.
Gaia então pousou suavemente a mão em seu ombro.
Quando falou, sua voz carregava a calma da terra fértil e a ameaça dos terremotos.
— Se você nos ajudar a liberar meus filhos presos no Tártaro… nós iremos ajudar. Eliminaremos a praga para você.
— Que tal termos um acordo?
Silas sentiu seu coração astral acelerar.
A praga.
Lumian.
A guerra iminente.
O Império inteiro pendurado por um fio corroído.
Ele não hesitou.
— Temos um acordo.
— Perfeito — disse Gaia, e a simples palavra pareceu ondular pelo salão como uma ordem gravada no osso do mundo.
Ela então voltou-se para Neméia.
— Neméia, guie o rapaz para um aposento. Ele precisa descansar.
Neméia assentiu, embora seus olhos dourados demonstrassem que ainda pesava Silas como um animal selvagem avaliando se a presa era útil… ou apenas frágil.
— Irei fazer os preparativos — continuou Gaia, sua voz firme como um continente se movendo. — E conversarei com a mãe de vocês… a sós.
Hydra, Cólquida, Ladão e os demais se entreolharam. Um silêncio rápido, mas pesado, passou entre eles e o tipo de silêncio que só existe entre seres que viveram eras lado a lado, partilhando ameaças e segredos.
Equidna inclinou levemente a cabeça, quase reverente.
Neméia se aproximou de Silas.
— Venha. — Sua voz era suave, mas carregava uma força que tornaria inútil qualquer tentativa de recusar.
Ele o guiou pelos corredores do subsolo através dos corredores vivos, de pedra que pulsava em ritmos lentos, como se respirasse. Os passos deles ecoavam, mas não como ecos comuns e sim ecos que pareciam seguir, ouvir, ponderar.
Após alguns minutos, chegaram a um pequeno aposento talhado diretamente em uma rocha colossal. Havia uma cama simples, feita de fibras que lembravam raízes petrificadas, porém surpreendentemente macias ao toque. A luz vinha de musgos luminescentes espalhados pelas paredes.
Neméia parou à porta.
— Descanse, Silas. — Ele o fitou por um longo instante, como se buscasse algo além do que ele tentava esconder. — Você vai precisar de todas as forças quando Gaia retornar.
Silas tentou sorrir, mas só conseguiu um aceno exausto.
— Obrigado… eu acho.
Neméia não respondeu. Apenas se virou e saiu, silencioso como uma fera que sabe exatamente onde pisa.
Um a um, os outros irmãos desapareceram pelos corredores com Hydra resmungando, Cólquida estalando os dedos como se planejasse algo, Ladão saindo com passos leves demais para seu tamanho. Cada um indo lidar com seus próprios problemas ancestrais… ou preparar-se para o que Gaia estava prestes a fazer.
O salão ficou enfim vazio.
Exceto por Gaia… e Equidna.
A respiração do reino astral parece prender-se por um instante, como se até ele temesse o teor da conversa que viria a seguir.
Silas deitou-se.
O corpo astral dele pulsava como um músculo que havia sido estendido além do limite. A mente, mesmo envolta em fadiga, ainda vibrava com as lembranças da projeção, das camadas dimensionais, da visão de Lumian… e da praga que avançava como um sussurro maligno.
Ele tentou inspirar fundo.
A cama era estranhamente confortável, acolhendo sua forma astral como se moldasse o próprio tecido a ele.
Mas o sono não vinha fácil.
A cada vez que fechava os olhos, via a Basílica em movimento. Os infectados em Belthazar. Os olhos de Gaia ao propor o acordo. A promessa de libertar filhos presos no Tártaro.
O peso de tudo aquilo o esmagava como uma montanha.
Ainda assim…a exaustão era maior.
E, finalmente, Silas permitiu-se afundar.
Deixar a consciência escorrer. Cair em um descanso pesa
do, instável, mas necessário.
Porque quando acordasse…o verdadeiro preço do acordo começaria a ser cobrado e a guerra parecia inevitável.